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Gazeta das Caldas
| D.R

«30 Crónicas I – II» de Emanuel Jorge Botelho

Gazeta das CaldasEm 1986 assinei na «Seara Nova» um ensaio sobre a Poesia Portuguesa no qual referia o trabalho poético de Emanuel Jorge Botelho (n.1950) como uma das mais importantes para acompanhar com atenção. É uma satisfação perceber que o cronista não desmerece o poeta. Estas crónicas, publicadas antes no semanário «Terra Nostra» de Ponta Delgada entre 2006 e 2011, juntam três inscrições dispersas (memória, divagação, síntese) que é habitual considerar pertencentes à diarística, ao conto e à poesia. Aqui registamos excertos de quatro das crónicas. Numa delas o autor faz a delimitação do seu mundo: «O meu mundo foi-se embora. Já não cabe em mesa alguma, já não tem trigo nem pulsos. Os hábitos mais pequeninos foram expulsos do meu mundo; coisas simples e lavadas de que o meu mundo gostava. Entrei numa papelaria e pedi uma folha de papel mata-borrão. – «Já não se fabrica!» Disse-me, com voz condoída, a funcionária do balcão. Desci a rua, pus os olhos no mar, encaminhei-me para casa. Num tosco diário que por lá deambula, escrevi: 9.Agosto.2007 O meu mundo foi-se embora. Já não há papel mata-borrão…» Dito de outra maneira noutra crónica, trata-se de um mundo onde a mediocridade avança: «Anda por aí couraçada de altivez, imbecil no trato, redonda no pensamento. Anda por aí há tempo vário, alimentada e sadia, infusa em água de saldos. Anda por aí de crina alvoraçada, como quilha de nome inútil em barco falho de leme. Não opina, não sabe o que isso é, não entende três palavras numa ardósia de duas linhas. É malina, adaptativa, grosseira, bruta de face. Quando pega, chega célere à pandemia. Não distingue crença, rendimento, grau de estudo, formato do colarinho. De que falo? Falo da mediocridade. E porque falo da mediocridade? Porque ela rasgou a memória e forjou o calendário. Porque se apropriou, com inaudita desfaçatez, do nosso tempo e do nosso espaço.» Noura crónica, recordando amigos muito queridos (José Manuel Cordeiro da Silva e Tito Magalhães) o autor faz o elogio da inteligência: «A inteligência é uma ave rara, um risco de asa gravado no céu. Em ida noite de sono arredio, decidi iniciar o arrolamento dos meus anos de Liceu; acontecimentos e pessoas que os mecanismos da lembrança teimam, generosamente, em deixar aconchegados no tempo até hoje.» Entre a mediocridade e a inteligência a resposta está naquilo a que o autor chama «Benefícios da Leitura». «Tira as nódoas da alma. Cicatriza a solidão. Lava a inteligência. Agita a preguiça. Protege a memória. Purifica a visão. Potencia a humildade. Dá fome. Não suja as mãos. Coloca pirilampos na escuridão. Clarifica a voz. Vale tanto como mil imagens. Apaga a televisão.»
Em boa hora resgatadas do efémero do jornal, aqui estão 60 crónicas de um poeta que nunca deixa de o ser. Começou a publicar em 1980 («Terra Mote ou a Destruição dos Búzios») e não tem parado de escrever mesmo quando regista num caderno de anotar lamentos: «o progresso é, tantas vezes, o fim do futuro».
(Edição: Letras Lavadas/Artes e Letras, Fotografia: José António Rodrigues/Puliçor, Capa e Ilustrações: Urbano, Composição: Emanuel Rodrigues, Arranjo gráfico: Urbano, Emanuel Rodrigues e Pedro Melo)