A meio dos três meses sem “R”, em que a sardinha está no ponto, Gazeta das Caldas recorda como era a Praça do Peixe na cidade na década de 60 do século passado, no tempo em que esta se realizava a céu aberto e em que se assavam sardinhas no próprio tabuleiro e nas tabernas ao redor. Nessa época a Praça do Peixe era visita obrigatória diária para quem vivia na cidade e à segunda-feira para as pessoas das freguesias. Nesse dia, além de peixe, mercadejava-se galinhas, ovos, coelhos e outros animais.
Datada de finais do século XIX, a actual Praça 5 de Outubro era palco do mercado do peixe. Começou por ter o nome do monárquico Hintze Ribeiro, mas era popularmente conhecida como Praça Nova, por oposição à Praça Velha (Praça da Fruta). Antes disso era um terreno, conhecido nas Caldas como o Terreiro das Chocas.
O nome Hintze Ribeiro viria a ser substituído por Praça Almirante Cândido dos Reis na sequência da implantação da República. Ainda assim este nome não durou muito tempo e um ano depois passou a chamar-se 5 de Outubro, nome que ainda conserva.
Há 50 anos a Praça do Peixe tinha uma vida muito diferente da de hoje. As duas praças caldenses (a do Peixe e a da Fruta), com a Rua das Montras pelo meio, eram o centro das actividades económicas.
Nesse tempo na Praça do Peixe havia mais de 20 peixeiras, de Nazaré, Peniche e da Lagoa de Óbidos e muita gente ali ia comprar o peixe. Note-se, num tempo em que os frigoríficos eram raros e em que ainda não havia supermercados.
As peixeiras apregoavam e descompunham-se umas às outras. Mas para estas trabalharem havia também quem ganhasse a vida a montar e a desmontar as bancas, que eram de madeira (antes de serem substituídas por bancas fixas em ferro) e que ficavam guardadas no quintal ao lado do restaurante Mimosa. A montagem das bancas começava logo pelas seis da manhã.
O tabuleiro da praça, em calçada portuguesa, era dividido em duas zonas: em baixo o peixe, em cima o marisco e as enguias.
O primeiro vinha da Nazaré e de Peniche, os segundos vinham sobretudo da Lagoa de Óbidos. Nas bancas viam-se diversas espécies de peixes, mas também caranguejos, ameijôas, berbigão, camarão pequeno, ouriços e percebes. Numa rua próxima vendia-se sal, para conservar o peixe.
AS SEGUNDAS-FEIRAS
Às segundas-feiras, ao lado do Teatro Pinheiro Chagas, nos passeios da lateral esquerda da praça, vendiam-se galinhas, coelhos, pintos, ovos e, nas épocas festivas, os tradicionais perus. Era este o dia mais movimentado, quando vinham também as populações das freguesias rurais vender e comprar produtos para a semana. A lata que trazia os ovos para vender, era também usada para levar o peixe, conservado em sal, para casa.
Naquele tempo os clientes da praça podiam levar o peixe acabado de comprar directamente às tascas para ali serem cozinhados, especialmente assados na brasa. Algo que as próprias peixeiras também faziam em fogareiros ao ar livre.
No tempo em que as bancas já eram de ferro era, assim, frequente ver as peixeiras a assar sardinhas em cima das bancas.
Como não havia frigoríficos, no fim do dia o peixe que não se vendia ficava já salgado nas cabanas para vender no dia seguinte.
Entre o tabuleiro da praça e o edificado havia uma estrada e um passeio. Era nesse passeio, encostadas às paredes das casas que as peixeiras contavam o dinheiro que haviam realizado.
Já depois do 25 de Abril a divisão no tabuleiro manteve-se e a venda do peixe continuou na zona mais abaixo. Acima passou a vender-se roupa.
Mais tarde a Praça passou a ser usada como estacionamento, até ser criado o recente desenho. O mercado seguiu então para o edifício onde se realiza actuamente e de onde viria a sair temporariamente em 2011, por ocasião das obras, para o terrenos atrás do quartel dos bombeiros.
