A censura nas páginas da Gazeta

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As histórias da censura na Gazeta das Caldas não são muito diferentes daquelas que qualquer meio de comunicação que viveu em tempos de ditadura

O primeiro vestígio do lápis azul nas páginas da Gazeta aparece logo em 1926, na edição de 27 de junho, em que consta pela primeira vez a informação obrigatória de que aquele número havia sido visado pela comissão de censura.
Nestas décadas, exemplos há de artigos que foram impedidos de sair e de artigos que foram “inventados” para o seu lugar. Mas também há estórias de artigos que não foi possível substituir e que foram apenas rasurados com a impressão de letras ao contrário, por cima do texto a “apagar”. A 29 de julho de 1928 a primeira página da Gazeta apresenta um desenho do Zé Povinho com a mão na cabeça e a informação de que “Este número foi visado pela Comissão de Censura” num formato exagerado. Provavelmente, o texto de opinião que cabia naquele espaço tinha sido censurado e já não houve tempo de o substituir.

As primeiras notícias livres da censura chegam à Gazeta apenas em maio de 74

O diretor da Gazeta desde estes tempos, José Luiz Almeida e Silva, guarda ainda registos de textos que escreveu para este jornal e que nunca foram publicados. A azul, a resposta, escrita à mão, diz o seguinte: “na forma que revestem não autorizo a publicação dos três escritos juntos. Os indicados por 1 e 2 são manifestamente tendenciosos. O indicado por três tem a natureza dum ataque pessoal, aliás reiterado e infesto”, antes da assinatura.
Em causa estavam então três artigos: um sobre a peça de teatro “Um deus dormiu lá em casa”, de Guilherme Figueiredo, pela TEIA – Teatro Amador de Setúbal – Academia Luisa Todi em que o autor criticava a peça e a própria escolha da companhia; um segundo, “O menino matou-se por não querer estudar”, a história de um jovem rapaz que se suicidara no Porto e o terceiro, “Aplausos e Assobios – Águas Mornas City – Turismo, Lirismo e “La Doce Vita” (triste realidade)”, em que se criticava a estratégia turística da região.
Também há ainda hoje registos de uma carta acerca de um artigo sobre turismo que, em 1965, tinha visto a sua publicação permitida após ter sido submetido à censura prévia. “Como não citasse nomes, só tratasse de Turismo Regional e não houvesse nesta Delegação quaisquer instruções especiais acerca do assunto, foi permitida a sua publicação”, lê-se na carta enviada à Gazeta.
“Verifico apenas que na realidade o tom agreste em que está redigido não é correto e portanto, foram já tomadas as medidas que me parecem necessárias e suficientes para que facto semelhante se não volte a repetir nem com aquele assunto, nem com qualquer outro”, continua o delegado dos Serviços de Censura, que termina com um “a bem da nação”.

O momento da mudança
A revolução dos cravos foi a grande viragem na Gazeta, um jornal que se caraterizava por ser “a voz do dono”. Ainda assim, e conforme é possível perceber pela análise das edições da Gazeta e também pelos estudos do historiador Luís Nuno Rodrigues sobre a História deste jornal (publicados em 1989), “o 25 de Abril começa por ser como que abafado das páginas da Gazeta, tal como o havia sido a tentativa frustrada dos militares caldenses a 16 de Março”.
As primeiras notícias livres da censura chegam em maio, quando o jornal informa que “o director deste jornal deu a um representante das forças democráticas caldenses garantias da integração imediata da Gazeta das Caldas no espírito e na acção da Junta de Salvação Nacional”.
Segue-se, após os anos amordaçados, “um jornal polémico, exaltado, agressivo e, por vezes, radical”, no fundo, um reflexo dos tempos que se viviam no país.
É nesses tempos, em 1975, que a Gazeta se refere ao “projecto Jesuíno”, quando o ministro da Comunicação Social, Correia Jesuíno, anunciou multas e suspensões para controlar a informação. “Somos contra qualquer espécie de censura, e pensamos que na actual fase de desenvolvimento do processo político seria muito grave a existência de entraves à livre circulação da notícia, da ideia, da opinião”, pode ler-se. ■

 

