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Há já algumas semanas que os ficávamos a observar… Um casal de velhotes a desmontar o toldo e a bancada na Praça da Fruta.


Os gestos sincronizados e mecânicos, sem palavras, sem olharem um para o outro, fechados em si e afastando potencial ajuda de terceiros. Como se qualquer ajuda fosse uma ameaça de dependência, antevista pelos corpos de ambos já cristalizados em curva, e a mente recusasse e teimasse em afastar.
Ele insistia em encontrar um sinal de amor naquela coreografia. Eu, fixava-me nos olhos e na dureza que encontrava e afirmava que o amor não tinha ali lugar… Associava às muitas histórias de mulheres com vidas duras, para quem um bom casamento e um bom marido, era não lhe baterem, não se embebedarem e serem amigos de trabalhar. Em que ser uma boa mulher era ser trabalhadora, poupada e zelar bem da casa. E em que o corpo parece só poder existir como máquina, com tarefas a cumprir e que se usa até ao limite. O limite do cansaço, da dor, da artrose, da deformação… O corpo como inimigo contra o qual há que teimar e lutar… As dores, trazidas para a cadeira da consulta como sabotadoras e desligadas numa vida feita de esforços e de abusos. Do amor?… Sim, pelos filhos… Sim… quase sempre numa enorme nostalgia da mocidade… como um tempo em que houve algum espaço para desejar e querer e que permanece idealizado… Agora são as dores, a tensão alta, o colesterol, o coração, a insónia, os nervos… como se a vida nunca desse nem tréguas nem descanso… como um castigo que tem que se cumprir.
O casal já desapareceu de cena… continuo a divagar, a imaginar as suas rotinas… o chegar a casa, descarregar o carro, ainda muito que fazer… os dois curvados, de tronco em diagonal, pois a coluna já mais não permite, mas os gestos e os hábitos fossem mais fortes e se tivessem que cumprir. Sem palavras, sem risos, numa cumplicidade de hábitos feitos de tantos anos, de tanto trabalho… “Mas e o amor?” Insiste ele.” Achas mesmo que não tem lugar ali, em nenhum gesto? Em nenhum momento?…”
De repente sorrio… Lembro-me doutra narrativa… A duma jovem mulher, forte, dura, pragmática. Conta-me que depois do trabalho e de dar de jantar aos filhos, vai a casa de vários velhotes da vizinhança para “os esfregar”… explica: ”Eles vivem sozinhos e todos sofrem de dores e de reumático… mas não têm quem lhes ponha pomada para as dores… Não são massagens… Eu não sei fazer massagens… Eu só os esfrego… ponho a pomada das dores e esfrego-os… e eles querem que eu volte… e dão-me sempre qualquer coisa… um pacote de leite, comida… até me chegam a dar dinheiro… outro dia um casal deu-me 30 euros… só porque eu os esfrego, assim com força… quase todos os dias tenho mais de um sítio para ir… Olhe, eu fico contente, faço-lhes bem, gosto de fazer isto e eles também ficam felizes… agradecem e falamos da vida, das doenças, das coisas que acontecem… e sempre trago mais qualquer coisa para casa, para os meus… fazemos bem uns aos outros”.
Sorrio com a generosidade do gesto, da troca, “fazemos bem uns aos outros…”. Sim, talvez aquele sábado fosse acabar assim para aquele casal, com um momento de descanso, em que é finalmente possível abrir a casa e o corpo para a presença e o toque de outros… e aliviar as dores. O resto… não sei.

Paula Carvalho
paulatcarvalho@gmail.com