Este Consumo Que Nos Consome – As interrogações à volta de uma sociedade em rede

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Por iniciativa do então Presidente da República, Jorge Sampaio, decorreu em Março de 2005 no Centro Cultural de Belém uma importante conferência subordinada ao tema “A Sociedade em Rede, Do Conhecimento à Acção Política”. Este valioso conteúdo de intervenções foi publicado pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda em 2006, e parece-me de leitura obrigatória para quem está interessado em analisar o mundo em que vivemos.

Acresce que na organização desta conferência participou Manuel Castells, um dos cientistas de maior projecção mundial, talvez o único que nas últimas décadas se propôs estudar as múltiplas dimensões das transformações que vive o nosso tempo. Castells tem centrado a sua análise graças a um original e ousado entrelaçamento da tecnologia, da economia e das mudanças sociais (toda a sua poderosa investigação recente está publicada pela Fundação Calouste Gulbenkian a preços abordáveis).
Que veio Castells dizer nessa conferência de Lisboa? Que há mais de duas décadas o nosso mundo está a viver um processo de transformação, multidimensional, onde se equaciona um novo paradigma tecnológico e uma nova forma de organização social baseada em redes. Somos hoje à escala global uma gigantesca constelação de sociedades em rede, em que as redes de comunicação digital se perfilam como a coluna vertebral de toda a sociedade. Castells define a sociedade em rede do seguinte modo: “É uma estrutura social baseada em redes operadas por tecnologias de comunicação e informação que se fundamentam na microelectrónica e em redes digitais de computadores que geram, processam e distribuem informação a partir do conhecimento acumulados nos nós dessas redes”.
Esta sociedade em rede mudou conceitos estratégicos como os de produtividade, carreira profissional, actividade sindical ou o papel dos media. A competitividade está hoje dependente do poder de gerar e difundir novas tecnologias digitais de comunicação e informação, com base em inovação científica e inovação tecnológica, graças à transformação do trabalho e da nova forma de organização em torno das redes. Esboroou-se a noção de carreira profissional estável devido a esta nova correlação entre a noção de inovação tecnológica articulada com a flexibilidade do trabalho. Por isso os sindicatos entraram em apuros porque sabem que não podem resistir à mudança tecnológica e muitas vezes sentem-se incapazes de se transformarem em poderosos actores de inovação em trabalho e criação de rendimentos. A área da comunicação entrou numa nova face histórica: é em grande medida organizada em torno dos negócios de media que incluem a televisão, a rádio, a imprensa escrita, o audiovisual, a produção editorial, a indústria discográfica e as empresas comerciais online, tudo sobre diferentes formas de parcerias e estes grupos vivem em feroz competição; este sistema de comunicação está cada vez mais digitalizado e é gradualmente mais interactivo e com a sua diversificação tem cada vez menos organização central; por último, dá-se uma explosão incessante de redes horizontais de comunicação que permitem às pessoas comunicar umas com as outras sem utilizar os canais criados pelas instituições da sociedade. Tudo isto mudou os conceitos dos media, o próprio discurso político e a confiança dos próprios eleitores.
Estando todos nós já na sociedade em rede, impõem-se reflectir sobre políticas-chave que melhorem o bem-estar humano. Castells considera que o sector público e a sua reforma são indispensáveis para desenvolver e moldar a sociedade em rede; o mesmo observa para a reconversão total do sistema educativo; o desenvolvimento global deverá encontrar resposta para superar contradições muito grandes, como diz Castells, “Quanto mais desenvolvemos a elevada produtividade, os sistemas de inovação da produção e da organização social, menos precisamos de uma parte substancial de população marginal, e mais difícil se torna para esta população acompanhar esse desenvolvimento”; por último, há que saber o sentido para onde vai a democracia directa, pois não podemos ignorar que estes milhões de utilizadores de tecnologias querem não só estarem bem informados como estão determinados a contribuir para uma decisão colectiva.

