José Manuel Alves recorda como foi ter pensões nas Caldas. Uma delas, a Pensão Irmãos Unidos, fica na casa onde nasceu o pintor caldense José Malhoa e o empresário tirou proveito desse facto
José Manuel Alves é de Salir de Matos e a sua mulher, Deolinda Alves, é do Coto. Estão casados há 62 anos e ficaram com o espaço Irmãos Unidos, situado na Rua da Nazaré, em inícios de 1972.
“Um dia apareceu um anúncio do trespasse desta casa e nós avançámos com o negócio”, contou José Manuel Alves, acrescentando que o casal ficou com o espaço no início da década de 70 do século passado. “Pagámos 70 contos (350 euros) pelo trespasse”, recordou o empresário, de 86 anos. Hoje lembra que a casa precisava de uma grande remodelação e, como tal, José Manuel Alves pediu 200 contos (cerca de mil euros) ao banco que lhe permitiram pintar todo o espaço. Também mandou alcatifar os quartos como era habitual na época. Foi fazendo as necessárias obras e apostou em remodelar os quartos com casa de banho privativa.
“Tinha 11 quartos no primeiro andar e então deram-me a classificação de pensão de terceira classe”, contou o octogenário, acrescentando que tal classificação obrigava a ter disponível também as refeições completas. Em 1976, José Manuel Alves, que também trabalhava como secretário nos tribunais, vai para o Funchal mas ainda nesse ano regressa às Caldas e pede a transformação do seu espaço para pensão residencial, oferecendo apenas dormidas e pequeno-almoço.
“Recebíamos gente de todo o país!”, contou o caldense recordando que havia famílias que vinham regularmente no verão. E lembra-se de uma – casal e dois filhos – que “escolhia esta pensão residencial para ficar uns dias nas Caldas pois tinha sido neste espaço que o casal tinha passado a sua lua de mel”.
A casa chamava-se Irmãos Unidos porque antes de ser pensão dedicou-se aos petiscos e pertenceu a dois irmãos. Quando José Manuel Alves a adquiriu já era Casa de Hóspedes Irmãos Unidos.
“Abrimos a pensão no dia 15 de maio!”, disse o caldense recordando que a abertura do negócio foi feita no Dia da Cidade. Logo no primeiro dia alugaram o quarto a um casal. A mulher foi embora e o homem passou para um quarto mais barato. No primeiro dia tinha pago 25$00 pela noite enquanto que, no dia seguinte, por ter pedido para ficar num quarto mais pequeno, pagou apenas 15$00.
“Esta é a casa onde nasceu o pintor José Malhoa”, nota o caldense que tem lápides na sua fachada que assim o atestam. “Mas suspeito que não era assim como é hoje”, nota, pois quando tirou o reboco de uma parede viu a marca do telhado da casa original onde o artista nasceu. “A casa original seria mais baixa”, disse José Manuel Alves com base nessa marca de telhado que encontrou durante as obras. “E sim, fazíamos propaganda a esse facto!”, contou o empresário que até chegou a pensar em mudar o nome para residencial Malhoa. Só não o fez porque a burocracia era muito exigente.
Ao longo dos tempos vários foram os clientes que queriam à viva força dormir no quarto onde tinha nascido o artista. “Um senhor teimou e indiquei-lhe um quarto que não era dos melhores, mas após a primeira dormida o hóspede quis mudar para uns aposentos um pouco melhores. Já chega de Malhoa, disse ele!”.
Não sei em qual dos locais terá nascido o pintor… Era sempre no quarto que estava vago para alugar!”, contou o caldense entre risos.
E multiplicam-se as histórias de hóspedes que combinavam e vinham para a pensão todos na mesma altura para confraternizar nas alturas de lazer.
“E nós fazíamos sempre questão de lhes oferecer um almoço ou um jantar. Mais do que clientes eram amigos”, contou o empresário enquanto explica as transformações que o próprio espaço foi sofrendo ao longo dos anos.
A procura por espaços para os visitantes era sempre muita, estimulada pelo termalismo que dava alento à economia local. E, à falta de hotéis condignos, eram as residenciais que iam prosperando. “Fomos ampliando a casa e ainda fiz mais quatro quartos para cada lado”, contou José Manuel Alves. “Chegávamos a fazer marcações com um ou dois meses de antecedência”, contou.
