No início dos anos 90, quando ainda não havia blogues, a Internet dava os primeiros passos em Portugal e era habitual existirem convívios culturais que juntavam várias pessoas à mesa, fosse nos cafés ou nos restaurantes. O restaurante Caldinho, na travessa da Cova da Onça, era um deles, um local de tertúlias onde se juntavam algumas personalidades caldenses.
Era à quinta-feira que esses encontros se tornavam ainda mais intensos, com vários comensais a juntarem-se ao núcleo duro inicial, onde não faltavam os fados. Até Nuno da Câmara Pereira participou e cantou num desses almoços, por ocasião de um aniversário de José Carlos Nogueira.
Do grupo original faziam ainda parte, para além de José Carlos Nogueira, Luiz Saudade e Silva, Custódio “Tó” Freitas, Ernesto Moreira, Susana Nogueira, Odete Freitas e António Próspero.
A estes começaram a juntar-se pessoas como Vasco Trancoso, Ferreira da Silva, Mário Tavares e Margarida Araújo, entre muitos outros. Principalmente no Verão, quando se faziam sardinhadas no pátio do restaurante, havia mais de 30 pessoas a participar.
Luiz Saudade e Silva, autor do texto que acompanha este artigo, recorda com saudades estes momentos de confraternização, que tiveram início em 1993 e que só acabaram no final dessa década, quando o restaurante encerrou as suas portas (algum tempo depois do seu proprietário, Rui Aniceto, ter falecido).
“Falava-se de tudo, até política, mas sempre numa amena cavaqueira, num ambiente descontraído e sempre com a ‘supervisão’ do Dr. Ernesto Moreira, que era o nosso patrono”, recorda Luiz Saudade e Silva.
Os que se dedicavam mais às artes foram fazendo algumas criações, que eram depois afixadas nas paredes dos anexos do restaurante. Das pinturas de Ferreira da Silva, às caricaturas de Vasco Trancoso, mas também um fado escrito por Luiz Saudade e Silva (que também publicamos nesta página).
Depois do “Caldinho” ter encerrado ainda tentaram replicar estes encontros no restaurante “A Mimosa”, na praça 5 de Outubro, mas o espírito que se vivia na década de 90 nunca mais voltou a ser o mesmo.
Para Luiz Saudade e Silva, isso acontece não só por o local ser outro, mas porque, cada vez mais, as pessoas preferem ficar em casa e conviver através da Internet. “O contacto humano tem perdido algum significado, mas eu luto contra essa corrente, embora também seja a favor dos computadores e da Internet”, concluiu.
Caldinho, anos noventa
A propósito de “Blogues”, que considero semelhantes às tertúlias que felizmente por vezes ainda acontecem apesar do hábito cada vez maior de se comunicar virtualmente, quero partilhar o testemunho de uma época em que a amizade e a camaradagem, andaram de braço dado.
Éramos um grupo de amigos que quase diariamente almoçava no “Caldinho”, restaurante antigo e muito conhecido que, durante muitos anos, foi frequentado por algumas famílias caldenses.
Ao fim da tarde era o local de encontro dos amadores do petisco e do copo mais ou menos clandestino, para os que ali encontravam refúgio, escapando à rotina das semanas e dos dias.
Propriedade na altura do Rui Aniceto e da mulher, carinhosamente chamada de Dona Lila, tinha um anexo antecedido por um pátio abrigado do sol por duas trepadeiras centenárias, que nos dias soalheiros de verão recolhiam na sua sombra os amantes da deliciosa comida feita pela Dona Lila, no seu velho fogão a lenha.
A porta de entrada do restaurante dava para a Travessa da Cova da Onça e ao lado tinha uma outra porta que dava acesso ao páteo que, por sua vez, tinha um anexo que era outro espaço para refeições, mais privado.
No tempo mais frio, o anexo, onde o Rui exibia uma vasta colecção de porta-chaves, tornou-se o palco de algumas exibições de fado, mais ou menos “vadio”, que aos poucos se foi tornando conhecido e cada vez mais frequentado.
Ali se falava de tudo, numa convivência saudável em que pontificava um amigo de todos nós, o Dr. Ernesto Moreira, médico distinto, inseparável e grande companheiro, que nos entretinha com interessantes histórias dos seus oitenta anos bem vividos.
