O encerramento de linhas “tem de ser feito com base em estudos sérios e competentes da mobilidade no território”, diz Nelson Oliveira presidente da APAC

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notícias das CaldasO caldense Nelson Oliveira é o presidente da Associação Portuguesa dos Amigos do Caminho-de-ferro (APAC). Engenheiro civil de profissão, divide a sua vida entre a sua terra natal e Lisboa, onde trabalha no Instituto Portuário e dos Transportes Marítimos. Nas Caldas da Rainha ocupa-se ainda de projectos de engenharia. Em entrevista à Gazeta das Caldas, este entusiasta do transporte ferroviário partilhou as suas opiniões em relação a temas como o estado da linha do Oeste, o TGV e o urbanismo caldense.

GAZETA DAS CALDAS – De onde vem este seu interesse pelo transporte ferroviário?
NELSON OLIVEIRA – Vem desde pequenino. Sempre gostei de comboios. Quando era miúdo inscrevi-me na APAC em 1986. Depois sempre tive algum gosto pela vida associativa e fui-me envolvendo nas actividades da associação e entretanto passei por director da revista, depois vice-presidente da direcção, e finalmente presidente, desde 2001.

GC – Quando foi fundada a APAC?
NO – Em 1977, muito por motivação da CP, que tinha sempre gente a bater lá à porta, que queria informações sobre isto e aquilo. Ao longo dos anos já passaram pela APAC mais de 1400 associados. A título estável mantém-se pelas 400 e tal  pessoas.

GC – A nível da associação que tipo de eventos realizam?
NO – Nós temos um leque muito diversificado de interesses por parte dos nossos associados. O gosto pela ferrovia é algo muito curioso, direi até quase único de entre todos os meios de transporte, pois abrange um leque enorme de interesses. Desde as pessoas que se dedicam ao estudo da política de transportes, até às pessoas que coleccionam selos unicamente com carácter ferroviário. Passando pelas miniaturas, pelas fotografias, pela parte técnica ou apenas a parte histórica. Uma das dificuldades da APAC é precisamente dar satisfação a esta variedade de interesses. Uma das nossas funções é divulgar o gosto pelo caminho-de-ferro. Organizamos visitas de estudo a instalações ferroviárias – uma das últimas foi ao centro de controle do Porto, que é dos mais avançados da Europa – e portanto permitiu aos nossos associados ter conhecimento e contacto com o que de mais avançado se vai fazendo por cá. Mas também a sítios que não avançaram, e que estão parados no tempo, não só pelo estudo histórico, mas para se ver o estado em que o caminho-de-ferro ainda está.
GC – Como avalia a recente revelação de que o governo anterior deixou um documento que prevê o encerramento de 800 quilómetros de linhas, entre elas grande parte da linha do Oeste?
NO – Poderá parecer estranho que o presidente de uma associação de amigos dos caminhos de ferro diga isto, mas, defender e promover o transporte ferroviário, contrariamente ao que normalmente se pensa, não é defender a manutenção de todas as linhas e serviços a todo o custo.
O país e o sistema de transportes está muito diferente da época em que as linhas foram construídas e as necessidades de mobilidade no território alteraram-se em muitas zonas.  Por isso, admito perfeitamente que algumas linhas sejam encerradas ou pelo menos que fiquem dedicadas apenas ao tráfego de mercadorias se assim se justificar.  Mas isto tem de ser feito com base em estudos sérios e competentes da mobilidade no território e decorrente de opções políticas devidamente assumidas.  Além disso, encerrar admito que sim, desde que tal seja acompanhado da construção – e não da promessa de construção, como o anterior Governo iludiu a região Oeste – de linhas novas onde tal se justifique, e há diversas que se justificam.
Agora, esse plano de encerramentos de que se fala não é sério nem competente, e tem claramente por base uma visão meramente economicista e desprovida de qualquer conhecimento concreto das linhas e serviços existentes, esquecendo factores de redundância de rede, investimentos feitos recentemente que podem ser rentabilizados, e mesmo o potencial de tráfego que existe em certos eixos e que não é devidamente explorado por uma CP demasiadamente pesada e cada vez mais desligada do terreno.
Mas também tenho de dizer que todos nós permitimos que sucessivos governos, parceiros sociais e os respectivos grupos de interesse a eles associados deixassem o país de tanga, numa situação tal em que já não há dinheiro para o mais básico.  A realidade é que pode não haver mesmo dinheiro para agir de um outro modo que em circunstâncias normais fosse o adequado.  Aliás, o mesmo vai-se passar em muitas outras áreas, como a cultura ou a preservação do património histórico.  No fundo, deixámo-nos conduzir a um forçado retrocesso civilizacional.

