Incêndios florestais: o nosso património queimado

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Gazeta das Caldas

Por: Saikiran Datta*

Em 1998, numa aula de artes plásticas, recordo-me ter feito um desenho a carvão representando a Última Ceia de Cristo. As figuras dos apóstolos à volta da mesa eram os troncos de árvores.  Como um conceito radical, a natureza-morta era santificada ao passo que o Cristo e os discípulos eram unidos na natureza. Hoje, se voltasse a pintar de novo, teria um desgosto porque os santos apareceriam todos queimados. Associação da natureza como objecto de veneração não é assim tão estranha. Veja esta frase de Albert Einstein:
“Por trás dos segredos da natureza há algo sútil, intangível e inexplicável. A veneração a essa força que está além de tudo o que podemos compreender é a minha religião.”
Em termos antropológicos, existem povos que veneram natureza como objecto religioso. Para o povo hindu, certas árvores, como banyan (Ficus Benghalensis) e peepal (Ficus Religiosa) são sagradas. Esta última também está associada a Gautama Buddha debaixo da qual ele atingiu a Iluminação. O povo Lusitano também tinha as suas divindades protectoras, Crougiani (vida selvagem), Nabia (vale aquática), Ategina (fertilidade) e Drusuna (protectora de florestas). Quanto mais idade tiver uma árvore, ela acarreta uma história própria e estatuto de ancestralidade. À luz dessa afirmação, acabamos de destruir um património com 700 anos, queimando mais de 70% do Pinhal d’El Rei, que nascera da iniciativa régia no século XIII com o objectivo de prevenir a degradação do solo. A noite de 15 de Outubro de 2017 ficará como uma mancha negra na história portuguesa. Um acontecimento que destruiu uma larga extensão da costa atlântica na zona oeste, em simultâneo com zona centro e norte do país, destruindo pelo caminho lares, empresas, campos e florestas, matando meia centena de pessoas, carbonizando animais e arrasando bens.
Os fogos florestais, que voltam a colocar Portugal numa situação de fragilidade, têm devastado, num espaço de poucos meses,  centenas de milhares de hectares da zona rural. É vergonhoso como o país sofre e sobrevive à base de donativos e pedidos. É criminoso tirar uma centena de vidas. É insubstituível essa perda humana. A dor e o sofrimento do povo são inconsoláveis.

