Quando a Liberdade chegou, eu tinha oito anos. Os meus irmãos, em escadinha, tinham quase 7, quase 5, quase 4. Os mais novos viviam felizes nessa espécie de infantário chamado Rua de Cima, em Óbidos, sabia e ternamente dirigido pela avó Sofia.
Nós, os mais velhos, já andávamos na escola, nos Arrifes. Rapazes de um lado, raparigas de outro, salas separadas, recreio dividido. Uma régua grossa de madeira impunha a sua presença, ‘premiando’ os erros ortográficos: catorze erros = catorze reguadas, trinta erros =… Aulas ao sábado de manhã, com campeonatos de contas de dividir, com montes de algarismos e vírgulas no dividendo e no divisor, a contarem como diversão e com prémios de rebuçados de tostão para os vencedores. E uma professora, cujo nome não quero recordar, que dava aulas de estores corridos, na penumbra, e cuja voz ainda me ecoa nos ouvidos: “as vossas cabeças são mais duras do que as pedras da muralhaaaaaaa…”.
Em casa, vivíamos com medo da guerra. Com três irmãos, a ida da família para França a tempo de fugir era um projeto a prazo. Da guerra ouvíamos os nomes de rapazes do concelho que tinham regressado deitados em caixas de chumbo ou estropiados. E tínhamos medo. Em casa, ouvíamos e cantávamos o Zeca Afonso, mas sabíamos que fora de casa o não podíamos fazer. Estranho, tão estranho para uma criança… Em casa, tínhamos televisão e víamos todos os bonecos animados que podíamos, mas sabíamos que a maior parte dos nossos colegas não tinha essa sorte.
Um dia mudou tudo, ou quase tudo. Nesse dia, uma quinta-feira aparentemente igual às outras, vimos passar as tropas para Peniche. Soubemos depois que iriam libertar os presos políticos do Forte. Nesse dia fomos para casa – que bom não ter aulas! Entre brincadeiras e ouvir comunicados do MFA na televisão, um misto de surpresa e encantamento por tudo ser novo a estrear. Os adultos estavam loucos de alegria, esfuziantes. Mas, nos primeiros dias, ainda com receio do que poderia acontecer, temendo um possível retrocesso ao antes.
A seguir, recordo um maio cheio de sol, com sol dentro de nós, nas ruas, nas portas da Vila, escancaradas. Com uma alegria ímpar e a descoberta de um mundo novo no nosso pequeno mundo.
Em outubro, quando voltámos às aulas, já estávamos misturados, rapazes e raparigas e a fronteira do recreio era coisa do passado. Começava a minha quarta classe, com a professora Teresa, depois substituída pela Deolinda. Ambas novas, tudo diferente – muitas cantigas, muitas brincadeiras, muito estudo também, mas que nos soava a doce esforço, em comparação com um passado tão recente e tão escuro.
Em Óbidos, tinha sido nomeada uma Comissão Administrativa, dirigida pelo Escultor José Aurélio, então residente na Vila. Assegurava-se a transição até às primeiras eleições autárquicas, que teriam lugar em dezembro de 1976. Recordo os cartazes e os autocolantes que marcam este período do pós-25 de abril, que inscreviam um lema: “Óbidos na construção da felicidade”.
E é mesmo felicidade pura que recordo, num Dia da Criança, em 1975 ou 1976, com todos os miúdos do concelho na Praça de Santa Maria, a fazerem pinturas em pequenos retângulos de ‘platex’.
Hoje, uma eternidade depois, festejar o 25 de abril, mais do que fazer sessões formais que às vezes cheiram a bolor, é fazer viver a democracia local. Participar nos debates, fazer parte dos órgãos do poder local, dar vida às associações, construir todos os dias a nossa comunidade.
Foi para isto que se fez o 25 de Abril. Ontem, e hoje. Sempre.
Cristina Rodrigues
gouvarinho@hotmail.com