A PRAÇA PRÉDIO A PRÉDIO
Guiados por Letinha e a sua mãe Deonilde Azenha, proprietárias do restaurante Mimosa e que aqui vivem há décadas, fazemos uma viagem de 50 anos prédio a prédio, notando o que já existia e o que mudou entretanto.
Já na década de 60 havia a farmácia, a Capelinha do Monte e a Casa Fernandez. Ao lado do Déjà Vu, que era uma loja de roupa interior, havia a taberna do Pele e Osso. Na Praça havia ainda um sapateiro, uma mercearia, uma barbearia, as tabernas do Canas e da Viúva do Aleixo, uma casa de tecidos (onde hoje está a barbearia D. Diniz) e uma fábrica de cavacas e beijinhos (onde hoje está uma loja de roupa interior). O La Piazza localiza-se na antiga loja de utilidades do senhor Saraiva, onde se vendiam, por exemplo, máquinas de escrever.
Uma curiosidade: embora bastante mais recente, o bar 120 deve ao seu nome ao facto de um café e um bagaço custar, já na segunda metade do séc. XX, 120 escudos.
A antiga escola primária deu lugar, no caso das raparigas, a um novo edifício onde está a sede do PSD. No caso dos rapazes ficou ao abandono até aos dias de hoje. Atrás da clínica que hoje existe, havia uma casa de banho pública.
Por ter a escola, a praça foi o palco de crescimento de algumas gerações caldenses, que ali brincavam no intervalo da escola (no caso dos rapazes, já que as raparigas tinham um pátio interior). É o que conta José Luís de Almeida Silva, director da Gazeta das Caldas, no livro “Ontem e Hoje”, editado em 2014 pelo mesmo jornal, quando recorda que as crianças “saltitavam entre peixeiras e clientes, brincando ao salto, à apanhada, às escondidas”.
O texto refere “a vida febril e intensa que ali se vivia, à roda de lojas de roupas, mercearias, drogarias, malas, produtos alimentares, ou seja, um verdadeiro centro comercial virado para a rua”.
No mesmo livro, Isabel Xavier, historiadora da associação Património Histórico, citou o jornal Círculo das Caldas para notar que em 1896 a possível mudança da Praça da Fruta, para a Nova Praça foi “o assunto mais palpitante da vila” e que as opiniões se dividiram em relação a esse tema.
Hoje falta vida ao Mercado do Peixe
Hoje, ao contrário de há 50 anos, no Mercado do Peixe falta vida. Se a comprar não há muita gente, porque os preços não conseguem competir com as grandes superfícies, a vender há cada vez menos porque o ganho não compensa o custo. Exceptuando o sábado (um dia em que a praça lá ganha um ar da sua graça), os outros dias são de muito pouco movimento.
Ao contrário da Praça da Fruta, que respira vigor com todos os lugares ocupados, no Mercado do Peixe contam-se pelos dedos de uma mão as bancas que ali são montadas diariamente. As lojas estão fechadas, tal como o café. Não há produto nenhum além de peixe.
Segundo os peixeiros, o que ali se estraga, não se arranja. Foi assim com as tomadas, com as máquinas de fazer gelo, a canalização, os kits de primeiros socorros e até o relógio que dava as horas no mercado.
“Isto morreu”, afiança Maria João Maurício, uma das peixeiras que ali vende diariamente, enquanto aponta para o mercado. “Nunca vi isto tão mal como agora”, assegura.
Ainda vendeu na antiga praça, que “era cinco estrelas” e atribui parte das culpas desta morte ao facto de terem fechado a Praça do Peixe.
“Passamos aqui dias em que só nos vemos uns aos outros”, garante, distribuindo culpas por autarquia e grandes superfícies. “Não há uma placa nas Caldas a dizer que existe um mercado do peixe”, queixa-se esta peixeira que todos os dias vem da Nazaré de madrugada para vender nas Caldas. “Quase todos os dias são viagens à Senhora da Asneira”, diz, defendendo que a Praça do Peixe devia estar junto da Praça da Fruta.
