Cidades sustentáveis, cidades saudáveis.

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Jorge Cristino
gestor público na área do ambiente

A série televisiva dos anos 80 “Era Uma Vez…a Vida” teve o intuito de, através do desenho animado, dar uma nova interpretação pedagógica ao corpo humano e às ciências. Cada personagem e o seu conjunto traduziam em cada episódio uma função, um órgão, um sistema ou mesmo um processo biológico. Albert Barillé conseguiu, de forma extraordinária, criar naquelas gerações uma ideia de cidade dentro do corpo humano, com estradas, pontes, naves, polícias, vilões, líderes, sistemas de recolha de resíduos, encarregados da limpeza e centrais de monitorização. Toda uma dinâmica articulada, com permanentes desafios e em busca de um equilíbrio saudável.
As cidades são assim um género de corpo humano, com um conjunto diverso e complexo de sistemas e subsistemas, que interagem entre si, procurando os seus equilíbrios e ajustando-se às novas necessidades.
Ainda assim, a gestão de uma cidade não é propriamente um desenho animado, e deve ser tão séria como encaramos a vida. Tal como devemos ter o cuidado necessário com a saúde, monitorizando-a, procurando os melhores diagnósticos, de modo a apresentar soluções para os problemas que aparecem, e que permitam ser mais definitivas (estruturais) do que paliativas. Se pensarmos assim, percebemos que existem opções e decisões políticas que interferem no dia-a-dia de cada um e que podem colocar em causa o funcionamento de um determinado órgão ou função, ou ao invés, dar maior vitalidade, podendo acelerar o metabolismo da cidade.
Hoje quando pensamos numa cidade ideal tentamos incluir todas as ideias numa só estratégia, por forma a que traduzam todas as dimensões relacionadas com a inclusão, a saúde, o conhecimento, o emprego, a digitalização, a mobilidade, a sustentabilidade, a habitação, a circularidade e a descarbonização. Em suma, um território com uma visão multidimensional, integrada e com uma elevada qualidade de vida. Por outro lado, muito raramente são lembradas outras dimensões imateriais que se traduzem em segurança, paz, participação, comprometimento, identidade, democraticidade, igualdade, resiliência, cooperação e felicidade.
As cidades, tal como as pessoas têm em si aspetos funcionais materiais e imateriais, que se conjugam e as tornam mais atrativas, empáticas, felizes e capazes.
Uma cidade é como uma pessoa. Tem um ADN próprio e singular, não repetível, porque é resultado de um pulsar diário composto por um conjunto de fatores e variáveis, assim como de experiência e conhecimento acumulado por camadas, que, por sua vez, são resultado da interferência e vivência humana.
Os municípios, dada a sua autonomia, são permanentemente confrontados com novos desafios, alguns deles em função das políticas internacionais e nacionais, outros em função das conjunturas macrossociais e macroeconómicas e outros, como resultado das transformações da natureza, nomeadamente resultantes das alterações climáticas, como acontece com as catástrofes ambientais. No entanto, os espaços urbanos além de recetores de impactos externos, com necessidade de adaptação aos mesmos, são também emissores e contribuintes para as causas que provocam essas mesmas causas. As cidades estão, portanto, no fim e no início do ciclo vicioso das alterações climáticas, seja quando pensamos na qualidade do ar, no excesso de emissões, no aumento da temperatura, na subida do nível do mar, nos incêndios, na erosão costeira, na seca, na desertificação do solo, no desgelo, na perda de biodiversidade, na eutrofização dos oceanos, etc. etc.
Neste aspeto particular, se aplicarmos ao sistema climático terrestre uma analogia semelhante com o corpo humano, mas à escala planetária, o facto da ação humana estar a provocar um aumento médio global de 1,5ºC cria um desequilíbrio no sistema. Tal como acontece com o nosso corpo, em que a temperatura média é de 36ºC, quando aumenta 1,5 a 2ºC, o corpo entra em febre e o sistema imunitário começa a trabalhar, criando defesas para combater a infeção. O Planeta, através do seu sistema climático, comporta-se da mesma maneira, tentando ajustar-se para criar novos equilíbrios devido ao aumento da temperatura, em que as alterações climáticas não são mais do que o resultado do seu sistema imunitário entrar em funcionamento. E neste caso combatendo uma infeção generalizada, podendo entrar em falência de alguns órgãos (earth climate system tipping points) e no colapso da vida terrestre.
Assim sendo, as cidades são essenciais no combate às alterações climáticas, pois podem, através da sua ação, contribuir para a saúde planetária. Seja através da mitigação às alterações climáticas, reduzindo emissões, através da aposta em energias renováveis, principalmente através da microgeração, promoção de alimentação sustentável e de mobilidade suave e criação de conceitos das “cidades e bairros dos 15 minutos”, seja através do aumento do sequestro de emissões, aumentando os espaços verdes/azuis e apostando numa interação urbano-rural.
Neste aspeto, é crucial e fundamental relevar a importância do ordenamento do território para atingir a neutralidade climática das cidades, criando uma correlação da natureza, saúde, educação, sustentabilidade, mitigação, resiliência e felicidade.
Como exemplo, deixo-vos a preocupação relativa à área da alimentação. A generalidade das medidas de Ação Climática não colocam como prioridade estratégica o sistema de alimentação, envolvendo toda a cadeia de produção, distribuição, consumo e desperdício, como foco de sustentabilidade em meio urbano. Muito existe a fazer neste domínio, apostando na microprodução, no encurtamento das cadeias de distribuição, no reordenamento do território, seja nas áreas periurbanas, seja nas interfaces de equilíbrio entre a floresta e as áreas agrícolas, seja na aposta das hortas urbanas ou na agricultura biológica, ou mesmo através do aconselhamento e aumento do conhecimento de hábitos de alimentação sustentável e saudável.
O último estudo de obesidade aponta para o facto de em 2035 prever que 51% da população seja obesa ou tenha excesso de peso, e que, em Portugal, 25% das mortes advenham de problemas relacionados com a má alimentação e o excesso de peso, ultrapassando as mortes devido ao tabagismo.
Conclui-se, por isso, que tratar do Planeta é efetivamente também tratar de nós mesmos. Ser uma cidade sustentável é também ser uma cidade saudável. ■