«A espiritualidade clandestina de José Saramago» de Manuel Frias Martins

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Gazeta das Caldas

livroO ponto de partida deste ensaio de 188 páginas é o estudo de dois romances de José Saramago – Caim e O Evangelho segundo Jesus Cristo. Já em 1993, no prólogo da peça de teatro In Nomine Dei, Saramago tinha escrito «Não é culpa minha nem do meu discreto ateísmo, se em Münster, no século XVI, como em tantos outros tempos e lugares, católicos e protestantes andaram a trucidar-se uns aos outros em nome do mesmo Deus».
José Saramago tem antepassados nesta abordagem: Dostoievski («A beleza salvará o mundo»), Antero de Quental («a Arte é a coisa santa da humanidade»), Saramago ele-mesmo («o autor está no livro todo, o autor é todo o livro mesmo quando o livro não consiga ser todo o autor»), Flaubert («Madame Bovary, c´est moi»), Saramago de novo («O que eu queria defender mas não sei se me chegou a língua, era assim uma espécie de homerização do romance») e Paul Valery – «a literatura não é feita de ideias mas sim de palavras».
Saramago deixou de publicar poesia em 1966 (Poemas Possíveis) mas fez uma advertência: «Só direi / Crispadamente recolhido e mudo / Que quem se cala quando me calei / não poderá morrer sem dizer tudo». No livro Caim Saramago relembra – «A história dos homens é a história dos seus desentendimentos com deus, nem ele nos entende a nós nem nós o entendemos a ele». Mas já antes em 1994 nos Cadernos de Lanzarote adverte («Ainda acabo teólogo. Ou já o sou?») e em 1995 completa «se é verdade que não sou teólogo, teólogos também não foram Marcos, Mateus, Lucas e João, autores, eles como eu, de Evangelhos».
Raul Brandão no seu Jesus Cristo em Lisboa coloca esta frase na voz do Diabo: «Tu criaste o homem, mas eu forneci-te o barro. Criaste o mundo mas eu dei-te a matéria de que ele é feito». Mas outros autores como Balzac, Rilke e Upton Siclair escreveram contos e romances colocando Cristo na Terra. E porque toda a Literatura é uma homenagem à Literatura, há uma frase de Saramago («saímos todos do gibão de Raul Brandão») que recorda a ideia de Dostoievski  – «saímos todos de debaixo do Sobretudo de Gogol».
Um dos aspectos mais curiosos deste ensaio é revelar que tanto o americano Norman Mailer como o britâncio Frank Kermode fingiram miseravelmente desconhecer que já em 1994 existia o livro «The Gospel according to Jesus Christ» de Saramago com recensões publicadas no «The New York Review of Books».
Francamente negativo é o resultado da praga do aborto ortográfico que caiu sobre estas páginas: ver Humanidade escrita em caixa baixa é doloroso, insólito e repugnante.
(Editora: Fundação José Saramago, Grafismo: Estúdio Manuel Estrada)

José do Carmo Francisco