Por quem os sinos dobram!

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Saikiran Datta
investigador

A reclamação que o toque do sino da igreja na aldeia incomoda alguns está de regresso. Dantes no Sobral da Lagoa, agora em Turquel. Se o problema aqui cruza com o elemento religioso, noutros lugares o alvo é a ruralidade, onde até o barulho dos animais de campo já chegou ao tribunal. A sentença judicial favoreceu, em 2019, o galo Maurice num caso francês que marcou a vitória das tradições rurais. Viver no mundo rural implica coabitar com a essência do campo. O problema manifesta-se quando o forasteiro chega à aldeia com uma mentalidade diferente. Habituado ao mundano, este impõe os seus hábitos às vivências dos autóctones. É absurdo que a vontade individual prevaleça sobre a vontade coletiva, redefinindo por capricho as tradições centenárias de um povo. Neste drama de relações intersubjetivas, ele dobra os sinos à sua vontade e projeta as suas prioridades sobre os outros em confronto com um estilo de vida prevalecente. Na ordem correta das coisas, deve ser o indivíduo a integrar-se na comunidade e não o inverso.
O mundo rural, apesar de ser pobre, é rico em valores. Segue uma ordem espiritual do que uma temporal material. Os desafios da natureza, as dificuldades de sobrevivência e a necessidade de rezar levaram o rural a erguer locais de adoração – ermidas, capelas, cruzeiros e alminhas. Por sua vez, entende-se que a sociedade pós-moderna seja ateísta, onde a palavra ‘deus’ está fora da moda. O homem rural continua ancorado à terra em oposição ao indivíduo alienado da realidade social.
O sino da igreja está ligado à vida do camponês, remanescente de um tempo em que este marcava as horas e regulava o ritmo da sua vida. A torre sineira funciona como um chamamento dos fiéis à oração. Para além da função espiritual, tem ainda uma outra social nos espaços semi-urbanos de confortar o idoso e o solitário. As suas vidas são reguladas hora-a-hora pelo toque da igreja. A melodia de “Ave Maria” transcende à desarmonia inerente de uma sociedade depressiva a necessitar de outros ‘sinos’ para se revitalizar. As práticas costumeiras invocam uma ordem social com conotação espiritual e, como tal, não prejudicam nem provocam pecado, antes apelam à boa razão e aos bons costumes, fortalecendo a fé e a esperança. O sino que não toca e o galo que não canta anunciam a morte da ruralidade.
Os ideais do indivíduo de hoje são demasiados virtuais para reflectir a realidade do mundo rural. Em si um instrumento de metal barato, oco e barulhento, martelado e dobrado sem direcção, qualquer sinfonia vinda do exterior lhe é perturbadora e o mundo rural uma discórdia. ■