A edição zero do “Latitudes” decorreu entre os dias 28 de Abril e 1 de Maio, levando a Óbidos “viajantes” das áreas da ilustração, escrita e gastronomia. Os quatro dias de festival excederam as expectativas da organização devido à intensidade de eventos a decorrer. Foi inaugurada uma livraria com 60 mil exemplares, apresentados livros, realizadas conferências e partilhas sobre viagens através de desenhos.
No próximo ano o festival deverá estender-se por dois fins-de-semana e contar com um congresso internacional de literatura de viagens.
Indistintos de qualquer visitante de Óbidos à primeira vista, um olhar mais atento reconhece o caderno e os lápis que são ferramenta obrigatória dos Urban Sketchers, ilustradores que durante os últimos dias de Abril povoaram a vila e desenharam os seus recantos. E não se tratam de turistas, mas sim de viajantes, como se caracterizam, pois em cada terra procuram os locais menos óbvios e ouvem as histórias que as pessoas têm para contar.
“Óbidos é uma vila deliciosa para desenhar. Tem ruas estreitas, uma escala muito intimista, pessoas e história”, disse Nelson Paciência, presidente do grupo Urban Sketchers Portugal que, entre sexta-feira e domingo, apenas tinha conseguido fazer dois desenhos, no intervalo do extenso programa de conferências e apresentações de livros que dinamizaram no festival.
A cada um dos Urban Sketchers foi pedido que desenhasse a Igreja de Santa Maria, numa folha solta, para depois fixar numa das paredes da galeria do Pelourinho. Nelson Paciência sentou-se no chão, a quatro metros do templo e desenhou-o como se este lhe fosse cair em cima. “Por isso a Igreja está deformada e parece um ser vivo”, conta à Gazeta das Caldas.
No segundo andar da galeria, Paula Cabral desenha a mesma igreja, mas de outro ângulo. São todas estas visões que depois foram colocadas no mural e que cada um guarda nos seus cadernos, onde registam os locais por onde viajam.
Este grupo trouxe ao festival dezenas de ilustradores portugueses e também do colectivo de Barcelona. Maru Godas apresentou alguns dos seus livros, dedicados a bairros locais e apoiados pela autarquia, que funcionam como divulgação turística e patrimonial daquela cidade catalã.
Presente esteve também o colectivo Grupo do Risco, composto por ilustradores, fotógrafos e biólogos, que se dedica sobretudo à ilustração científica e que partilhou uma expedição feita a Marrocos e outra à Ilha do Príncipe.
Esta foi a primeira vez que os colectivos estiveram juntos e há já a possibilidade de criarem um projecto comum para a próxima edição do festival. Irão mapear o concelho nas suas vertentes urbanística, histórica e ambiental (fauna e flora), tendo a lagoa de Óbidos um papel de destaque.
Nelson Paciência quer que a parceria com Óbidos continue e já está a pensar no que poderão fazer mais para o próximo festival. Este ano chegaram com zero desenhos e vão embora com dezenas deles, o que permite que possam desenvolver uma exposição, um livro e partilhar com outros a visão da vila através dos desenhos. Em 2018 querem ainda fazer workshops e colocar as pessoas da rua a desenhar com eles.
“Estamos habituados a fazer viagens e a partilhá-las com os outros através de desenhos, não são mais do que emprestar os nossos olhos a alguém que não foi ao mesmo sitio que nós”, rematou.
Ser “testemunha directa” de acontecimentos
A trabalhar já para a próxima edição está também o ilustrador André Carrilho. O jovem esteve em Óbidos mesmo antes do festival a fazer uma residência artística, da qual resultaram 14 aguarelas que compõem a exposição Caminho da Ronda. O autor irá agora escrever os textos para juntar às ilustrações, numa obra que será lançada em parceria entre a Óbidos Vila Literária e a editora Abysmo.
Este livro terá os mesmos moldes de “Inércia”, que tem Portugal, a Índia e a China como cenários dos desenhos e dos textos, que foram feitos no local que retratam.
O ilustrador partilhou as suas viagens numa conversa que juntou, na mesma mesa, a escritora Cristina Norton, natural de Buenos Aires e o advogado e hoteleiro Jacinto Gameiro. Neste festival houve também “viagens faladas” pelos jornalistas Paulo Moura e Cândida Pinto. Numa conversa amena e bem humorada partilharam as suas experiências, sobretudo em palcos de conflito e onde, por várias vezes, se encontraram, como foi o caso da Líbia e Iraque.