Esta vendedora nota, contudo, uma tendência curiosa: quem aqui vem e valoriza este espaço é gente de fora porque as pessoas das Caldas não querem saber. Isso é perceptível a quem visitar o mercado durante um tempo. Isso e o facto de serem poucos os jovens a abastecer-se neste mercado. Os preços (muito menos competitivos que os das grandes superfícies) são uma das razões, mas certamente não a única. Os hábitos alimentares também são outros e o peixe tem menos espaço na dieta (embora comece a aparecer uma crescente tendência de cuidados com a alimentação e saúde).
Os tempos são outros, mas o mercado do peixe é um activo numa cidade que tem como um dos seus ex-libris a Praça da Fruta. A frescura e ‘naturalidade’ do pescado é um factor importante.
Falta, portanto, certificar o peixe como algo de superior qualidade, criar uma marca que valorize a ida ao mercado do peixe e atrair vendedores.
O preço por banca não seria caro, se esta fosse uma praça muito visitada, mas assim, as taxas mensais de 36 euros, mais 12,50 euros por estacionamento, também não ajudam a preencher os espaços vazios.
A localização não é a melhor, é certo. No topo da Praça da Fruta seria muito mais apelativa para compradores e, por inerência, para vendedores. Mas não é o principal problema e tem vantagens: a proximidade com o CCC (e o seu estacionamento gratuito temporário) deve ser melhor explorada.
Júlia Carepa, que também vende na praça (mas apenas três dias por semana), considera que “falta publicidade e divulgação ao mercado do peixe”. Já aqui vende há 21 anos. “Foi o meu mal”, desabafa.
Além de tudo o que não funciona, há ainda o problema da higiene do espaço “que é muito pouca pois a água não escoa bem e o chão devia ser mais vezes desinfectado”. Os lava-louças estão desmontados porque entupiam com muita facilidade.
A falta de elevador para pessoas (porque existe um para carga) é também um dos reparos feitos por Joaquim Fialho, outro dos vendedores. “A máquina de fazer gelo não trabalha e temos de o carregar de Peniche”, contou. Isto ganha especial importância se tivermos em conta o preço do gelo (que na praça das Caldas era residual) e a quantidade (e peso), que ronda os 500 quilos por dia.
Só há duas razões que permitem a Joaquim Fialho, tal como aos outros, vender aqui: a qualidade do peixe e a antiguidade da banca, que já tem os seus clientes. Também ele acha que falta algo que chame a atenção das pessoas para essa qualidade e frescura que aqui existe. É que se há uns anos vendia, num sábado, mil quilos de sardinha, hoje se vender cem já foi um dia bom.
Câmara estuda soluções
Hugo Oliveira, vice-presidente da Câmara e vereador responsável pelos mercados, afirmou à Gazeta das Caldas que têm tentado “encontrar soluções para que o Mercado do Peixe não morra”. Nesse sentido o executivo tem estudado outros exemplos no país para retirar ideias.
Segundo o autarca, é importante “tornar cada vez mais visível que existe este mercado”, admitindo a possibilidade de colocar placas indicativas na cidade, “mas o principal é criar hábito”.
Uma das ideias da autarquia para dinamizar o espaço é “fazer a promoção do mercado na Praça da Fruta para levar as pessoas lá e criar uma ligação entre os dois mercados”.
Outras das possibilidades é a utilização daquele espaço nos momentos em que não há mercado, como ao sábado e ao domingo à noite. Também em estudo está uma possível parceria com privados que ali criassem um mercado como existe, por exemplo, em Campo de Ourique, com espaços de restauração e padaria combinados com as bancas de peixe, legumes e fruta.
Hugo Oliveira fez questão de recordar os recentes incentivos criados pela Câmara (café e lojas do mercado com uma renda simbólica, a rondar os 30 euros mensais), que não atraíram interessados e o facto de existir estacionamento gratuito próximo da praça.