«quase cem poemas de amor e outros fragmentos» de Fernando Chagas Duarte

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Gazeta das Caldas

Image (1) copyA Poesia não é a voz do Mundo. E talvez nunca tenha sido. A voz do Mundo é o ruído, a guerra e a morte enquanto a Poesia aspira a ser a voz da luz, da paz e da vida. Misto de canção e de reflexão, o Poema procura ser o ponto de encontro entre o sangue pisado e o estilo, entre o mundo pessoal e a oficina da escrita, entre o lado de fora e o lado de dentro do Poeta. Se a vida é curta e a morte inevitável, só o amor pode resgatar essa angústia que persegue o Homem. Este livro de Fernando Chagas Duarte (n.1964) surge com o propósito explícito na dedicatória de «envelhecer contigo até adormecer». Se por envelhecer entendermos o conceito de durar, este foi sempre o projecto de todos os livros ao longo dos tempos. Durar, permanecer, ficar. Mas se a Poesia não é a voz do Mundo procura ser a voz do Homem. Alexandre O´Neill comparou um dia a Poesia ao Boxe quando se comparou a Belarmino Fragoso. Vejamos: «Tiveste jeito, como qualquer de nós / e foste campeão, como qualquer de nós. / Que é a poesia mais do que o boxe, não me dizes?/ Também na poesia não se janta nada / mas nem por isso somos infelizes. / Campeões com jeito / é a nossa vocação, nosso trejeito…/ Belarmino: / quando ao tapete nos levar / a mofina / tu ficarás sem murro / eu ficarei sem rima / pugilista e poeta, campeões com jeito / e amadores da má vida.» É claro que a Poesia não se define, apenas se podem fazer algumas aproximações. Esta de Alexandre O´Neill é uma das possíveis. Portugal é um país de analfabetos, a marca da Inquisição que é do passado está ainda muito presente, o quadrilátero da vergonha continua nos sobreviventes e nas memórias: Aljube, Caxias, Peniche, Tarrafal. Num país de analfabetos o Poeta é um saco de pancada e a Poesia também. Esquecida em revistas de escassa tiragem, amarelecida em prateleiras mais distantes das poucas livrarias, a Poesia em Portugal é um exercício condenado à marginalidade. É tão errado chamar a Portugal país de poetas como defini-lo como país de brandos costumes. Agora do geral para o particular, voltemos ao livro. O poema da página 59 representa essa proposta de ligação entre a vida e a escrita. Neste caso filho e livro. Porque o livro é um filho mas o filho é um livro a ser escrito todos os dias. Eis o poema: «Ouve-me, meu filho / Ouve-me sem a atenção ordinária do homem comum / Ouve-me falar contigo enquanto falo comigo / Como só tu sabes ouvir com pouco dizer / e muito perguntar. / Ouve-me neste «blues» arrastado / em que te ensino o que sei da vida / Ouve-me quando te digo o que não digo e sempre direi. / Aprendi a música pelo teu choro / Reaprendi a gostar com o teu consolo / Ouve-me, meu filho / E ensina-me o que não sei.» Um aspecto curioso neste livro é a invocação, a começar pelo título, de Pablo Neruda. Mas também de Eugénio de Andrade ou de Vinícius de Moraes. Ou de Tom Jobim, poeta da música. Outro poeta que poderia ter sido invocado é Manuel da Fonseca. O seu poema «Aldeia» junta a abrir Poesia e Geografia em meia dúzia de linhas: «sete casas / duas ruas / no meio das ruas / um largo / no meio do largo / um poço de água fria.» Julgo que é nessa linha a cruzar a voz do Homem com a voz do Mundo que surge o poema da página 72; ele junta de novo Natureza e Cultura em doze linhas precisas, sintética e perfeitas: «O RIO O meu rio é tumultuoso / de risos e vontades. / Percorre vales pedregosos / Corta vertentes / Molda solos / Marca os dias / Busca o mar. / Sob ritos escaldantes / e farpas afiadas / todos os dias o rio encontra / o nossos caminho / para o mar.»
(Chiado Editora, Capa: Miguel Conde)