Porquê um Hospital Termal nas Caldas da Rainha no Fim do Século XV?

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Notícias das CaldasEm três momentos diferentes estudei a criação do Hospital Termal Rainha D. Leonor e em cada uma dessas ocasiões tive oportunidade de me aperceber de aspectos diferentes que, em conjunto, ajudam a entender os seus aspectos inovadores e o modo como a sua Fundadora criou o modelo que acabou por instituir nas Caldas.
O processo de criação não parece ter sido linear, querendo com isto dizer que não parece ter havido a ideia de criar um Hospital ab initio e que esse facto poderá explicar a grande inovação, pelo menos a nível da Europa, de criar um Hospital Termal.
Em 1984 escrevi um texto, espevitado pelo Professor Artur Nobre de Gusmão, destinado a um livro que não chegou a ser publicado no contexto das comemorações do V Centenário do Hospital. Aí descobri, para meu espanto, que até 1485 não existiam em Portugal hospitais, tal como os concebemos hoje. Algumas das organizações existentes chamavam-se ‘hospitais’ mas não possuíam médicos, nem ‘internavam’ só doentes e estes não eram nem vistos à entrada, nem seguidos sistematicamente dentro do ‘internamento’. Consoante os casos, poderiam receber peregrinos, viúvas, órfãos, estudantes, para além de doentes.

