Estrada de Macadame .- CCXXV – «A Big Band da Nazaré, Margarida e as memórias convocadas»

0
506

No passado dia 9-9-2010 às 7 da tarde ouvi no Jardim do Torel a Big Band da Nazaré dirigida por Adelino Mota. Pelo palco passaram temas famosos de Charles Mingus, Miles Davis, Mark Cally, Joe McCoy, Wayne Shorter, Errol Garner e outros clássicos. No fim do concerto, adquirido o CD para o ouvir em casa, ficou-me na retina o olhar da trompetista Margarida, a única mulher executante do grupo pois o outro elemento feminino (Júlia Valentim) é a vocalista residente. Há olhares assim: acumulam os sinais de muitos anos de memória.

Este olhar trouxe a terra da Nazaré a um Jardim de Lisboa e nele me apercebi dos contornos das mulheres que povoaram a minha infância. As mulheres e os seus trajes de trabalho: as chinelas, as blusas, os corpetes, as saias, os aventais, as capas, os lenços, os chapéus de feltro com as suas rodilhas que faziam altura. As mulheres e as suas vozes que misturavam de modo sentido os sons do mar e da terra na sua voz magoada quando perguntavam à minha avó: Há por aí uma pinguinha de café? As mulheres e a sua fala arrastada pelo cansaço e pela chuva; só desanuviava num sorriso quando a minha avó atirava uma brasa para dentro da cafeteira e a espuma do café descia de imediato. Depois do café apregoavam melhor a sardinha escalada, o carapau seco ao sol além do peixe do dia a espreitar na canastra. Melhor do que a minha memória, um desenho de Abílio Mattos e Silva explica a paisagem humana desses anos 50 em Santa Catarina. E a Margarida que me perdoe mas, depois das palmas para a música, só vi no seu olhar as recordações das Nazarenas que chegavam à minha terra pela estrada de Alcobaça entre pó no Verão e lama no Inverno.
Mas isso era no tempo da «estrada de macadame». Hoje a Big Band da Nazaré vai estrada fora fazer concertos em Portugal, em Espanha, na Bélgica e na Alemanha.
Aqui ficam os nomes dos participantes nesse memorável concerto de fim de tarde no Jardim do Torel que tive o prazer de ouvir ao lado de dois especialistas – José Duarte e Levi Condinho.
Vejamos: direcção – Adelino Mota, voz – Júlia Valentim, bateria – Bruno Monteiro, baixo eléctrico Tiago Lopes, piano – Ricardo Caldeira, guitarra – Gonçalo Justino, trombones – Fábio Matias, Élio Fróis, Reinold Vrielink e Ruben Santos, trompetes e fliscorne – Margarida Louro, André Venâncio, Luís Guerreiro e Vítor Guerreiro, saxofone barítono – Pedro Morais, saxofone tenor – Wilson Ferreira e João Capinha, saxofone soprano Joaquim Pequicho, saxofone alto – João Cunha.
Um pormenor curioso é o facto de o CD intitulado «10 anos» ser uma edição da Lusitanus Edições das Caldas da Rainha – contacto telefone 262838185 ou www.lusita nusedicoes.net para quem queira adquiri o álbum ou partituras das obras musicais. Para quem ainda viu passar os círios nos anos cinquenta, para quem viu a sua primeira tourada na Praça da Nazaré ao colo de um familiar enquanto o avô tocava um passo doble na sua inesquecível trompete que se ouvia por cima dos outros instrumentos da Filarmónica Catarinense, este concerto da Big Band da Nazaré foi uma romagem sentimental. A memória tem sons preservados que resistiram a tudo, a todos os desgastes e erosões, a todos os esquecimentos e distracções. Basta um elemento, ténue embora mas activo no seu desencadear, para os sons esquecidos surgirem à tona dos dias. Nesse fim de tarde de 9-9-2010 no Torel foi o olhar de Margarida que trouxe as memórias convocadas das mulheres Nazarenas desse tempo que me vinham sacudir o sono nas manhãs mais frias do Inverno

.