Um Livro Por Semana 362 – A noite das mulheres cantoras, de Lídia Jorge

0
417

A literatura está sempre à frente da sua época, os escritores conseguem ver mais longe do que os políticos. Basta lembrar Carlos de Oliveira («Uma abelha na chuva») que adivinha e anuncia o regresso dos retornados a Portugal ou Milan Kundera que em vários livros antecipa a queda do Muro de Berlim. Lídia Jorge (n.1946) escreve e descreve a noite das mulheres cantoras numa Lisboa de 1987 que a escrita recupera em 2008 – 21 anos depois. Essas cinco mulheres cantoras («sou o quinto elemento de um agrupamento de música») fazem um pacto de não-amor («prometemos que não manteríamos ligações de amor de espécie alguma») mas a morte de uma delas («Madalena») faz lembrar os mortos de Lampedusa em Itália. A África expulsou os europeus («Expulsá-los-emos até à sua última pegada») mas os filhos desses apanhadores de chá morrem às portas da Europa em barcos superlotados, frágeis e clandestinos. Numa narrativa que se comenta a si própria há sempre duas hipóteses. Ou o geral («ainda haveria quem dissesse que foi uma história de vingança entre colonos e colonizados») ou, na voz de Gisela, o particular: «foi apenas uma história de gente, a história de um grupo vítima de uma mulher estúpida e sem escrúpulos e essa mulher sou eu».
Nesta história surge uma dupla inscrição: ora mágica ora realista. Começa num piano cujas teclas se movem sozinhas e acaba num tempo determinado: «esqueço a harmonia da noite estupenda criada por Gisela Batista para regressar a esse dia, último trimestre de oitenta e sete. O tempo era outro.» Em termos simples podemos afirmar que a arquitectura do livro se organiza à volta do grupo de mulheres que quer gravar um disco mas alcança as mudanças nas pedras e nas almas (A Ideal das Avenidas é hoje um Hotel) oscilando sempre entre a verdade e a mentira, entre a ficção e a memória, num Mundo dividido pelo Muro de Berlim: «Ou os homens se tonam irmãos e a Humanidade se salva ou a desigualdade campeará, a mentira vencerá e a Terra irá começar a desintegrar-se». A vida pode ser uma simples oportunidade, a vida é só uma e ficam sem resposta os «que exigem que nos separemos em partes que são inseparáveis. Não podemos ser de dois mundos». Viver será, por isso, «atraiçoar» porque «sobreviver implica trair.» As mulheres cantoras querem ser alguém, logo serem vistas do lado de fora e não do lado de dentro: «àquela hora uns trinta ou quarenta grupos portugueses ensaiavam como nós, cada um em sua garagem e todos com a mesma ambição». É a competição, a TV, o esplendor do efémero. Em resumo – um livro inesquecível com personagens que nos vão acompanhar mesmo depois da última página.
(Publicações Dom Quixote, Capa: Rui Garrido, Foto: Pedro Loureiro, Revisão: Clara Boléo, Edição: Cecília Andrade)

José do Carmo Francisco