Vinte anos depois voltei ao tema. Desta feita, para um Colóquio organizado pela Sociedade Portuguesa de História dos Hospitais, de que sou um dos fundadores. Propus-me então pesquisar duas vertentes da Fundação do Hospital: a inovação e o espírito de caridade que presidiu à sua criação. Descobri então a razão justificativa para a inexistência até então de Hospitais em Portugal: o corte com a evolução da ciência médica greco-romana representado pela queda do Império Romano do Ocidente no século V (oficialmente em 4 de Setembro de 476, com a deposição de Rómulo Augusto pelo chefe germânico Odoacer) e o desaparecimento da civilização fundada em cidades. O conhecimento e a prática da medicina remeteram-se, no Ocidente, aos Conventos.
No Oriente as coisas passar-se-iam de modo diferente. Foi o cisma (431, Concílio de Éfeso) protagonizado pelo Patriarca de Constantinopla, o Bispo Nestor, que haveria de forçar o exílio de um grupo de médicos nestorianos, primeiro para Edessa, na Ásia Menor e depois para Gundishapur na Pérsia, onde contribuíram para fundar um Hospital académico que em tudo se assemelharia aos actuais, em termos de especialização, prática e ensino da Medicina. Teve o seu período áureo nos séculos VI e VII. O seu modelo viria a servir para replicar hospitais famosos no mundo árabe (Bagdad, Cairo e Damasco). Nele se juntou o conhecimento médico do Oriente e do Ocidente.
O ensino institucional da Medicina retomou o seu caminho na Europa através da Escola de Salerno (séc. IX), no Sul da Itália, em conjunção com o Mosteiro do Monte Cassino, a qual recebeu o conhecimento médico greco-romano e árabe, através de Constantino, o Africano, retomando, assim, o processo evolutivo, suspenso com a queda do império romano do Ocidente. Daí até ao século XV, a criação de Universidades, com o ensino da Medicina, permitiu conduzir ao aparecimento de hospitais semelhantes, no essencial da sua organização, aos hospitais dos nossos dias, tendo sido a um deles que D. João II e a Rainha D. Leonor foram buscar exemplo e lição para criarem o Hospital de Todos-os-Santos e o Hospital da N.ª S.ª do Pópulo.
O caso foi o do Hospital de Santa Maria Nuova de Florença, considerado o melhor de toda a Cristandade, no final do século XV.
Foi este percurso que segui até à minha última incursão, destinada a uma conferência promovida em 16 de Abril passado, pela Associação Portuguesa de Enfermeiros, para entender a criação do Hospital Termal.
Restaram-me duas questões a exigirem clarificação:
1. A questão da primazia, entre o Hospital de Todos-os-Santos e o Hospital das Caldas.
2. A explicação da criação de um Hospital com as características de termal, pela primeira vez na Europa e quiçá em todo o Mundo.
A questão da primazia coloca-se por dois factos: a Rainha D. Leonor não terá começado a sua obra senão para criar condições de alojamento e tratamento termal nas nascentes de água mineral das Caldas e só mais tarde terá inflectido o projecto para criar um hospital; e ainda a anterioridade do Regimento do Hospital de Todos-os-Santos, em face do Compromisso do Hospital Termal. Convém, no entanto, não empolar esta questão, pois a ideia da criação de um e do outro hospital só pode ter sido partilhada pelo Rei e pela Rainha. O grande projecto era o da criação de um hospital moderno em Lisboa, unificando a miríade de pequenas instituições ditas hospitalares da capital, já acalentado por D. Duarte e que chegou às mãos de D. João II para ser resolvido. Por isso, o Hospital das Caldas coloca-se num outro plano, de tal modo que há muito boa gente em Lisboa que se surpreende com esta questão da primazia.
Apesar de tudo, é natural que o arranque do Hospital, nas Caldas, mesmo que sem Compromisso, se tenha iniciado antes do de Todos-os-Santos, dando às Caldas uma magríssima primazia, com o ´título’ de primeiro hospital português. É, todavia, assunto a exigir investigação para que a questão seja definitivamente resolvida.
A mudança de orientação, no sentido de criar um hospital em vez de simples instalações termais e de alojamento poderá explicar o acto de inovação que foi a criação de um hospital termal. Vejamos alguns aspectos:
1. As obras de construção terão começado em 1485 e os primeiros tratamentos em 1488, ano em que terá sido decidida a reorientação do projecto para criação de um hospital.
2. A palavra hospital não aparece nos primeiros documentos relacionados com a iniciativa da Rainha, designadamente na Provisão de D. João II, de 4 de Dezembro de 1488 concedendo privilégios a quem povoasse o lugar das Caldas. Aí fala-se de Enfermos que se iam curar aos banhos das Caldas e em casas de aposentos que a Rainha mandara fazer de novo.
3. A medicalização do projecto registou-se, porém, logo no início do mesmo com a avaliação comparativa sumária dos efeitos das águas das fontes das Gaeiras e das Caldas, sob a responsabilidade de Mestre António. Por isso, é natural que tenha havido uma observação médica do funcionamento das ‘termas’. As condições dos doentes poderão ter tido impacto na ponderação das melhores condições para abordagem dos seus problemas. As carências de saúde próprias da época poderão ter ajudado a agravar a casuística da procura termal. Numa personalidade como a da Rainha D. Leonor, com o seu imenso poder e riqueza, aos trinta anos de idade, na sua primeira grande obra, é natural que a reorientação para um Hospital tenha sido um pequeno salto lógico.
4. Jorge de S. Paulo refere-se à existência de médicos antes do Compromisso. Desde que data exacta interessaria saber, através da documentação do Hospital.
5. A construção da Igreja e do Hospital formam um todo e fazem parte já parte da mudança de rumo decidida pela Rainha D. Leonor, a primeira acabada em 1500 e o segundo 2 a 3 anos depois.
Os anos de 1485 a 1488 são, pois, de grande interesse para tentar discernir o percurso lógico da decisão da Rainha D. Leonor. Quais as suas fontes de informação, no que respeita à evolução da medicina hospitalar na Europa e, em particular em Itália? Por certo, os médicos da Corte, as fontes de D. João II para a criação do Hospital de Todos-os-Santos, D. Jorge da Costa e demais personalidades religiosas portuguesas em Itália, familiares na realeza europeia, de que Maximiliano da Áustria era um dos mais relevantes, contactos com personalidades nacionais e estrangeiras regressadas ou em visita a Portugal e agentes comerciais entre Portugal e a Europa. Sabe-se da sua curiosidade, espírito aberto e moderno, de informação actualizada. Os actos e episódios abundam de tal maneira que evidenciam por demais a personalidade.
Ivo Carneiro de Sousa revelou uma dessas relações, baseada na espiritualidade que caracterizou a Rainha. Foi a amizade estabelecida com Soror Eugénia Benedetta, de Florença, que conviveu entre 1487 e 1488 com a Rainha, na sua entourage. É impossível que Eugénia Benedetta não lhe tenha falado do Hospital de Santa Maria Nuova, da sua bela Florença, tanto mais que no regresso a Itália levava consigo a intenção de criar um hospital que acabou, afinal, por não concretizar. A amizade era tão forte que se evidencia no modo como D. Leonor se lhe dirige nas suas cartas: «Eugénia querida» e com ela partilha a dor pela perda do filho e do marido, tão nova que era.
O ingresso de Eugenia Benedetta no Convento de  Santa Maria Annunziata , de Florença, dá origem a um fluxo de bem-fazer da Rainha D. Leonor para com a comunidade de freiras emparedadas que o constituíam. O bem-fazer foi acompanhado de troca epistolar cujo acervo documental chegou aos nossos dias e de outros contactos que poderiam ter dado origem a recolha de informações sobre o dito e famoso hospital florentino.
Interessante de verificar é a coincidência da estadia de Eugenia Benedetta junto da Rainha com a execução do programa inicial de obras nas Caldas e o início do tratamento de doentes. Interessante ainda de assinalar a escolha do tema da Anunciação, o mesmo da comunidade das Murate de Florença, para a entrada do Hospital, cujas figuras escultóricas se mantêm ainda hoje na Torre da Igreja de N.ª S.ª do Pópulo, tema esse que D. João V voltou a utilizar no frontão que encima o actual edifício.
Parece-me lógico que a opção por um hospital termal tenha a ver com:
· A informação sobre a utilidade de optar pela criação hospitais modernos pelos resultados obtidos, como forma de fazer avançar a eficácia da Medicina.
· A observação dos doentes e a necessidade de juntar aos tratamentos termais tradicionais a competência médica e profissões aliadas, com relevo para a enfermagem, as dietas, as mezinhas e o correspondente boticário, demais tratamentos previstos no Compromisso,  e, finalmente, a separação especializada dos doentes, por áreas que chamamos de enfermarias, consoante a sua condição física e também social.
Este processo decisional terminou numa obra inovadora: a de um hospital que aliou a sua disciplina e organização médicas a uma especialização pouco vulgar, a dos tratamentos com água mineral. Só uma personalidade intelectualmente curiosa e inteligente, com um coração misericordioso, nas circunstâncias próprias da época, poderia ter-se lançado em tamanha inovação, que ainda hoje espanta e maravilha aqueles que procuram entrar nos meandros das suas intenções e decisões.

Por: Jorge Varanda