Elogio da Imperfeição | Pêssegos

0
833

P1– Então?… Não escreves nada?
P2– Não consigo… estou chateada… Queria escrever sobre coisas giras que andam a acontecer na cidade… festas, exposições, eventos… a cidade anda cheia de animação, de vida…

P1– E?… É uma boa ideia… Escrever sobre coisas boas… às vezes parece que só se pode falar do que está mal…
P2– Pois, eu sei… mas não consigo, estou chateada… há 3 semanas escrevi sobre o fato das psicólogas das equipas comunitárias do CHO estarem a trabalhar sem receberem ordenado desde Fevereiro…
P1– Sim eu sei… e sei também que a situação ainda não está resolvida, mas já disseste, pronto… não vais voltar a falar do mesmo? O que é que queres fazer?

P2– É por isso que estou irritada… Exatamente porque a situação se mantém… ter sido dito não alterou nada, ninguém perguntou, ninguém reagiu… Olha, por coincidência até saiu na semana seguinte uma entrevista com a nova presidente do CA do CHO… e falou sobre a psiquiatria e a articulação de cuidados… Sobre esta situação… nem uma palavra… aparentemente também ninguém lhe perguntou…
P1– Olha, começas com essas conversas e ainda acham que tens a mania que podes influenciar… Escreveste o que escreveste, quem leu, leu… estavas à espera do quê? Há tanta coisa a acontecer… E tanta coisa para resolver… Porque é que esse assunto haveria de ser mais importante do que tantos outros?

P2– É isso que é irritante, os assuntos ficam velhos, deixa-se de falar deles… mas continuam lá… os problemas mantêm-se mas deixam-se cair… e estamos a falar da vida das pessoas e de estruturas públicas… e somos um Estado democrático… ou não somos?
P1– Claro que somos… Mas as coisas não são perfeitas, há sempre dificuldades… Não és tu que fazes o elogio da imperfeição? A democracia não é um sistema perfeito…
P2– Olha, olha… agora entramos em demagogias… Sabes perfeitamente que a ilusão da perfeição desemboca em totalitarismos e fundamentalismos… e a democracia não mora aí… por isso mesmo é que existem princípios e direitos básicos que têm que ser respeitadas… falar de diversidade, de diferenças, de tolerância, não é defender a falta de ética social… Não vivemos numa república de bananas…
P1– Pronto, tem calma… Afinal há perspectivas e projectos de coisas importantes a realizar, nomeadamente na área da saúde… Infelizmente nestes processos há sempre os que ficam mais prejudicados, mais sacrificados… mas se o objetivo for o bem de muitos…
P2– Tu estás mesmo a irritar-me… Conheces aquela frase: se a morte de uma pessoa é uma perda, a morte de milhares é estatística…? Achas mesmo que é possível construir algo de bom, pisando e passando por cima de direitos básicos das pessoas?… Essa conversa de usar o bem comum para justificar o abuso é infelizmente muito vulgar e bem perigosa… é lobo escondido sob pele de cordeiro…
P1– Acho que não ganhas nada em manter este assunto em cima da mesa… Já falaste disso… agora olha… as coisas são como são… não maces as pessoas… Na vida não basta ter razão… há as circunstâncias… as complexidades…
P2- Já percebi que não vamos sair daqui… então diz lá sobre o que deveria escrever esta semana…
P1– Sobre pêssegos.
P2– Pêssegos?…
P1– Sim… Pêssegos… saborosos, cheirosos, bonitos, bons… Enquadravas num elogio à fruta da época… Só têm um pequeno problema, as nódoas. Nódoa de pêssego dificilmente sai… Chatice…