O Drugstore 23 foi o primeiro centro comercial das Caldas e ficava na Rua Fonte do Pinheiro

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Marta Calhau, a actual arrendatária do espaço, Artur Pires, um dos lojistas do Drugstore e Faustino Cunha, proprietário do imóvel | Natacha Narciso

Entre 1976 e 1978 houve nas Caldas uma experiência que antecedeu em vários anos o aparecimento dos centros comerciais. Designava-se Drugstore 23, ficava na Rua Fonte do Pinheiro  (no local onde está hoje o restaurante Marta’s Place) e integrava lojas de roupa, de louça, de acessórios de automóveis, livros, discos, presentes, brinquedos, sapataria, eletrodomésticos, tabacaria, artigos para criança e um bar.
Comercialmente o projecto não foi bem sucedido porque  “estava à frente do seu tempo”, diz Mário Freitas, um dos entrevistados que trabalhou no Drugstore, na loja de louça do pai. Uma das ideias para promover aquele espaço comercial foi uma corrida de karts na Avenida, que teve lugar em 1978 e que contou com uma assistência de muitas centenas de pessoas.

 

O Drugstore 23 abriu próximo do Natal de 1976. Na edição da Gazeta das Caldas do dia 17 de Dezembro daquele ano, a empresa promotora – cujos sócios eram Jaime Neves, Micael Faria e Carlos Plácido – agradecem “a todos os que ajudaram a concluir em 32 dias o Drugstore 23”. Tratava-se de um projecto comercial inovador, cujo anúncio dava a conhecer que tinha 19 lojas e um bar, que iria estar aberto todos os dias entre as 14h00 e as 24h00 (num horário especial da semana de Natal). Referia-se então que este era “um centro comercial que lhe proporciona uma nova dimensão nas suas compras”.
A verdade é que nas Caldas não existia nada idêntico. Refere a Gazeta das Caldas que “após várias prorrogações o novo complexo comercial caldense abriu portas no domingo à noite tendo sido visitado por centenas de pessoas”. O artigo, publicado na primeira página deste semanário, informava ainda que esta era “uma nova perspectiva de encarar o comércio, através da concentração de lojas de várias especialidades num mesmo bloco”. Mais: o Drugstore23 teria as instalções aumentadas com o previsto alargamento do 1º andar e aí chegaria às 23 lojas, tal como o nome indicava. “A médio prazo conta-se com o alargamento a um edifício que virá a ser construído”, informava o mesmo jornal.
A maioria dos espaços comerciais teria entre cinco a seis metros quadrados e onde hoje se situa o quiosque (na esquina entre a Rua Fonte do Pinheiro e da Avenida 1º de Maio) era a montra do Drugstore, que era usada por Carlos Nascimento, um dos lojistas. Ali colocavam-se motas de corrida e peças de kart, como chamariz para que estas peças mais invulgares, ligadas ao sector automóvel, pudessem ajudar a atrair clientela.

Agregar várias lojas num espaço

“A ideia inicial foi minha e do Micael Faria”, recorda o caldense Jaime Neves, que além de pertencer à empresa que criou o Drugstore 23, também era o responsável pela loja Arca, de artigos de decoração.
 “O primeiro espaço que nós pensámos para o Drugstore foi na Rua Miguel Bombarda”,  disse o responsável, explicando que se pretendia então agregar no máximo, entre quatro a seis lojas. Só que aos dois sócios juntou-se Carlos Plácido, locutor de uma rádio nacional (onde coordenava o programa Caldas da Rainha em Foco) e que possuía uma agência de publicidade. Este último convenceu Jaime Neves e Micael Faria a levar o projecto comercial para a Rua Fonte do Pinheiro, onde o empresário Faustino Cunha acabara de construir um espaço adequado para a instalação de lojas em vários pisos. E assim fizeram.
Os três sócios tinham espaços comerciais no Drugstore: Jaime Neves possuía a Arca, Micael Faria o Fonógrafo (loja de discos) e Carlos Plácido uma loja que era gerida pela sua mulher. Eram pois os responsáveis pelo aluguer dos restantes espaços comerciais.
Só que há 40 anos não era fácil criar uma nova zona comercial. “Tentávamos ter o Drugstore aberto todos os dias até à meia-noite”, disse Jaime Neves, explicando que as lojas abriam portas às 10h00, só que, a partir das 22h00, eram sobretudo os lojistas que conviviam entre si, dando movimento ao bar. “Tínhamos a ideia de criar um centro comercial nas Caldas onde as pessoas pudessem conviver e ter comércio aberto até mais tarde”, sintetizou Jaime Neves, que lamentou o facto do projecto não ter sido bem sucedido, não querendo aprofundar os motivos que levaram ao seu cessar.

