A Gazeta das Caldas acompanhou a debulha do trigo na aldeia da Póvoa do Cadaval, onde João Vieira tem procurado preservar as espécies antigas e que não foram geneticamente modificadas. O processo é feito com recurso a tecnologia do século passado e marcado pela boa disposição, apesar do sol e do calor.

“Hipócrates dizia já em 400 antes de Cristo, que o alimento seja o teu medicamento”, faz notar João Vieira, que, com 80 anos, se assume como o guardião das sementes da Estremadura. Foi um trabalho que se iniciou há cerca de duas décadas e que tem como base a busca de uma alimentação saudável e sustentável. “Quando me diagnosticaram diabetes há cerca de 20 anos comecei este projecto e hoje tenho esse problema controlado”, conta.
Em cerca de dois hectares onde os seus pais já cultivavam trigo, tem vindo a semear, ano após ano, espécies que estão esquecidas, mas que fazem parte da nossa história e do nosso património. Entre elas destaca-se o trigo barbela.
“Este é um trigo que está há vários séculos em Portugal e que veio da zona do Crescente Fértil”, explica. “Era o único que resistia nestas terras poucos férteis, no sopé da Serra de Montejunto, para que houvesse pão para as pessoas”, recordou. “Quem trouxe o barbela sabia que este se ajustava a condições difíceis, como provou em Trás-os-Montes”, zona onde este ano poderá voltar a haver trigo. “É um trigo que passou todos os testes através da história”, resume.
O trigo barbela tem uma particularidade. É que devido ao facto de ter um sistema radicular de profundidade e uma palha alta, esta espécie não permite a entrada de luz solar, pelo que as ervas daninhas não conseguem prosperar. Tal significa que este trigo não precisa de herbicidas. Só que com a chamada evolução percebeu-se que colocando adubos sintéticos no trigo e fazendo-os passar por um processo de nanificação (para a palha ficar curta e não se deitar quando cresce em demasia) se poderia obter uma produção maior. “Os trigos de hoje não são os de há mil anos, ou de há 100 anos, nem sequer de há 50 anos”, esclarece, acrescentando que o processo começou após o final da primeira grande guerra.
“Os trigos modernos respondem aos objectivos do consumismo, com uma espiga maior consegue-se uma produção por hectare maior”, explicou. Só que “têm um aumento do glúten em cerca de 40 vezes”. Mal chegamos à propriedade, João Vieira esclarece logo: “aqui não entra nenhum trigo moderno”!

A DEBULHA COMO NO SÉCULO PASSADO

É ali no sopé da Serra de Montejunto, na aldeia da Póvoa do Cadaval, numa calorosa tarde de domingo, que encontramos meia dúzia de amigos a fazer a debulha do trigo como em meados do século passado. Duas máquinas com 70 anos são ligadas por uma grande correia: um tractor americano da série Farmall, que com uma grande correia faz tocar uma debulhadora, uma máquina imponente feita no Tramagal pela Metalúrgica Duarte Ferreira, e que recentemente levou uma nova lona no elevador, mas que se mantém a trabalhar “como nova”. Alimentada com as espigas, a debulhadora faz com que o trigo viaje para a frente e para trás dentro da máquina, passando por vários crivos (que variam consoante o cereal a debulhar) até sair apenas o grão para os sacos. A palha é separada e expelida nas traseiras, onde um funcionário a encaminha para uma enfardadeira.
Antigamente, quando não havia elevador, montavam-se taipais e um homem ficava lá em cima a receber os rolheiros que lhe eram entregues pelos forcados dos homens cá em baixo. Abria os molhos e colocava as espigas na máquina. Nas terras rurais esse homem era o chamado “almentador”. “Não era almentador coisa nenhuma, era o alimentador e é daí que vem o nome de almentador”, explica-nos. Em meados do século passado a debulha exigia muita mão-de-obra e “havia sempre um garrafão de vinho tinto escondido por perto, porque é um trabalho duro”, nota, acrescentando que o álcool tinha um efeito energético e alegre nos trabalhadores.
Mas voltemos aos dias de hoje, onde a alegria e a boa disposição também não faltam, apesar do sol, do calor e da palha que esvoaça em várias direcções. Quando o trigo está pronto (por altura do Verão, depois de ser semeado oito meses antes, no Outono), o processo começa com a passagem da ceifeira atadeira pelos campos, que decorre “quando vem o orvalho de Peniche”, pelas seis horas da madrugada. Depois o trigo fica no campo durante 15 dias (tal como se fazia antigamente, antes de ser transportado nos carros de bois para a eira). “Na agricultura moderna não há esse tempo de espera, mas é importante porque o trigo não morre, o trigo vive e recebe os sais da palha”, esclareceu. Daí segue então para a ruidosa, mas cuidadosa debulhadora. Quando sai, o cereal vem praticamente limpo, mas ainda vai passar por uma limpeza antes de ser moído naquilo que João Vieira chama do seu moinho de trazer por casa, uma pequena máquina, eléctrica, com mós de pedra. De seguida a farinha é peneirada (com diferentes peneiras que permitem ou não deixar passar o farelo, consoante os gostos). Daí vai acabar por ser amassada e levada ao forno para se tornar num saboroso pão, mais escuro do que estamos habituados a ver, mas com alto valor nutricional porque, afinal, “comemos para nos alimentar ou para nos sentirmos cheios?”.
E como nada se desperdiça nesta lógica de agroecologia, quando há interessados, a palha é levada para dar aos animais, quando não há, acaba por servir como matéria orgânica dos campos.