“A linha do Oeste tem que ser vista como um todo no sistema de transportes e terá um papel a desempenhar na mobilidade da região”

GC – Havia um projecto de investimento de modernização da linha do Oeste. Esse investimento, no âmbito do Programa de Estabilidade e Crescimento, foi suspenso. Qual é a sua posição neste assunto?
NO – Em relação à suspensão, não temos outro remédio, infelizmente. Há vários problemas na linha do Oeste: por um lado, está desfasada da realidade, ou seja, tem um problema congénito, que é o facto de ter ido ao Cacém, para depois vir para Norte. E isso, se na altura em que foi construída podia ter alguma lógica, actualmente não o tem porque nos afasta de Lisboa, precisando ser construída uma variante. Por outro lado, tem um problema de desadequação face à realidade actual de exploração. Ou seja, é uma linha que beneficiaria muito de uma automatização. Actualmente são poucos os locais de cruzamento, para se poupar pessoal. Se as estações fossem telecomandadas desde Lisboa, por exemplo, podia haver mais zonas de cruzamento sem custos acrescidos, de maneira que isto flexibilizaria a exploração da linha e aumentaria a rapidez dos comboios. E com material circulante moderno seria possível tornar os comboios muito mais rápidos. Quando foi decidido que não se faria o aeroporto ali na Ota, apareceram uma série de projectos para mandar areia para os olhos das pessoas. Aquele que teria mais utilidade seria a modernização da linha do Oeste, há anos que se fala nele, mesmo antes deste pacote das compensações por causa do aeroporto. E agora com estas restrições orçamentais ficará para as calendas.
A linha do Oeste tem que ser vista como um todo no sistema de transportes e terá um papel a desempenhar na mobilidade da região. Resumindo, é importante modernizar a linha do Oeste, mas não da maneira como os eleitos locais têm defendido, porque tecnicamente não sabem o que estão a pedir e perdem credibilidade.

GC – E em relação à alta velocidade concorda com a implementação do TGV em Portugal?
NO – A alta velocidade tem tido um grande problema no nosso país, que é o de ter sido apresentada como um produto de luxo. A alta velocidade tem tanto de luxo para o transporte ferroviário como qualquer auto-estrada o tem para o transporte ferroviário.
A alta velocidade, pelos curtos tempos de viagem que permite, tem um efeito de contracção do espaço no seu corredor e os exemplos estrangeiros mostram que é sempre uma mais-valia muito interessante para os países. Agora, é claro que isto tem de ser ponderado em relação a todas as outras coisas que o nosso país precisa. Se me perguntarem, neste momento o país precisa de alta velocidade? Eu tenho dúvidas. Que a alta velocidade vai ser necessária no nosso país? Isso sem dúvida alguma. Mas não nos podemos esquecer que um projecto ferroviário constrói-se a pelo menos dez anos, temos que ter a capacidade de planear com dez anos de antecedência.

GC – Como se posiciona em relação às criticas da alta velocidade em Portugal?
NO – O nosso país está na dimensão mínima para que o comboio de alta velocidade seja eficaz. Mas a alta velocidade teria a vantagem de adaptar o transporte ferroviário à realidade do país. Quem diz que o TGV vai ser um comboio ‘regional’ com muitas paragens entre Lisboa e Porto não está a ver o aproveitamento que se pode fazer da linha. Pode-se perfeitamente ter um comboio rápido de Lisboa ao Porto, que não pára pelo caminho e demora uma hora e um quarto mais ou menos, e outro comboio que servisse as cidades intermédias, importantes e actualmente mal servidas.

GC – Que vantagens tem o modo ferroviário sobre os outros modos de transporte?
NO – Cada modo de transporte tem um âmbito próprio. Muitas vezes isso vai contra o meu gosto pelo caminho de ferro. É óbvio que gosto das linhas bucólicas, antigas, com os carris e o seu som característico, mas isso era o caminho de ferro do passado. Entretanto, os transportes evoluíram, a sociedade evoluiu, e se algumas destas linhas antigas têm viabilidade a nível turístico, ou cultural, tem que ser entendidas como tal.
O caminho-de-ferro para ter lugar num sistema de transportes, tem que estar dentro do âmbito em que ele é mais eficiente: a transportar muita gente ou muita carga, a médias ou longas distâncias. É um transporte de massas, de grande produção.
Dito isto, é preciso ponderar também a implicação ambiental que o caminho-de-ferro tem. Dos meios de transporte terrestres, é aquele que tem o menor consumo de energia por unidade transportada. Depois há o factor territorial: para ter a mesma capacidade de transporte de uma auto-estrada (que tem que ter três faixas em cada sentido), com o mesmo número de passageiros ou toneladas por hora basta-lhe ocupar uma via dupla. Enquanto a auto-estrada é uma superfície impermeável, a via férrea dupla é uma superfície permeável, pouco afectando os solos a nível de absorção de água. Nesta via dupla estamos a falar de 12 metros. Na auto-estrada de seis faixas estamos a falar de 40 metros de largura vedada. Há aqui uma diferença de ocupação territorial e de impacto sobre a paisagem, com vantagem para o caminho-de-ferro. Isto é um valor para a sociedade.
Actualmente andamos a defender que temos de diminuir o consumo energético e reduzir a nossa dependência no exterior. Uma aposta no caminho-de-ferro também tem esta vertente. Não pode ser só ponderado se dá lucro financeiro ou não.

