AO SERVIÇO DA RAINHA IV

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OuvidorO ouvidor

Por: Carlos Querido
Após o falecimento de D. Afonso V e a aclamação definitiva do Príncipe Perfeito, este convoca cortes para Évora, onde enfrentará os grandes senhores do reino, vergando-os à sua autoridade e criando inimigos com quem se confrontará mais tarde. Uma das decisões mais polémicas assumidas pelo novo rei, foi a de enviar corregedores “desembargadores entendidos e letrados” às terras dos grandes donatários, para fiscalizar e punir os abusos de poder que reduziam os povos a situações de humilhação. 
A par dos corregedores, que eram juízes régios, e foram um instrumento vital da centralização do poder, havia na jurisdição do reino uma outra classe de magistrados: os ouvidores, que aplicavam a justiça nas terras senhoriais em nome do senhor da terra.
Na doação feita à rainha Dona Leonor, que incluía a vila e termo de Óbidos, era-lhe concedida a jurisdição cível e crime, estando atribuídas ao desembargador do Paço, Rui Boto, as funções de ouvidor em todas as terras da rainha.
Na sua crónica, Garcia de Resende fala-nos da integridade deste juiz desembargador, narrando um curioso episódio que reflete a grandeza de D. João II. Corria termos uma demanda de João Rodrigues Pais, contador-mor de Lisboa, contra el-rei, que veio a ser julgada na Relação por um colectivo de juízes onde se integravam: Rui Boto (chanceler-mor do reino), João Pires, Rui da Grã e Frei Pedro Vaz Gavião, vigário de Tomar, que veio a ser prior de Santa Cruz e bispo da Guarda.
Os juízes deliberaram dar razão ao contador-mor, e o rei quis saber quem fora o primeiro a votar contra a sua pretensão. Veio a saber que havia sido o vigário, por ser o mais novo, regra que ainda se mantém na nossa jurisdição penal, e mandou-o chamar à sua presença. O vigário compareceu aterrorizado e ouviu com surpresa estas palavras do rei: «vigário, eu sempre vos tive em muito boa conta e agora vos tenho em muito melhor por serdes o primeiro que votaste contra mim, que os bons e virtuosos juízes sempre assim façam quando eu não tiver razão; ide falar com Antão de Faria e ele vos entregará duzentos cruzados, de que vos faço mercê para ajuda da vossa despesa».
Rui Boto, a quem era reconhecida extrema competência jurídica, será o primeiro responsável pelas reformas da administração promovidas pelo rei D. Manuel, tendo sido nomeado em 1496 para presidir à comissão de reforma dos forais e mais tarde, com Rui da Grã, para a reforma das ordenações do reino.
Rui da Grã, outro eminente jurisconsulto ao serviço do rei, disputou em 1473 com Rui Boto, as cadeiras de Terça e de Véspera das Leis, da Universidade de Lisboa (atribuídas a Rui Boto), vindo a ser nomeado juiz relator no julgamento ocorrido em Évora, que condenou à morte o duque de Bragança. Mas essa é outra história, de que nos dá conta João d’Óbidos, elemento do corpo de ginetes do rei D. João II, narrador de “Príncipe Perfeito – Rei Pelicano, Coruja e Falcão”.
As terras da Rainha confinavam a norte com as terras do Mosteiro de Alcobaça, separadas pelo rio de Salir, também chamado de Tornada e do Formigal, e os monges, apesar da fertilidade das vastas propriedades do Mosteiro, não resistiram à tentação de cobiçar as férteis várzeas de Tornada.
A Rainha tomou conhecimento da usurpação, devido à contenda nos termos de Salir do Mato e Óbidos, entre o Mosteiro e o judeu João Afonso, conhecido por Joanás, que se recusava a pagar quarto e dízimo ao Mosteiro, a quem não reconhecia como senhor das terras que cultivava.
Defendia-se o abade comendatário do Mosteiro, Isidoro de Portalegre, alegando que no reinado de D. Dinis fora alterado o curso do rio.
Foi convocado o juiz desembargador Rui Boto, para o julgamento do pleito, que deu brado na época, face à lustrosa comitiva que acompanhava o julgador, e que percorreu todo o rio, entre os portos fluviais do Formigal e da Tornada.
Na pendência do julgamento, faleceu o abade comendatário, tendo os monges procedido à eleição de um dos seus, de nome João Claro, mas a eleição ficou sem efeito, devido à oposição do cardeal D. Jorge da Costa, que em Roma reivindicou e conseguiu o regresso do Mosteiro à sua posse.
O veredicto da estrema foi favorável à Rainha, traduzindo-se numa peça jurídica de grande profundidade e isenção, e o rio de Salir voltou a ser a inquestionável fronteira entre os coutos de Alcobaça e as terras da Rainha.
Posteriormente, dois dos filhos de D. Manuel, sobrinhos da Rainha, tornar-se-iam abades comendatários do Mosteiro de Alcobaça: o infante D. Afonso (bispo da Guarda com apenas 7 anos de idade; bispo de Viseu com 10 anos; cardeal antes dos 18 anos), e o cardeal D. Henrique. Mas essa é também outra história.

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