A pensão residencial também viveu alguns momentos tensos pois aquando da revolução dos Cravos (abril de 1974), “foi invadida por soldados. Até parecia que já conheciam a casa pois posicionaram-se em pontos estratégicos”, contou o caldense. Estavam pois mandatados a procurar armas e tinham a missão de fiscalizar tudo nas pensões. Os clientes tiveram que ser acordados e os soldados correram toda a residencial. “Estava muito frio e por isso ofereci um cálice de aguardente a todos os que vieram”, contou. Passados mais uns dias, os soldados voltaram outra vez. “Só que eu tinha alojado um alferes do então RI5 que lhes disse: Por esta casa responsabilizo-me eu!”, contou o caldense.
A procura por espaços para acolher visitantes continuava e, como tal, José Manuel Alves e a esposa tomam a decisão de adquirir uma segunda pensão.
“Chamava-se Telheiro e era uma casa mal afamada que ficava na rua de Camões e que tinha um café por baixo… Havia uns engates e usavam depois os quartos”, disse o empresário. A primeira coisa que fez foi mandar cortar a ligação ao café e depois fizeram obras profundas e mudaram o nome para Residencial D. Carlos. “Tínhamos 12 quartos e exploramos a casa durante uns anos. Foi um bom negócio mas depois decidimos trespassá-la”, concluiu. Já em relação aos hóspedes da Residencial D. Carlos continuavam a vir termalistas, mas agora juntavam-se também viajantes e turistas.
“Se não mo vende, eu roubo-o!”
De volta à pensão residencial Irmãos Unidos onde aliás sempre houve cópias das pinturas de José Malhoa a decorar as paredes. Certo dia, a pensão recebeu o famoso flautista Rão Kyao. O músico insistiu que queria comprar uma cópia de uma das pinturas que estava exposta na receção, mas após a recusa de José Manuel Alves disse-lhe: “Ou me vende o quadro ou eu vou roubá-lo!”, e lá teve que se fazer negócio com a cópia de um dos quadros do famoso pintor naturalista.
Também o cantor Toy por ali ficou, assim como Francisco Fanhais, músico que partilhou os palcos com Zeca Afonso. Este último “foi meu colega no seminário de Santarém”, contou. Houve também quem, no inverno, tivesse levado os cobertores do quarto mas há registo de grupos de jovens de Aveiro que vieram assistir a um concerto a Lisboa e ficaram sem dinheiro para pagar a estadia. “Lá lhes fiei a dormida” e logo nos dias seguintes “recebi um vale-correio com o valor dos quartos!”.
A maioria dos hóspedes eram termalistas. “Normalmente eram mais as senhoras que faziam os tratamentos, enquanto que os maridos davam algumas voltas pela cidade e pelo Parque”, recordou. Muitos dos clientes “guardavam um dia para ir a Fátima”. Não se lembra de receber muitos veraneantes mas recorda-se de um casal que vinha, por exemplo, assistir à abertura da caça às rolas.
Trabalhadores e jogadores de futebol
Havia também jogadores e treinadores do Caldas. “Ficavam em quartos que eram alugados ao mês”, relembrou. Um dos treinadores pedia-lhe para preparar uma Caipirinha “logo pela manhã!”. O caldense lembra-se bem quando o Caldas subiu à primeira divisão nos anos 50. O empresário teria apenas 15 anos e viveu aquela grande festa.“Toda a gente conhecia os jogadores como o Bispo, o António Pedro e o argentino Calicchio que marcou muitos golos, tendo sido importante para a prestação da equipa”.E sem dúvida que o 15 de Agosto “era o apogeu das feiras das Caldas!”.
Havia quem viesse das freguesias, muito jovem, trabalhar para a cidade e que alugavam quartos ao mês, que hoje se tornaram em empresários de sucesso. Em paralelo, José Manuel Alves fez carreira nas secretarias dos tribunais, tendo passado pelo Tribunal Judicial do Funchal e do Trabalho das Caldas da Rainha. No seu percurso esteve ainda ligado aos seguros. Foi também, durante alguns meses, nos finais da década de 70, diretor do jornal Notícias das Caldas, a convite do fundador e amigo Mário de Carvalho. ■