Da capital para as Caldas

Um dos lojistas do Drugstore 23 foi Artur Pires, o responsável pela casa Charlotte.  “Eu vim de Lisboa, já era vitrinista e decidi abrir a minha loja de pronto a vestir no Drugstore 23 em 1976”, contou à Gazeta. O lojista tinha tirado o seu curso de vitrinista e decorador de lojas em Inglaterra e acabou por se estabelecer nas Caldas, cidade que naquela altura, em relação ao comércio, “era uma Lisboa em ponto pequeno pois havia lojas boas, com artigos de alta qualidade. Era uma terra de belos comerciantes”, referiu Artur Pires.
A larga maioria das lojas do Drugstore 23 eram segundos pontos de venda, sucursais dos espaços comerciais situados no centro da cidade.
“Aquilo era algo muito evoluído para a época. Era uma espécie de montra e um investimento com vista a expandir o comércio para esta zona que era então nova na cidade”, referiu Artur Pires.
E o que vendia na sua boutique Charlotte? “Trouxe marcas de renome, um outro tipo de oferta de pronto a vestir de senhora, diferenciada do que existia”, disse o comerciante, que prosseguiu sempre o vitrinismo tendo sido o responsável pela decoração de muitas lojas do comércio das Caldas.
Além de algumas marcas internacionais, a roupa de senhora que se vendia na sua boutique incluía marcas caldenses. Uma delas, a John and Jane, era uma marca de calças feita na Fábrica dos Jeans, que actualmente acolhe um centro incubador de empresas. A marca das calças caldense “era promovida a nível nacional pelo filho do dono da fábrica, o Tó Louro”.

Da cave para a o rés do chão

E se no rés do chão do Drugstore havia este pronto a vestir, funcionou também no piso térreo uma cabeleireira. Na cave havia vários estabelecimentos: a 107 (livros), a Arca (prendas), o Fonógrafo (discos), um pronto a vestir, uma loja de peças de automóveis, uma sapataria, uma loja de brinquedos e uma outra, de loiça. Esta última era a sucursal da loja Gôndola que pertenceu a Mário Moreira Freitas e que teve como responsável o seu filho, Mário Freitas. A loja principal desta família ficava na Rua Coronel Soeiro de Brito, próximo da Rodoviária. A segunda ficava na cave do Drugstore 23, só que em 1977, quando Artur Pires fechou a sua boutique no rés do chão, o pai de Mário Freitas mudou-se para o piso térreo, passando a ter uma porta para a rua.
Mário Freitas recorda que, no último ano do Drugstore 23, foi feita uma acção de marketing que tinha em vista promover aquele espaço comercial: uma corrida de karts.
Carlos Nascimento, um dos lojistas era também corredor desta modalidade e conseguiu, junto da Federação Portuguesa de Automóvel e Kart, viabilizar uma corrida nas Caldas da Rainha. A Avenida 1º de Maio (e uma parte da Independência Nacional) foram transformadas em pista de corrida, com taipais a delimitar o percurso.
“A corrida foi um sucesso com centenas de pessoas a assistir ao longo do trajecto”, disse Mário Freitas, acrescentando que esta foi ganha por Carlos Nascimento. Em segundo lugar classificou-se Nigel Ferranti, um inglês que então vivia em Cascais. Em terceiro lugar ficou o corredor Dinis de Almeida.
“Para a maioria das pessoas, aquele evento foi o primeiro contacto com o mundo das corridas”, disse Mário Freitas, recordando ainda que o circuito começava na Avenida 1º de Maio ia até à Estação, depois desviava pela Independência Nacional e voltava a entrar na 1º de Maio, que então ainda tinha vários terrenos baldios.
Além da oportunidade de assistir à corrida de karts na cidade, realizou-se também uma exposição de motas de corrida na montra do Drugstore 23, onde hoje fica o quiosque da Avenida.
Apesar da competição ter sido o ponto alto em relação ao Drugstore 23 e de ter atraído muita gente, a verdade é que o projecto comercial não tinha pernas para andar.
Os clientes eram poucos e as expectativas iniciais dos lojistas saíam goradas. A Avenida era ainda nova, numa zona “sem nada de especial”, com poucos prédios, muitos terrenos baldios e árvores até à estação, que formavam uma espécie de alameda. O centro da cidade não era ali.
 “O Drugstore 23 ficava longe da Rua das Montras e do então centro da cidade…”, disse Mário Freitas, que ao fim de alguns meses percebe que o projecto não tem viabilidade económica. Ao fim de uns tempos “uma pessoa percebe que está a mandar dinheiro pela janela fora…”, referiu apesar de ter achado que aquele era “um projecto à frente do seu tempo”. O Centro Comercial da Rua das Montras só viria a abrir portas em 1985.
Apesar de tudo, o pai de Mário Freitas decidiu manter a loja de loiça no Drugstore “até à última”,  tendo sido dos últimos lojistas (pai e filho) a deixar o espaço em 1978.
O então comerciante conta que tudo acabou por acontecer muito rápido, com os lojistas a abandonar o espaço. “Não me lembro bem das circunstâncias, mas o motivo principal que causou a inviabilização do projecto foram as rendas elevadas”, disse.

