Cartas de amor em tempos de Guerra Colonial

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O casal a recordar a correspondência, na sua casa em A-dos-Negros
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Adélia Duarte escreveu uma carta por dia ao namorado durante os 26 meses em que este esteve no “Ultramar”. Hoje, é Vítor quem escreve, poemas, que depois oferece com uma flor a cada aniversário da companheira. Estão juntos há 61 anos

Foram cerca de 200 mil os portugueses que, entre 1961 e 1974, fugiram para não cumprir o serviço militar e ir para a guerra nas ex-Colónias. Vítor Duarte queria ser um deles. Tinha assentado praça no Quartel da Carregueira, a 25 de outubro de 1966 e, meses depois, já na Trafaria pensava em desertar para França, pois a disciplina militar não era para ele. Um dia chegou mesmo a deixar a arma no quartel e foi para casa sem autorização. Os pedidos da família convenceram-no a voltar no dia seguinte, mas foi preso e, a partir daí, mobilizado para a companhia que estava a ser formada, na Amadora, para partir para África. Embarcaria a 12 de abril de 1967 rumo a Moçambique, no navio cargueiro Niassa, com 22 anos, e deixando no cais Adélia, a companheira de há vários anos com um filho bebé nos braços.
A viagem, de mais de um mês até ao destino, teve uma primeira paragem em Luanda, onde Vítor já tinha à sua espera cartas da amada. E foi assim durante os 26 meses que esteve em Moçambique. Todos os dias lhe escreveu uma carta, perfazendo mais de 700 as missivas escritas e que Vítor guardou, religiosamente, numa mala de cartão, que o casal ainda hoje conserva.
“Meu amor, mais uma vez cá está a tua queridinha a escrever-te e fazendo votos para que este meu aero [aerograma] te vá encontrar de uma ótima saúde e alegria”, começava uma das muitas cartas escritas por Adélia. Escrevia porque “achava que ele precisava, pois estava na guerra e não queria que estivesse tão isolado, e também porque eu não tinha mais ninguém com quem desabafar”, conta à Gazeta das Caldas.
E Vítor era, entre os militares da sua companhia, o que recebia mais correspondência. “Era muito reconfortante receber as cartas”, conta, recordando que, além das da namorada, também recebia missivas do pai e das irmãs, embora não com tanta regularidade. O soldado respondia à amada, “a cada dia e meio, em média” e algumas das vezes em verso. Também, por vezes, Adélia escrevia-lhe quadras e, noutras alturas, mandava-lhe versos que retirava das canções da época.
Aspeto curioso era que, por vezes, os versos que Adélia escrevia para o companheiro, chegavam a quatro soldados: a Vítor, ao filho de uma amiga que não sabia escrever e que lhe pedia para o fazer, e para uma amiga e uma cunhada enviarem aos respetivos maridos.
Vítor esteve 18 meses na zona de guerra, a norte do país, e depois passou para uma zona de “semi guerra”, onde o pior aconteceu. A explosão de uma granada numa emboscada da FRELIMO, quando iam buscar o correio, acabaria por atirar o soldado quatro meses para o hospital, período durante o qual não deu qualquer notícia a Adélia. “Foi uma grande preocupação, fui a todos os ministérios e ninguém me disse nada. Todos os dias perguntava ao carteiro, até que um dia, o Sr. João chegou a correr com uma carta, que no envelope dizia “viva a Peluda”, o termo usado para anunciar o fim da tropa”, e a jovem ficaria a saber o que se tinha passado.
Vítor acabaria por chegar a Lisboa a 1 de junho de 1969, a bordo do navio de passageiros Pátria e, ainda muito debilitado, passaria mais seis meses em tratamento.
Juntos há mais de 60 anos
Vítor Duarte nasceu no Bairro da Liberdade (atual freguesia de Campolide) e foi ainda menino que conheceu Adélia, que ali chegou aos seis anos, com os pais e irmãos, vindos de Alvarenga (Arouca), à procura de melhores condições de vida na capital. As irmãs dele eram colegas dela na escola primária e desde cedo o introvertido Vítor se mostrou interessado na extrovertida Adélia. “Ela era e ainda é lindíssima, apaixonei-me completamente”, recorda Vítor, atualmente com 78 anos, e ano e meio mais velho do que Adélia.
Começaram a namorar tinha ele 18 e ela 16 e estão juntos há 61 anos. Mas não foi uma vida fácil, recordam. Dos tempos da juventude lembram a rigidez da mãe de Adélia e depois, com o regresso da progenitora, e depois do pai, para a terra Natal, da vida de “gata borralheira” que passou em casa dos pais de Vítor, para onde foi morar, até se chatear com uma cunhada e ir viver sozinha com o filho bebé, na altura em que o namorado estava em Moçambique. Foi já na nova casa que o recebeu, e tiveram a “lua de mel”, mesmo antes de casarem, em setembro de 1969.
O casal continuaria a morar no Bairro até finais de 1973, altura em que muda para Carenque (Amadora), então já com dois filhos. Vítor, que trabalhava como eletricista, foi prosseguir estudos, e Adélia dedicava-se à venda de peixe.
Vieram morar para A-dos Negros no ano 2000, depois de terem restaurado a habitação que adquiriram. Parte do tempo é passado a viajar, na autocaravana que possuem, mas também continua a haver lugar ao romantismo. Vítor continua a escrever poemas e surpreende Adélia, normalmente quando ela faz anos. “Tem um poema escrito, depois vai ao quintal  apanhar uma flor e, quando eu me levanto, tem já pequeno-almoço preparado, com uma flor e um poema”, partilha a esposa, que os guarda a todos.
“O amor vai mudando ao longo da vida. Transforma-se em muitos sentimentos como o carinho, compreensão, respeito e proteção. Nós protegemo-nos e preocupamo-nos sempre um com o outro, e isso é amor”, resume Vítor, feliz por ter encontrado a companheira para uma vida. ■
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