Um conto de duas cidades

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No final da década de 50 os meus pais decidiram mudar de Lisboa para Caldas da Rainha, cidade hospitaleira e com pessoas afáveis; tinha um comércio florescente, uma vida social invulgarmente animada, escolas para os filhos, inúmeros desportos (e o Caldas estava na 1ª divisão!), várias colectividades muito dinâmicas (o meu pai foi presidente dos Bombeiros), excelentes praias nos arredores, uma oferta cultural invulgar para a sua dimensão – cinemas, teatro, museus, biblioteca – e inúmeras tertúlias (rivais e complementares) nos diversos cafés e espaços públicos. O Parque era a sala de visitas da cidade, a Mata o seu pulmão.
Conheci Caldas como a capital da Estremadura, onde a burguesia de Leiria, Alcobaça, Santarém e Torres fazia compras e passava férias; vi o crescimento da Secla e da Bordalo Pinheiro, da Rol, da SEOL, da Frami, da Fábrica do Sabão, dos móveis Serrano (que equipavam cinemas e hotéis em todo o país), do Oliveira (fabricante de móveis manufacturados (esperava-se uma eternidade pelo privilégio de comprar um), segui a construção da Escola Comercial e do Colégio Ramalho Ortigão (que nos permitiam uma carreira escolar pré-universitária sem sair da cidade). Conheci espaços com conceitos na época inovadores: Tália, Tertúlia, Góia, Turita, Ferro Velho e Azenha do Inferno, depois Maratona, Camaroeiro, Cardenha… não cabem aqui todos.

A cidade desenvolvia-se com harmonia e os meus pais acabaram a morar numa zona nova, o Borlão, onde ainda hoje vivo.
Vivo no mesmo local, mas não na mesma cidade. No local onde brinquei com os meus amigos, não mora hoje uma criança, as casas foram substituídas por escritórios e depois abandonadas. Construiu-se o edifício dos Paços do Conselho (e Finanças) num largo que já não suportava o trânsito e o estacionamento que isso implicou. Construíram-se prédios desproporcionados sem garagens (as multas eram simbólicas…) nas avenidas contíguas (1º de Maio e Independência Nacional) e gerou-se o caos – erro depois repetido no Bairro Azul. Arrancaram-se as árvores onde íamos buscar folhas para os bichos-da-seda e plantou-se betão. Na antiga Praça do Peixe também se construiu um deserto de pedra e cimento. “Já há muitas árvores no Parque, na cidade só dão despesa”, explicaram-me. Mas mantiveram-se os graffitis, certamente porque não necessitam de rega, poda ou adubos.
Fecharam-se ruas ao trânsito sem plano nem objectivo, as artérias pedonais e a Praça da Fruta viram sair dali o comércio tradicional deixando espaços vazios… Os visitantes que se aventuram hoje de carro pelo interior das Caldas encontram um labirinto de ruas estreitas e sem indicações, julgando sempre que estão perdidos.
O centro histórico foi ignorado, aqui e ali ferido com construções delirantes, mamarrachos arquitectónicos, como nas Praças da Fruta e do Peixe. O Centro Cultural é um elefante branco no meio de construções inacabadas, onde nada se passa e, quando passa, há músicos que tocam de gorro e cachecol porque o ar condicionado está avariado. A companhia de teatro, único vestígio de uma cidade culturalmente viva, não tem lá lugar não se sabe porquê…
Construíram-se museus que são espaços mortos e desertos, em vez de promover a potenciação do acervo cultural existente, concentrando-o em museus dinâmicos, com uma ligação efectiva à cidade – obras de fachada, para “encher o olho”, foram a bandeira da gestão autárquica cessante. A ESAD tem potencial para inovar, melhorar e modernizar as Caldas da Rainha: a Câmara tem sabido usá-lo? Tricas e rixas pessoais substituíram o verdadeiro debate de ideias e projectos, nada disto preocupa verdadeiramente os responsáveis camarários.
Varridos por este tsunami de incompetência, ignorância e submissão aos interesses da construção civil, a terra está feia, suja e deserta de pessoas a partir do fim do dia. Sobram-nos ainda o Parque e a Mata, olhados com indisfarçável voracidade pelo Poder e por isso ameaçados por mais betão.
A tíbia reacção perante a situação do Hospital Termal e o silêncio face à desarticulação do Centro Hospitalar ameaçam a nossa vida e saúde – o preço de uma nomeação política não pode ser tão alto e pago por tantos!
Quando olho para a proposta eleitoral de reconduzir todos os responsáveis por esta situação (excepto o presidente), só posso desejar abrir a janela, arejar a minha cidade e respirar a essência da Democracia: a alternância. Por isso nestas eleições apoio Rui Correia, porque só ele permitirá a renovação, a inovação e a recriação das Caldas da Rainha.
João Jales