Paulo Moura, que foi grande repórter do Público, disse que lhe interessa particularmente as histórias das pessoas e não o conflito em si e, embora reconhecendo que não gosta de guerra, sente a “necessidade de estar presente onde estão a acontecer coisas importantes”. Uma opinião partilhada por Cândida Pinto, enviada especial em alguns dos principais conflitos da actualidade, que manifestou o seu interesse em ser “testemunha directa” de acontecimentos que mudam uma região ou país.
“É um privilégio para nós pois encontramos o melhor e o pior do ser humano, sem máscara, pois não há tempo, há uma urgência de viver”, disse.
Neste festival esteve também em destaque a situação actual da Europa, com o historiador escocês Neill Lockery a focar-se na saída do Reino Unido da União Europeia e de como essa decisão vai enfraquecer a frente atlântica. Também o historiador português Guilherme d’Oliveira Martins corroborou dessa opinião durante a apresentação da obra “Portugal saído das sombras – Da revolução de 1974 até ao presente”, da autoria do escritor escocês.
Na padaria Capinha de Óbidos foi lançado o “Poema feito de Pão”, da autoria do escritor brasileiro José Santos, que se encontra a fazer uma residência literária na vila. O pequeno livro foi quase todo ele escrito na padaria nos dias frios de Inverno.
“Como estamos sempre a trabalhar ao vivo foi uma forma dele [José Santos] se inspirar”, contou a proprietária Anabela Capinha Santos à Gazeta das Caldas.
O “Latitudes” permitiu também uma viagem pela gastronomia de vários países, com jantares-conversa sobre especialidades espanholas e orientais nos restaurantes do The Literary Man Hotel e Josefa d’Óbidos Hotel.
Uma nova livraria
Logo no primeiro dia de evento foi lançado o prémio “Viagens e Vantagens Linha Verde”, que irá distinguir quem produz melhor literatura de viagem em Portugal. Dirigido a bloggers, o regulamento será anunciado em Setembro, juntamente com o júri, que integrará um representante da Brisa, do programa Viagens e Vantagens, e da Óbidos Vila Literária. Os prémios serão entregues dentro de um ano, na primeira edição oficial do Latitudes, referiu Francisco Esteves, responsável pelo programa promocional da Via Verde, que pretende dar a conhecer destinos de viagem.
Momentos depois foi inaugurada a 14ª livraria de Óbidos. Denominada Labirinto, vem dar uma nova vida aos antigos armazéns da EPAC, à entrada da vila, funcionando entre sexta-feira e domingo. O espaço concentra cerca de 60 mil livros usados, provenientes de algumas livrarias que entretanto encerraram e bibliotecas particulares, adquiridas por José Pinho, da Ler Devagar. “Há livros de todos os temas, não está organizado por nenhuma secção”, explicou, mas é possível encontrar, por exemplo, muitos exemplares de livros de medicina.
O espaço só tem uma entrada e uma saída e está disposto dando a ideia de labirinto.
Está também prevista a instalação de um alfarrabista na vila. De acordo com José Pinho, trata-se de um privado que actualmente está instalado em Lisboa e que pretende mudar-se para Óbidos, abrindo uma livraria de alfarrabista, com atelier de impressão.
Congresso internacional em 2018
O festival, inserido na programação de Óbidos Vila Literária, superou as expectativas da organização. José Pinho, da Ler Devagar e um dos mentores do evento, considera que esta edição teve um programa “muito intenso”, de tal modo que se sobrepuseram algumas actividades. “Para teste, para ano zero e com orçamento zero, correu muito bem”, disse, acrescentando que no próximo ano o evento deverá estender-se por dois fins-de-semana.
Em 2018 deverá também realizar-se um congresso internacional de literatura de viagens, em colaboração com responsáveis da Universidade do Porto.
“Revoluções, revoltas e rebeldias” em Outubro
“Revoluções, revoltas e rebeldias” intitula a próxima edição do Folio – Festival Literário Internacional de Óbidos, que irá decorrer entre 19 e 29 de Outubro e cuja programação está a ser terminada. Alguns dos convidados desta terceira edição passaram também pelo festival Latitudes, como é o caso do artista moçambicano Gonçalo Mabunda, conhecido pelo seu trabalho de transformar armas em objectos de arte para promover a paz naquele país.
O artista virá fazer uma residência artística em Óbidos onde trabalhará com a mesma técnica que utiliza com os despojos de guerra para livros que estavam condenados a ser guilhotinados.
Esta edição contará também, pela primeira vez, com a presença de cinco escritores oriundos do Canadá. De acordo com a vereadora da cultura, Celeste Afonso, esta vinda dos escritores resulta de uma colaboração com Montreal, que está classificada como Cidade Criativa do Design e que já o ano passado interessou-se pelo trabalho feito em Óbidos. F.F.