Mais de 200 actores juntam-se em A-dos-Negros para espectáculo comunitário

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Notícias das CaldasÓbidos está apostado em manter viva a tradição dos Maios ou Maias, uma festividade ancestral ligada à celebração da vida e da natureza.

Iniciada o ano passado, a iniciativa “Maiando o Maio” é dinamizada por associações e particulares que voltam aos campos para apanhar as flores com que depois irão embelezar fontes e fontanários do concelho. O ponto alto desta edição será no próximo dia 18 de Maio com um espectáculo em A-dos-Negros, envolvendo a comunidade.

O espectáculo Bona Dea irá juntar, na noite de 18 de Maio, 200 actores na aldeia de A-dos-Negros. As linguagens do teatro visual, a música, a dança e o canto vão cruzar-se numa convivência festiva onde o público é convidado a visitar a aldeia através de um percurso pré-estabelecido.

“Procurámos neste encontro com a aldeia uma forma de revisitarmos a festa “As Maias” e em conjunto com a comunidade local criar um espectáculo a partir deste universo, valorizando a ideia de celebração, de vida, de fertilidade, de renascimento, de força, de culto, de terra, de natureza”, explica Celeste Afonso, que dinamiza o projecto “Maiando o Maio” em conjunto com Teresa Perdigão.

Este espectáculo está a ser coordenado por Mafalda Saloio que, entre outras coisas, desenvolve trabalho com a comunidade, utilizando o teatro como um ponto de encontro e desenvolvimento humano. No início do espectáculo será entregue um guião com a sinopse e um pequeno mapa com o percurso.

Para a escolha da localidade jogaram elementos como a geografia do local, que é sinuoso e disperso, além de que A-dos-Negros já possui o levantamento das fontes existentes.

O evento “Maiando o Maio” começou na noite de 30 de Abril, na Porta da Vila (em Óbidos), com a preparação das maias, que depois foram colocadas nas aldrabas das portas e janelas das casas. A animação foi garantida por músicos locais e, por fim, juntaram-se todos para uma ceia comunitária.

Já nos dias 18 e 19 de Maio a população é convidada a adoptar uma fonte ou curso de água, e a enfeitá-lo com flores naturais. O objectivo é “sagrar as fontes e a água nesse fim-de-semana”, conta Celeste Afonso, acrescentando que este é também um pretexto para que se possa conhecer melhor o concelho.

Os vários centros de dia já adoptaram uma fonte e irão enfeitá-la, assim como os jardins de infância que, por trabalharem bastante a temática da reciclagem, irão decorá-las com flores de papel e de plástico. Teresa Perdigão e Celeste Afonso deixam um desafio a toda a população: era muito importante que quem tem uma fonte na rua ou no seu bairro se organizasse entre si e a enfeitasse. E não precisam de comprar flores, pois a ideia é “usar o que a natureza nos dá”, explicam.

O percurso com as fontes enfeitadas assinaladas será, posteriormente, divulgado para que a comunidade e os turistas as possam visitar.

Esta edição começou a ser preparada já o ano passado, com a comunicação do projecto às pessoas, que o receberam com bastante entusiasmo. “As associações e a comunidade, ao contrário do que poderíamos pensar inicialmente, foram extremamente receptivas”, explicou Celeste Afonso. O objectivo passa por continuar a envolver a comunidade, um ano em cada lugar, para que “fique este legado de trabalhar em conjunto”, concretiza.

Teresa Perdigão lembra que quando começaram a falar com as pessoas sobre as Maias ou Maios, ainda em 2011, estas inicialmente não reconheceram a tradição, mas recordam-se do dia em que tinham que se levantar cedo para não entrar o Maio em casa. “O que se pretende não é recriar, mas reviver e adaptar as festas e as celebrações aos tempos actuais”, explicou Teresa Perdigão, acrescentando que vêem as tradições como manifestação da identidade e da liberdade.

A festa das Maias é um rito ancestral que se tem perpetuado na vila de Óbidos, atestando a sua antiguidade e a continuidade da ocupação humana há mais de dois mil anos. A data foi inclusivamente escolhida para feriado de Óbidos, em inícios do século XX. Depois veio a ser substituída pelo dia 11 de Janeiro, que assinala a tomada de Óbidos aos mouros por D. Afonso Henriques.

 

Da proibição à aceitação – como a Igreja encarou uma tradição milenar

A temática das tradições como afirmação da identidade e liberdade levou a professora Celeste Afonso e da antropóloga Teresa Perdigão a A-dos-Negros para um colóquio, no âmbito da iniciativa “Abril Cultural”, daquela Junta de Freguesia.

Teresa Perdigão falou das festividades feitas ao longo do ano, relacionadas com as actividades agrícolas, entre elas as Maias, em que havia o ritual de se levantarem muito cedo no primeiro dia do mês, para que o Maio não lhes entrasse em casa. Para evitar a preguiça, colocavam flores amarelas nas portas.

A antropóloga lembrou que os ciclos ligados à natureza, como a sementeira, a plantação e as colheitas, eram bastante festejados pelos povos antigos, muito ligados à terra. A Igreja Católica vai depois pegar nos antigos rituais e colocar-lhes uma ideologia cristã, explicou a oradora, que se lembra de assistir a celebrações onde o padre ia benzer os campos agrícolas.

Contudo, estas festas foram bastante reprimidas pela Igreja Católica ao longo dos tempos. De acordo com Celeste Afonso, estes rituais começaram a ser ligados com santos no século IV em Roma, com a tentativa de banir todos os actos pagãos e gentílicos. O primeiro documento oficial régio proibindo as Maias aparece em 1385, com D. João I a proibir todos os actos pagãos e a punir com o degredo da cidade a pessoa que continuasse a praticar este ritual. O documento acrescentava ainda que todos estavam obrigados a denunciar quem praticasse tais celebrações. “Estas festividades foram, de alguma forma, camufladas, mas não acabaram”, explicou Celeste Afonso, acrescentando que um em inícios de 1400 surge novo documento com penalidades ainda maiores para quem ousasse, por exemplo, festejar as Maias ou Janeiras.

No entanto, as tradições continuaram a persistir, sobretudo nos meios rurais, restando à Igreja incluí-las nas suas celebrações através de cantos litúrgicos e com a evocação aos deuses agora substituídas por santas católicas. Por exemplo, Bona Dea, a deusa romana da fertilidade, foi substituída pela Virgem Maria.

Já no século XVII a celebração das Maias é considerada inofensiva e passa a ser aceite. “É importante perceber que estas festas contribuem para a nossa identidade”, afirmou Teresa Perdigão, acrescentando que a festa é um momento de “regeneração, mudança, transformação e liberdade, em que se podem fazer coisas que não se fazem no quotidiano”. F.F.