No momento em que se debate, em praticamente todos os canais de televisão, as consequências políticas deste acontecimento, fico a questionar se realmente se trata de uma questão política? Por morrer uma andorinha não se acaba a Primavera, muito menos com a demissão de uma ministra que resolveremos esta situação. Até porque este assunto tem assombrado vários governos e nunca se pensou em resolvê-lo seriamente. Os governantes em Bruxelas, solidários contudo, estão cansados com essa vergonha, esperando que não se repita no futuro a perda da vida humana.
Pensando bem sobre o assunto, os incêndios florestais é uma consequência do desinteresse pela ruralidade. Não é um tema novo para mim, nem é pela primeira vez que escrevo em prol da sua preservação. É difícil o homem responsabilizar-se a si próprio pelos seus actos. Os nossos ministros são urbanos, as suas políticas também são urbanas; a ruralidade é um assunto que interessa pouco; e quando interessa, termina com as eleições eleitorais e a visita supérflua ao mundo rural. Os projectos são megalómanos: aeroportos, novos metros, centros comerciais, complexos turísticos e hotéis de luxo. Mas nunca ninguém se manifesta disponível para garantir a sobrevivência do que já existe, por exemplo, a limpeza e a manutenção das infra-estruturas básicas— dos rios, dos caminhos rurais, dos campos e das florestas. Pensa-se em grande e em nome de desenvolvimento descuida-se do resto, assumindo a ruralidade como algo sempre garantido. Os fogos vieram contrariar esta ilusão da certeza. Coloca-se um ponto de interrogação ao nosso estilo de vida.
O mundo rural está hoje ainda mais ameaçado. O conceito da aldeia estremenha, compacto e pouco disperso, está hoje marcado por uma paisagem dispersa e menos compacta. As zonas verdes deram lugar a condomínios privados e os centros rurais, limitados em espaço, são cada vez mais abandonados e degradados. O crescimento das aldeias em torno das suas extremidades colocou a paisagem em xeque. A queda da agricultura familiar, os casais agrícolas, que no passado fomentavam alguma dispersão, dá lugar a zonas florestais, especialmente eucalipto como um negócio rentável. No meu recente estudo sobre o tema, observei esta tendência na zona oeste e julgo que esteja em sintonia com o resto do país. O modelo de fixação dispersa, fora do perímetro da aldeia, em zonas de difícil acesso, desafiou o salvamento de muitas casas nesta tragedia. Este assunto levanta uma outra questão importante, o desordenamento do território rural a favor de construções alheias, pondo em causa a preservação dos espaços verdes, incluindo os campos de cultivo. As plantas cadastrais que classificam os tipos de cultivo são obsoletas e não correspondem à realidade no terreno. A protecção da zona agrícola e florestal com a demarcação restrita da zona urbana nunca foi uma prioridade. Até dominou o contrário. A REN e a RAN são vistas como entraves ao desenvolvimento urbano de um município. Quantos não colocam uma revisão ao PDM para desfazer dessas reservas? Naturalmente, temos que crescer e evoluir, seria um argumento a favor. Tudo à custa da paisagem silenciosa. A mesma paisagem que hoje está em cinzas.
E pensando bem, o tsunami de incêndios só destruiu, num espaço de poucas horas, o que temos vindo a destruir pouco e pouco, mato a mato, nas últimas décadas—a nossa paisagem natural. A industrialização do mundo rural e da natureza, isto é,  a implantação das indústrias em zonas rurais e usando a natureza para fins industriais lucrativos, colocou em perigo a sua sobrevivência. Não só desequilibrou a paisagem rural, mas conduziu à sua destruição em nome da economia. Basta ver a larga destruição em curso de um parque natural com a exploração da indústria da pedra calcária. Aqui todo o relevo da área protegida está lentamente a desaparecer. Se os fogos destroem só a superfície, essas explorações desossam a serra por dentro. A indústria da madeira é a outra que se passa despercebida. Há dois anos, numa visita à Mata Nacional, a mesma que agora se queimou (Descanse em paz!), deparei com máquinas e camiões a transportar madeira à grande velocidade. Que vergonha! O que se queimou pode ser inventariado, quantificar o que desaparece em lucros clandestinos, jamais saberemos. Como podemos aceitar arrasar hectares e hectares da floresta, um pouco por todo o lado, para empreendimentos turísticos à beira da costa atlântica só porque argumentamos que isto enriquece os municípios, emprega os jovens e traz estrangeiros. Nesta lógica, há que agradecer os fogos por terem limpo a floresta para implantar golfe e equitação nos terrenos onde hoje nada resta. É uma lógica patética.
É o tempo de descer à realidade. A realidade nua e crua. Compreender a fragilidade do povo. Abraçar estes rostos dos rurais que invadem a rede social. Não porque temos pena deles mas porque também os somos. Os tempos que se seguem serão difíceis; as leis duras; a justiça eficaz; a fiscalização menos corrupta; a política livre de politiquices partidárias. O mundo rural volta a estar em foco. Não pelas segundas habitações que ainda estão à venda, mas sim pela partilha da responsabilidade. Teremos que musealizar a memória dos que perderam a vida neste ‘holocausto’. Teremos que resgatar o que resta do nosso património queimado.
Não será inoportuno terminar com uma nota leve. Algo que aconteceu em Maio deste ano. Quis fotografar esse local para a memória. Ridículo que parecia na altura, hoje faz sentido à luz dos recentes acontecimentos. Aqui fica para rirmos e reflectirmos. Numa ida à casa de banho no Shopping de Leiria, admirei a meia-dúzia de troncos de pinheiros mumificados em vidro atrás do urinol. Nunca imaginaria que a minha vista do Pinhal de Leiria reduzir-se-ia a este nível em poucos meses. O ready-made de Marcel Duchamp, um urinol de cerâmica, volta a fazer sentido. Uma instalação da natureza que nos choque e que nos ensine a sua preservação. Uma feliz combinação artística de um objecto industrializado e natureza.

*Professor/ Investigador
Mestre em Museologia e Património Cultural
Autor do livro Os Casais Agrícolas de Óbidos