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A aldeia dos pescadores do lado do Vau, na Lagoa de Óbidos, é cada vez mais pequena e está condenada a acabar, apesar do seu valor histórico e paisagístico. Duas dezenas de voluntários juntaram-se num chuvoso sábado para ajudar a manter uma das cabanas que ali existe há cerca de 25 anos. Foram feitas pequenas reparações, mas o principal trabalho é a substituição das canas que cobrem a estrutura.

Na manhã do passado sábado, 21 de Setembro, 20 voluntários de várias idades juntaram-se na margem da Lagoa de Óbidos, junto à Poça Pequena, do lado do Bom Sucesso. Ali fica a aldeia dos pescadores, com as características cabanas onde estes arrumavam as suas artes e onde, em tempos ainda mais remotos, chegaram a habitar.
O grupo uniu-se para recuperar uma dessas cabanas, numa acção organizada pela Liga para a Protecção da Natureza no âmbito do Centro Interpretativo da Lagoa de Óbidos.
Quando os voluntários chegam ao ponto de encontro, encontram um monte com dezenas de canas cortadas e amontoadas. Depois de um pequeno enquadramento histórico e de uma explicação sobre os passos a seguir, são distribuídas luvas e tesouras de poda. A partir daí, mãos ao trabalho: mede-se a altura da cabana, corta-se as canas à medida e o restante será usado no telhado.
Retiram-se as varas que seguram as canas antigas, já secas e castanhas, e “descasca-se” a cabana, até ficar toda em chapa. Aí chega a altura de remendar os pontos de ferrugem mais graves e colocar-lhe nova cobertura de canas.
As folhas das canas não devem ser arrancadas porque isso torna a protecção menor. As canas devem ser colocadas lado a lado, viradas para baixo, para não acumular a água. Depois são presas com recurso a uma vara de eucalipto.
Devido à chuva, que atrasou os trabalhos, ao fim do dia só meia cabana é que ficou com um aspecto completamente renovado, mas a outra metade ainda não.
O grupo tinha participantes de diferentes idades e de diversos locais. João Faria, que vive no Vau, veio com a esposa ajudar o amigo Valdemar. “Eu sou do Vilar do Cadaval e desde pequeno que vinha para aqui, conheço isto tudo e depois surgiu a oportunidade de vir morar para o Vau”, contou. “Não esperava ver tanta gente porque nem todos estão dispostos a dar do seu tempo para ajudar os outros. Devia acontecer mais vezes e com mais pessoas”.
Como trabalha na construção, para si o trabalho foi fácil. “A manutenção deste património é essencial, mas é o país que temos”, disse João Faria.
Já Jorge Baptista veio de Cascais de propósito e não conhecia as cabanas dos pescadores da Lagoa. “Sou sócio da LPN e gosto destas acções, portanto estou sempre na linha de partida para participar”, disse, acrescentando que lhe tinha dado muito gozo participar nesta reconstrução.
Entre os voluntários, de Leiria e Lisboa, além claro, de caldenses e obidenses, havia membros de associações cívicas e ambientais.

Valorizar o património da lagoa

As cabanas que ali existem não têm o formato tradicional em cunha, nem são feitas com os materiais que originalmente eram utilizados. Inicialmente estas eram erguidas com materiais vegetais que por ali se encontravam, como a madeira dos eucaliptos, esteiras de buinho e canas.
Nessa altura eram usadas como habitação e fazia-se uma fogueira no meio. Estes pequenos espaços davam guarida aos pescadores durante grande parte do ano. Actualmente ninguém habita nestas cabanas e também já não se faz fogo no interior. Mas ainda são um local para guardar alguns apetrechos, para descansar e para fazer uns petiscos.
Ana Rita Martins, da LPN, explicou à Gazeta das Caldas que irão tentar organizar uma segunda sessão já em Outubro para acabar o trabalho iniciado. “Foi extremamente positivo, com uma equipa muito bem-disposta que, apesar de o tempo não ter ajudado, não arredou o pé”, afirmou, notando que havia “muita curiosidade para aprender e para replicar um modelo que valoriza o património cultural da Lagoa”.
Esta é uma ideia que poderá ser replicada com a participação de outras entidades locais. “Há outras cabanas a necessitar e juntos conseguimos fazer muito mais, até porque isto valoriza a comunidade piscatória, mas também o lado cénico e paisagístico da Lagoa de Óbidos”, fez notar Ana Rita Martins.
E como estas cabanas de pescadores estão condenadas, a técnica considera que é fundamental “manter as que existem bem conservadas e atractivas a fim de incentivar à criação de medidas que ajudem à sua conservação e manutenção”.
No âmbito do Centro de Interpretação, está também a ser desenvolvida uma exposição com os resíduos que foram recolhidos na limpeza das margens da Lagoa. Essa acção permitiu identificar o tipo de lixo em cada zona, por exemplo, na foz do Rio Real encontram-se imensas artes de pesca, na zona do Vau está o lixo de visitantes e campistas e no Nadadouro encontrou-se uma zona que foi utilizada para deposição de monos.