Havia, além do nosso pequeno grupo, mais pessoas que noutras mesas assistiam atentos e deliciados à conversa, dia a dia mais interessante e apelativa para esses e outros que, pouco e pouco, iam aparecendo por ali.
O Ferreira da Silva, o Tonecas, o Vasco Trancoso e mais pessoas que normalmente tinham por hábito almoçar ali todos os dias, assistiam às nossas conversas e nelas participavam. O Ferreira da Silva entretinha-se a riscar o papel com a sua inseparável caneta e daí surgiram alguns desenhos interessantes. A Margarida e a sua boa disposição, também por ali aparecia, sempre acompanhada pela sua máquina fotográfica, onde foram registados os momentos mais importantes e deliciosos daquela altura.
Às quintas-feiras aparecia mais gente, uns quantos amigos de uns ou de todos, entre os quais o Zé Álvaro que chegava sempre a horas, mesmo vindo da Praia da Areia Branca e o Monroe, acompanhados da sua guitarra e da sua viola. Como uma coisa leva a outra, a seguir ao petisco ou depois do almoço, dedilhava-se a guitarra ao compasso da viola e, os que tinham um certo jeito, cantarolavam uns fadinhos muito à moda do Marceneiro.
Aos poucos começou a aparecer ainda mais gente, como o Jorge Sales e a Alice, o Alfredo que vinha da Nazaré, e ali começou a haver fado. Lembro-me que o Nuno da Camara Pereira, acompanhado pelo Custódio Castelo na guitarra, veio até ao Caldinho cantar uns fados no aniversário de um amigo nosso.
No verão punham-se as mesas cá fora, à sombra das trepadeiras e as sardinhas assadas passavam num corrupio constante, do grelhador do Sr. Joaquim para as mãos do Rui, e daí para a mesa ou para o nosso prato.
Tornou-se uma tradição as sardinhadas do Caldinho e todas as quintas feiras o pátio era pequeno para albergar toda a gente que se sentava à mesa, nos bancos de tábuas corridas, alguns mais impacientes pelo inicio daquele ritual, do que pela fome.
O Sr. Joaquim, amigo da casa, consagrado assador de sardinhas e curiosamente talhante de profissão, não tinha mãos a medir, mas conseguia, quase sempre, dar vazão às exigências da “turba” que pedia mais…
Foi um verdadeiro centro de convívio, que juntou um grupo enorme de amigos e conhecidos que não se encontravam havia anos e que religiosamente ali compareciam.
Recordavam-se datas, tempos de escola, episódios de vida, uns mais felizes, outros menos. Conseguiu-se juntar todas as quintas feiras algumas dezenas de pessoas, sem distinções sociais ou profissionais a quem apenas interessava o momento daquele dia, despedindo-se depois, felizes por reencontrar amizades e recordar vivências que, doutra forma, talvez nunca tivessem podido fazer.
Passados vinte anos e em memória desse tempo, do bom e saudável convívio que todos nós tivemos, em homenagem aos amigos que já nos deixaram, aos que viveram esta divertida e salutar experiência, e aos donos dessa casa, Lila, Rui e Jorge, dedico este texto, o “Fado do Caldinho” e as três fotografias que recordam alguns momentos de fadistice…
Luiz Saudade e Silva
Fado do Caldinho
Em alegre cavaqueira
Reúnem à quinta-feira
Entre azeitonas e vinho,
Com amizade informal
Um grupo bem fraternal.
No restaurante Caldinho.
Há perdiz, há carapau,
E também há bacalhau,
À moda da Dona Lila,
E há lebre com feijão,
Tudo feito num fogão
De lenha, à moda antiga.
No verão há sardinhada
Debaixo duma latada
Com salada e arroz doce,
Que feito com muito esmero
O Rui nos traz com desvelo,
Como se criança fosse.
A presidir ao almoço
Entre todos o mais moço
Com a maior simplicidade,
Fica o Ernesto Moreira
Com o Zé Carlos Nogueira,
Ao lado, o Luís Saudade.
Porque não são mais de sete,
Em frente fica a Odete,
O Tó, o Próspero, o Zé Lino,
E sentado ali ao pé
Fica o Joaquim Nazaré
Nos almoços do Caldinho.
Então, com grande algazarra,
Se faz uma grande farra
Que termina em alvoroço,
Mas fica a nossa amizade
E uma grande vontade
De repetir o almoço!
1995