Proprietário quis baixar rendas

Faustino Cunha, o proprietário do espaço, aceitou em 1976 a proposta dos três sócios de instalar o Drugstore naquele edifício que tinha acabado de construir. “Não fui eu que tive a ideia, mas o projecto comercial era entusiasmante, dado que não havia aqui nada”, recordou o caldense de 78 anos, responsável pela edificação de muitos imóveis na região. Nos primeiros tempos, o projecto funcionou bem e atraía clientes enquanto era novidade. Depois começou-se a ver que havia pouca afluência de gente, além de se ter constatado que os promotores do Drugstore 23 exigiam elevadas rendas aos lojistas.
O proprietário Faustino Cunha queria que as rendas fossem alteradas, de forma a viabilizar o projecto comercial e chegou a pedir uma reunião de modo a levar a ideia avante. Só que os promotores – Jaime Neves, Micael Faria e Carlos Plácido – não aceitaram baixar as rendas. Segundo Mário Freitas, com essa atitude os três sócios fundadores “acabaram por perder tudo”.
Os lojistas acabaram por sair, abandonando os espaços comerciais arrendados a meio do ano de 1978. Na Gazeta das Caldas, em Agosto desse ano, já surgem  anúncios ao Menu, um novo projecto que foi para o mesmo local.
Este novo espaço foi também inovador na época pois foi o primeiro self-service das Caldas. Segundo Faustino Cunha, “teve um período alto” mas depois decaiu por causa de um desentendimento entre os dois sócios. “Começaram a surgir situações anómalas e eu optei por pagar o trespasse e fechar o espaço”, contou o responsável. Mais tarde, voltou a alugá-lo novamente e,  mais uma vez,  funcionou mal.
Por sugestão de uma agência imobiliária, voltou, há três anos, a arrendar o espaço à chef Marta Calhau que criou com sucesso o restaurante Marta’s Place.  “É uma casa que é uma maravilha e vamos continuar a parceria”, disse o proprietário.
Marta Calhau tem a intenção de reunir num jantar convívio as pessoas que fizeram parte do projecto Drugstore23.

 

Drugstores anteciparam centros comerciais

 

Na época existiam em Lisboa pelo menos três Drugstores, uma deles o Apolo 70, que abriu portas em 1971 e que, segundo o Público de 29/05/2011 “veio revolucionar a forma como se comprava, se convivia, e se via cinema em Lisboa”. O artigo cita o historiador Nuno Ludovice que investigou aquele drugstore alfacinha, explicando que o conceito veio inicialmente dos EUA, mas que acabou por chegar a Portugal por influência francesa. Nos anos 60 tinha surgido na capital francesa o Publicis com “um conceito unitário de espaço que agregava ambientes diversificados, mas integrados através das formas, das cores, dos materiais, da luz”.
O Apolo 70 ainda hoje existe, apesar da sua sala de cinema ter sido encerrada nos anos 90. Ainda sobrevivem alguns dos espaços originais como uma livraria, uma farmácia, uma loja de animais, um cabeleireiro e um snack-bar. No artigo fala-se ainda de uma loja de brinquedos, uma outra de gelados e do bowling. Teve pois melhor sorte que o Drugstore 23 das Caldas da Rainha que seria o quarto em Portugal e que existiu entre Dezembro de 1976 e Julho de 1978.  N.N.