Meio século na Lagoa de Óbidos

Já o dono da cabana, Valdemar Lopes, elogiou a iniciativa e a dinâmica dos voluntários e confessou que “nem estava à espera, mas apareceram-me 20 pessoas para ajudar a tapar a barraca, e isso é bom!”.
O pescador e mariscador ofereceu o almoço aos voluntários, tendo preparado, além da carne grelhada, um grande tachado de mexilhão pescado na noite anterior.
Durante o dia partilhou todo o seu conhecimento da Lagoa e ao final da tarde, e já na companhia da esposa, dos filhos e dos netos, Valdemar aproveitou para mostrar outras paixões e cantou enquanto tocava música popular na sua concertina.
Este vauense começou a ir apanhar berbigões com 12 anos, a acompanhar o seu pai numa bateira, que também comprava peixe em Peniche para vender no Vau e levava o marisco para a cidade penichense.
“Os meus irmãos emigraram todos, porque a vida era complicada, mas eu não, porque comecei a gostar disto e fiquei por aqui e não estou nada arrependido”.
Foi há cerca de 25 anos, quando surgiu a necessidade de licenciamento, que foi autorizada a construção das cabanas. Foi o próprio, com a ajuda de amigos, que ergueu este pequeno abrigo em chapa e madeira. Os remos de um barco que o seu pai utilizou há 50 anos fazem parte da estrutura.
Quando Valdemar era criança, o seu pai deu o nome do filho ao barco que tinha. Hoje ainda é esse o nome da embarcação deste mariscador.
Valdemar Lopes não nota que existam menos pescadores e mariscadores, que segundo ele rondam sempre as duas centenas. Ainda assim, o que tem desaparecido são as cabanas. “Lá em cima, perto dos Musaranhos, haviam umas dez e só ficou uma e aqui também deviam haver dez e sobram cinco ou seis e estão condenadas porque não deixam construir mais nenhuma”.

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400 quilos de enguias numa noite

Em meio século, este vauense já viveu muito nesta Lagoa. Chegou a fazer travessia de pessoas entre as duas margens e a apanhar limo para as fazendas do seu pai. E também ainda se lembra de participar em corridas que os pescadores faziam movimentando os barcos com recurso a uma vara.
Estas quatro frágeis paredes chegaram a albergá-lo durante temporadas, especialmente na época das enguias. “Passávamos aqui noites seguidas em que dormíamos uma hora ou duas, porque eram os meses em que estava a dar. O meu recorde foi uma noite em Dezembro de 1982 em que eu e um colega apanhámos 400 quilos”.
Na Lagoa de Óbidos é raro pescar-se peixe com mais de um quilo. Em cerca de 50 anos, Valdemar apanhou um safio com seis quilos e outro com 12 e sabe de quem tenha pescado um cação com 25 quilos.
Nessas alturas em que ficavam temporadas nas cabanas, os pescadores e mariscadores trabalhavam pela noite dentro e depois, durante o dia, conviviam enquanto confeccionavam e degustavam “umas assadas de peixe e umas caldeiradas de enguias aqui nas cabanas”.
Entre as histórias que ali passou, Valdemar lembra-se de há cerca de 20 anos ter vindo dormir para a cabana. “Como estava sozinho trouxe uma espingarda que deixei à entrada da cabana, mas do lado de dentro. Quando acordei já não lá estava, alguém a levou”, conta.
Outra vez chegou à noite à Lagoa, já com tudo preparado para a pesca e quando olhou para o sítio do barco este não lá estava. “Alguém levantou o ferro e tivemos que andar à procura dele à noite, com uma lanterna, estava do lado da Foz, mas estava bem, não foi para o mar”.

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