GC – Como vê a gestão pública de empresas como a CP?
NO – Não tenho qualquer preconceito quer em relação à gestão privada quer em relação à do Estado, pois há exemplos de que ambos conseguem gerir bem a coisa pública. O problema do Estado é servir-se destas empresas para satisfazer as suas clientelas partidárias. No caso da CP existe um problema acrescido: é uma empresa com 150 anos de história, o que traz 150 anos de vícios. Tem uma estrutura muito pesada, distante do terreno e com muitas pessoas nas chamadas ‘prateleiras douradas’ e outras que de ferrovia pouco ou nada sabem, tudo isto aumentando os custos de forma insensata. Além disso a empresa tem muita resistência à mudança e, portanto, não é facilmente adaptável a diferentes realidades.

GC – Ao trabalhar no transporte marítimo também é um entusiasta desse mundo?
NO – É um interesse diferente, meramente profissional. Trabalho não na parte da operação, mas sim na parte da infra-estrutura. O instituto onde eu trabalho é o regulador do sector portuário, mas tem também gestão de algumas dessas infra-estruturas. Agora no sector marítimo estou ligado à construção de infra-estruturas, e portanto já sabe que terei uma visão mais dirigida para a minha área de actuação.

GC – Fale um pouco das actividades que lá desenvolve…
NO – Temos a nosso cargo os portos secundários – essencialmente com carácter piscatório e de recreio –  estando fora aqueles que são das administrações portuárias autónomas, como os de Lisboa, Leixões, Sesimbra, Setúbal, etc. Somos responsáveis pela construção de infra-estruturas de segurança como os quebra-mares, os cais, as dragagens de maior dimensão, as grandes obras portanto. As pequenas obras são geridas localmente. A meu cargo tenho o planeamento da construção e da manutenção dessas grandes infra-estruturas.

GC – Sendo natural das Caldas como vê a existência de uma linha de caminho-de-ferro a atravessar a cidade?
NO – Tem de se saber conviver com isto. Actualmente têm ocorrido nalguns sítios, coisas que quanto a mim são disparatadas, que é fazer a linha sair da cidade. Eu acho que para já, a linha constitui de certo modo um ponto de referência da cidade e não é obrigatório que a divida – a cidade é que se deixa dividir – pois há sempre maneira de criar ligações de um lado para o outro, que até podem constituir interessantes soluções de urbanismo e paisagismo.
Por exemplo, aqui nas Caldas uma solução interessante poderia ser fazer uma espécie de pontes-jardim, que atravessassem a zona da estação, onde estaria integrada a estação rodoviária, evitando que os autocarros de longo curso e regionais entrassem mesmo no centro da cidade e aí concentrando também os urbanos, garantindo uma melhor articulação dos modos de transporte.

“Houve um crescimento perfeitamente absurdo e desordenado das Caldas”

GC – Como vê o crescimento da cidade?
NO – Eu deixei de residir permanentemente nas Caldas em 1990, quando fui para Lisboa estudar, e de facto, desde essa altura houve um crescimento perfeitamente absurdo e desordenado da cidade. O PDM foi aprovado tardiamente e o desenvolvimento foi feito de forma muito avulsa. Algumas zonas dessa expansão têm baixa qualidade urbanística. Há também o problema da zona histórica da cidade, que necessita de âncoras para que não morra a partir das oito da noite.
É incompreensível que a Praça da Fruta, que deve ser explorada para continuar a fazer viver aquele mercado, uma das coisas pela qual as Caldas é conhecida, não tenha, pelo menos no Verão, esplanadas à noite.
Foram feitas algumas intervenções pontuais para trazer algumas instalações de referência à cidade – temos ali o CCC e outras infra-estruturas de referência – mas tem sido tudo remendos e de forma avulsa. Essencialmente para mim tem havido uma falta de estratégia para a cidade – não se sabe o que é que se quer para a cidade. E uma cidade não é diferente de uma organização qualquer, de uma empresa, por exemplo. Tem que ter um objectivo. É incompreensível que a cidade não consiga tirar o devido partido do seu património termal, nomeadamente do seu ex-libris – o Parque e os chamados “pavilhões” – criando naqueles edifícios históricos e bem mais interessantes que o Hotel Lisbonense, por exemplo, um centro de convalescença que poderia servir como âncora para outras estruturas de cuidados médicos especializados que trariam elevado valor para a cidade.

Óscar Morgado
omorgado@gazetadascaldas.pt