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Notícias das Caldas
D.R.
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Cerca de 100 anos separam estas duas imagens da praia de S. Martinho do Porto.
Nelas se podem constatar rapidamente as grandes diferenças que na terra se verificaram e, eventualmente, somos atraídos pelo bucolismo e pelo ar paradisíaco da foto antiga, saltando à vista a vulgaridade da foto recente que, sendo uma foto de inverno e, por isso, não nos dê conta da mole de gente que costuma ocupar o areal na época balnear, não distingue o local de outra qualquer zona do beira-mar português.
Contudo, estas imagens contam-nos muito da sociedade portuguesa e da sua rápida evolução no último século.

A primeira fotografia retrata-nos a “descoberta” da praia de banhos como complemento terapêutico das termas e a rápida apropriação do local pelas famílias abastadas que aqui construíram as suas casas de verão, invadindo os areais antes ocupados apenas pelos estaleiros navais e pelas dunas, trazendo para a beira-mar a povoação que antes se alcantilava apenas no Outeiro.
Só a partir desta época S. Martinho do Porto começou a ser conhecido como praia, tendo também, por paradoxo, vindo a perder desde então a função de porto que lhe tinha dado o nome.
Durante mais de metade do século XX foi uma praia da elite, primeiro da nobreza e dos seus descendentes, depois também das famílias ilustres de Lisboa, Santarém e Alentejo, sendo a sua baía frequentemente apelidada pelo povo (que não a utilizava) como o Bidé das Marquesas.
Com a revolução de Abril democratizou-se de vez o acesso às férias e ao direito a possuir casa de praia, ao mesmo tempo que, alguma decadência das classes dominantes e o dinheiro vivo dos novos burgueses proporcionaram a venda das casas senhoriais da beira-mar e a sua substituição progressiva pelos prédios de apartamentos, permitindo a todos os burgueses a tão cobiçada casa de praia no lugar frequentado pelas elites.
E assim, sem nenhum planeamento evidente, foi gradualmente desaparecendo a arquitetura do século XIX e crescendo uma barreira de prédios cada vez mais altos, proporcionado o maior lucro possível aos seus promotores e, mesmo, ao poder administrativo que os licenciava.
A praia passou a receber todas as manhãs as sombras dos altos prédios erguidos em primeira linha na avenida marginal, enquanto, na época balnear, não se cobria o areal dos banhistas residentes e dos banhistas visitantes que entupiam a avenida e todas as ruas e travessas com os automóveis que os haviam de voltar a levar para suas casas logo que o sol começasse a baixar.
E hoje, depois de uma requalificação de fachada, iniciada e não completada conforme os projetos anunciados, continua o caos automobilístico no verão e nos fins-de-semana, sobrando pouco mais que o espaço para os passeantes na calçada do paredão.
Entretanto, sobre as mesmas águas não baloiça apenas um bote com meia dúzia de doms e donas, mas existe um frenesim de embarcações a motor, a remos, a pedal, de motas de água e de boias de sinalização, enquanto no areal se alinham em filas perpendiculares as características barracas com toldo em bico e riscas coloridas, os chapéus-de-sol multicolores se espalham como cogumelos em chão outonal de floresta e as toalhas surgem estendidas caoticamente sobre a areia, onde é difícil passar na maré cheia sem pisar uma qualquer extremidade de corpo camuflada com a areia fina e peganhenta.
No inverno, voltam as águas à acalmia ancestral, sendo apenas importunadas pelo baloiçar constante das embarcações que sobre elas passam o inverno e pelas boias de sinalização das que foram passar em seco a época baixa, enquanto as areias ficam livre para as correrias dos cães e das crianças agasalhadas enquanto na avenida desfilam os carros vagarosamente, ao ritmo dos passeantes no paredão.

Cipriano Simão