Crónicas de Bem Fazer e de Mal Dizer – LXIV

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Gazeta das Caldas
Isabel Castanheira

Os Alfacinhas

Alfredo Mesquita [1871-1931], escritor, jornalista e colaborador de dois dos jornais de Bordalo Pinheiro, “O António Maria” e a “Paródia”, era um apaixonado estudioso da cidade Lisboa. Em 1903 deu à estampa um livro intitulado “Lisboa”, com quatrocentas gravuras. Este livro foi editado pela “Empresa da História de Portugal” e comercializado pela Livraria Moderna, situada na Rua Augusta, em Lisboa.
Alfredo Mesquita dedicou um capítulo da sua obra aos “Alfacinhas”, capítulo esse em que o Zé Povinho é a personagem visada. Escreveu ele:
“Rafael Bordalo Pinheiro, o trocista semi-filósofo, que tomou a seu cargo fazer à pena e a lápis, sobre a crusta amarela do papel autógrafo, o comentário risonho, e não raro de bom senso, do seu tempo e da sua terra, querendo fixar em uma caricatura simbólica o feitio moral do nosso povo, no invólucro ratão do seu feitio físico, criou o Zé Povinho.
Mas era preciso explica-lo, defini-lo, caracteriza-lo, insuflar-lhe vida, e torna-lo imortal. E assim o fez o Álbum das Glórias, pela pena alegre de João Ribaixo.
Segunda essa risonha biografia, não consta que jamais as graças da infância se houvessem conservado por tão longo tempo num homem, como fenomenalmente se conservam na pessoa do Zé-Povinho. Nele concorrem em feliz conjunto todas as partes que nos enlevam e encantam no «bom menino»: casta inocência, temor de Deus, obediência a seus mestres, humildade, e santíssima ignorância. Aos carinhosos desvelos da sua extremosa mãe, a Carta, e do seu galhofeiro pai, o Parlamentarismo, se deve o estado miraculoso da infantilidade que tão vantajosamente Zé-Povinho à simpatia e ao espanto de todo o mundo.
Ele começava apenas a ter-se nas pernas, cambadas pelos esforços feitos para se pôr em pé antes de tempo, quando os Poderes seus pais, pondo-o à porta das instituições, na franca direção do olho da rua, lhe fizeram este memorável discurso:
– «Zezinho, vai passear.»
Nós teus pais, depois de havermos cogitado com diurna e noturna aplicação sobre o que mais convém à tua felicidade, resolvemos de comum acordo que o melhor dote que se podia dar era a liberdade, pois a liberdade é como bem dizemos filósofos, o maior de todos os bens, superior ao próprio oiro.
Sê livre, e capacita-te de que vais muito bem convidado com a licença que para isso te conferimos, do que com três ou quatro pintos que te metessem no bolso!”
E cá ficámos nós para viver na companhia desse Zé Povinho livre e pobre…