A Internet e as complexas questões do poder

Nunca como hoje se falou tanto em assassinatos de carácter, em corrupção, em perda de confiança nos políticos e até em crise democrática. Mudou substancialmente a relação entre as instituições políticas e os cidadãos. Por outro lado, estão a ganhar peso os inimigos do Estado Nação (caso da globalização do crime), as ondas de fundamentalismo e a psicose da segurança colectiva são preocupantes. Há uma notória articulação, completamente nova, entre o exercício do poder, o funcionamento do Estado em rede e a política do escândalo. Os estados são tão mais legítimos quanto procuram solucionar os problemas básicos dos cidadãos, gerindo a fiscalidade, a protecção social e a garantia de serviços de interesse geral determinantes. Mas a globalização gerou essa contradição que é a mobilidade do capital, sempre à procura de melhores condições. Toda esta tensão só poderá ser dirimida mediante um contrato social global com o mesmo peso que têm os acordos do livre comércio, com o sentido de reduzir as disparidades das condições de vida. Estamos hoje confrontados com este fenómeno das sociedades civis quererem tomar nas suas mãos as responsabilidades da cidadania global em múltiplos níveis desde os direitos humanos, direitos ambientais, cooperação, comércio justo, ajuda humanitária e solidariedade no campo da saúde pública. Começa a esboçar-se uma sociedade global onde se unem esforços para procurar encontrar uma acção que favoreça a solidariedade à escala mundial. Por outro lado, a nível nacional, regional e local essa mesma cidadania está a reforçar os projectos culturais de identidade: a dimensão gastronómica, de património cultural de orientação sexual, de educação para a paz e para tolerância, entre tantas outras.
Estamos confrontados com uma situação contraditória: a centralização, por via de alguns projectos ideológicos, e a descentralização que envolve inúmeros actores da sociedade em rede. Não podemos prescindir da segurança colectiva, pode estar a nossa segurança em causa, há igualmente o combate ao terrorismo, mas sem as denúncias da Internet não teríamos sabido o que passou na prisão de Abu Ghraib. Vivemos pois uma conflitualidade de poderes, o novo sistema de poder caracteriza-se pela pluralidade das fontes de autoridade. Mas por outro lado temos o poder económico centrado nos mercados financeiros globais e temos o poder cultural a residir na rede dos meios de comunicação global-local. Depois o poder científico-tecnológico está nas redes universidades-científicas, autónomas. Nesta disseminação de poderes, também temos o poder criminal nas mãos de máfias globais e o contra poder também reside em movimentos sociais articulados em redes de identidade local e estratégia global. Vivemos num mundo em que a cidadania está fragmentada, em que há redes de comunicação alternativas com grande peso, a denúncia das corrupções tem desmascarado inúmeros políticos e existe um corte entre a política formal e a participação cidadã Ninguém está a ganhar, a vitória passará por mudanças políticas e estas passam por mudanças culturais e não o contrário, como propuseram os leninistas e os liberais.
Esplendor e fraquezas da Internet
As tecnologias de informação e comunicação têm como resultado fundamental aumentar extraordinariamente o potencial da mente humana. Sem conhecimento, sem capacidade intelectual para processar a informação e transformá-la em conhecimento específico com o objectivo da sua utilização, sem educação, as tecnologias serão só puras máquinas. É a nossa mente que as converte em alavancas que mudam o mundo em todas as suas dimensões.
Recorde-se que a Internet é uma criação cultural antes de ser uma criação tecnológica, é o expoente de uma cultura em liberdade já que permite construir redes de relações universais entre pessoas livres. É a cultura hacker que está a triunfar, são jovens criadores tecnológicos que estão na dianteira da inovação, muitas vezes ligados a pequenas empresas que operam a revolução tecnológica, dentro e perto de Silicon Valley. É neste lugar que temos o maior espaço de inovação, há varias décadas: primeiro com a micro electrónica, depois com a informática e com o software, depois com as telecomunicações, depois com a biotecnologia industrial, mais tarde com a Internet e o multimédia, agora com a engenharia genética, a biomedicina e nanotecnologia. São tempos prodigiosos, agora com as redes sem fios e a telefonia por Internet em que graças ao programa Skype estamos a chegar ao fim da comunicação pela rede telefónica tradicional.
Hoje é inteiramente impossível desenvolver uma actividade económica ou financeira fora da Internet. Os países em vias de desenvolvimento não podem avançar sem uma infra-estrutura de comunicação, sem Internet de banda larga e sem a capacidade educativa para utiliza-la. Também não serve de nada estabelecer uma conexão com a Internet se não houver vínculos e utilização económica, educativa ou dos próprios serviços públicos. A grandeza da Internet é ela permitir a comunicação horizontal. Presentemente, as grandes empresas de comunicação ainda não sabem lidar com a Internet, e daí a tentação numa informação cada vez mais espectacular e até com o uso do virtual. Vivemos uma grande confusão num mundo saturado de comunicação mas com uma grande ausência de códigos comuns de comunicação.
A sociedade em rede é uma grande esperança para as nossas vidas. Sem dúvida que vivemos rodeados de tensão, perigos e ameaças, sem dúvida que detectamos a qualquer momento sinais da globalização predatória e a pobreza e a exclusão são simultâneas com o enorme progresso que vemos noutros pontos do mundo. Resta saber se a Internet, que rompeu com a tirania da comunicação e que permite novas conexões com seres humanos em outros pontos do globo vai estar ao dispor de todos. Como diz Castells, a grande mensagem de esperança é superar o abismo da diferença entre o enorme desenvolvimento tecnológico e o subdesenvolvimento social.

Beja Santos