O Guardião das Sementes da Estremadura

Aos 80 anos, João Vieira é considerado o Guardião das Sementes da Estremadura, porque preserva espécies antigas de trigos e grãos. Tem um sistema de produção assente na agroecologia e gostava de ver implementada a figura do agricultor-moleiro

“As sementes para mim são do domínio do sagrado, porque está ali uma forma de vida extraordinária”, afirma João Vieira, no seu “templo” sagrado, onde guarda as diferentes espécies de trigo já colhidos e outros ainda por semear.
Com um brilho nos olhos, mostra-nos, orgulhoso, os trigos rijos e moles que se produziam na região. Chama-lhes os cinco magníficos: o massaruco, o preto amarelo, o angelino e o raspe negro, além claro do barbela. Também produz outros trigos e a espelta. Mas nem só de trigo se faz esta produção. Também preserva grão de bico branco e preto, quase em extinção, entre outros. “Como não tenho muito terreno, produzo pequenas quantidades de cada um para conservar as sementes”, explicou. “As sementes são a vida, tudo vem de uma semente”. Por outro lado, têm um ciclo eterno de reprodução. Defende mesmo que as sementes “devem ser património e não propriedade privada”. Noutros países isso acontece, mas em Portugal não. E há outro motivo de queixa a ter em conta: o trigo barbela não está inserido no catálogo das sementes, o que o impede de ter acesso a subsídios.
Neste caminho para uma alimentação saudável e sustentável, João Vieira procurou sempre um impacto mínimo. “Não quero contaminar a terra, nem destruir eco-sistemas”, salienta. “É uma forma de estar bem comigo e com a minha consciência”, nota, admitindo ainda assim, que vive naquilo a que chama uma atitude de resistência. “Não quero saber de volume, não se fica rico com isto. Temos de ter presente que nós produzimos alimentos e não uma matéria-prima”, acrescenta.
A rentabilidade garante, “é o que sempre foi, nunca ninguém viveu só do trigo, mas sempre existiu numa lógica de complementaridade e de conjugação”, explicou, fazendo notar que seria sempre uma parte do que seria uma propriedade agrícola, com diversidade. Numa época em que “a vida na terra está a morrer, a conservação dos solos é absolutamente necessária” e João Vieira sente que se vivem tempos de mudança, com conceitos como o de autonomia alimentar e o dos circuitos de proximidade entre o produtor e o cliente, a voltarem a estar em voga.

Objectivo passa por promover a figura do agricultor-moleir

“Gostava de promover a figura do agricultor-moleiro, como eu, que produz o trigo, mói e faz o pão”, afirmou. “Cada concelho podia ter a sua produção e podiam haver milhares destes pequenos moinhos nas aldeias”, acrescenta. É que “o pão consome-se todos os dias e em todos os sítios. Porque é que não temos trigo?”, questiona.
Tendo em conta que “o país só produz trigo para os primeiros dez dias do ano, precisamos de produzir, até para o caso de surgir uma crise alimentar”, faz notar. “Pretendo ser um ponto de partida para o desenvolvimento de cereais na Estremadura, que já foi uma região com uma grande produção de trigo”. No Cadaval já influenciou outros agricultores e do seu templo saíram sementes para várias partes do país. Há também padeiros especializados que querem desenvolver produtos diferenciados dos ultramassificados, como o caso de Paulo Santos, do Forno do Beco.

PRISIONEIRO DE GUERRA NA ÍNDIA

João Vieira tem actualmente 80 anos. Até aos 12 anos viveu nesta aldeia com os pais. Trabalhava no campo e estudava, tendo feito a quarta classe. Foi então com 12 anos que foi para Lisboa, para trabalhar e viver a vida citadina. Mas logo aos 15 anos sentiu saudades do campo e voltou à sua aldeia, onde ainda guardou ovelhas, até ser chamado para o serviço militar.
Foi destacado para Goa e era um dos cerca de três mil soldados portugueses que, em 1961, viram as tropas da união indiana avançar sobre a região. Eram 30 mil soldados de infantaria, o que levou à rendição e a ter sido feito prisioneiro de guerra durante nove meses. “Nunca fomos maltratados”, garante. Enquanto prisioneiro, arranjou estradas, limpou florestas e fez outros serviços.
O regresso a Portugal acabou por ser curto, tendo ido para a Alsácia (França), onde ficou durante duas décadas e onde trabalhou na indústria do papel. Quando regressou de terras gaulesas, casado e com dois filhos, recuperou a produção agrícola dos pais. Trazia um importante ensinamento que aprendeu com os agricultores franceses: “eles não concordavam com o modelo industrial em que as sementes eram compradas”, revelou o antigo representante da Confederação Nacional de Agricultores em Bruxelas, que fez também parte de uma organização europeia de pequenos e médios agricultores.