Do combate à ditadura e à censura

Diretor recorda momentos em que o jornal teve de enfrentar o lápis azul

Ao longo dos seus quase cem anos, a Gazeta das Caldas mostrou-se muitas vezes contra aqueles que menosprezaram, desconsideraram, prejudicaram, desautorizaram a região das Caldas, no centro daquilo que se passou a conhecer mais tarde como o Oeste, lutando mesmo contra os mecanismos da repressão aplicada à imprensa que era a Censura ou o Visto Prévio.
Jornais como a Gazeta das Caldas, que, mesmo próximos e defensores do regime e dos seus dirigentes máximos nas instâncias do poder central, envolviam-se num combate contra o lápis azul, que condicionava a “sua” liberdade de dizer o que achava por bem em certas temáticas locais, não escapando ao crivo prévio.
“Por várias vezes, no período da ditadura o diretor Saudade e Silva utilizou, a favor do jornal, as incongruências do método da censura, que obrigava a enviar muitos artigos mais controversos a Leiria para serem lidos pelos capitães ou majores da GNR, que eram os censores da época, e explorando a ineficiências dos transportes pelos serviços rodoviários”, recorda José Luiz de Almeida e Silva, que dirigiu o jornal apenas em liberdade, mas que antes foi um colaborador acidental do jornal, mas atento da realidade da “redação”.
“Comecei a escrever na Gazeta antes do 25 de Abril, através da entrega indireta dos artigos a alguns colaboradores. Percebi que tinham de ser evitados certos temas que dificilmente passariam em Leiria”, explica o atual diretor, que sentiu, com os seus colegas e amigos, na pele o traço azul da censura com a experiência do suplemento “Análise”, em 1973.
Olhando para trás e ao rever os ditos suplementos do “Análise” publicados no início de 1973, verifica que, mesmo assim, o grupo de jovens candidatos a jornalistas arriscavam muito, ou certamente, desafiavam os censores por quixotismo mas de forma ingénua.Iniciar editorialmente aquele suplemento com uma citação do padre jornalista Rui Osório, que depois do 25 de Abril veio a ser membro Conselho de Imprensa na segunda metade dos anos 1980, quando o diretor da Gazeta também fez parte, era uma provocação: “A informação é o sintoma do grau, da vitalidade e da liberdade social de um povo. Fim específico da Imprensa, a informação não deve estar ao serviços de nada a não ser da própria sociedade”.
E continuava como propósito do citado suplemento em janeiro de 1973 em maiúsculas: ”NASCEMOS HOJE! PODEMOS MORRER HOJE MESMO! MAS NÃO QUEREMOS… Análise é o nome deste recém-nascido. Análise quer dizer análise, informação, formação, discussão, luz, tribuna livre, diálogo, juventude, vida, movimento, dizer presente no momento actual.”
Se olharmos para as três edições do suplemento publicadas nos três primeiros meses desse ano, facilmente se adivinharia que a mesma experiência seria calada de forma burocrática, por falta de meios e de oportunidade.
Mesmo assim ao longo de três números foi possível falar de vários temas tabu, como educação sexual, a poluição, a droga, a poesia de António Aleixo, o cinema do realizador russo Eisenstein ou do novo cinema português, “música como reflexo da sociedade”, navegando entre Simon & Garfunkel e a ópera rock “Jesus Cristo Super-Star”, a guerra do Vietnam e do Biafra, a poesia de Brecht, mesmo de problemas sociais locais como do estado em que se vivia no Bairro dos Arneiros com os esgotos a correr a céu aberto.
Foram feitos neste período, para publicar nos suplementos, dois inquéritos aos jovens locais para conhecer as suas preferências em termos musicais, cinematográfico, de literatura, de jornais e de ocupação dos tempos livres, bem como depois sobre as opiniões de alguns alunos e professores da Escola Industrial e Comercial, sobre o próprio suplemento e a atividade cultural da escola.
“À distância de quase meio século, não vislumbramos o que devia ir na cabeça daqueles capitães ou majores da GNR, que chefiavam na dita capital de distrito os serviços da censura e que observavam que num jornal próximo do regime, se publicavam aqueles dislates ou indiretas em relação ao pensamento única que então vigorava”, nota José Luiz de Almeida e Silva, que questiona: “Quantos telefonemas devem ter sido dirigidos ao Dr. Saudade e Silva, nas Caldas da Rainha, que certamente invocava desculpas espúrias, mas quem sabe com um certo gozo de ver desafiado aquele poder que o tinha manietado por várias vezes apesar de razões totalmente diferentes”.

Suplemento “Análise”, de 1973, permitiu abordar alguns temas tabu nas páginas do jornal

“Para mim foi uma experiência que não esqueço, até porque permitiu cimentar amizades e cumplicidades com muitos amigos que permanecem até hoje, apesar do afastamento que depois as vidas profissionais obrigaram. Foi aí que vi, em concreto, o que se tratava a censura e essa repressão anacrónica de cortar as ideias ou a ‘raiz ao pensamento’ como dizia o poeta”, afirma o diretor da Gazeta.
A juntar à censura sobre a imprensa naquela época não esquece a repressão da correspondência da própria PIDE/DGS, que vigiava o correio que era enviado, pois ainda fui encontrar também na Torre do Tombo, nos arquivos da PIDE/DGS, cartas que Jose Luiz de Almeida e Silva havia enviado para Portugal com recortes do Le Monde e de outros jornais, umas vezes fotocopiados e que seguiam depois para os destinatários, outras vezes, simplesmente apreendidos e que nunca chegaram ao destino.
“Para os mais jovens tudo isto pode parecer improvável ou impossível, pois hoje com a internet, os telemóveis, o facebook, o WhatsApp, o Instagram, etc., etc., ninguém consegue percepcionar aqueles tempos. Mas a vida era assim…”, conclui. ■