Foi em ambiente descontraído e entre amigos que o escultor José Aurélio e o maestro Vitorino de Almeida recordaram memórias ligadas à galeria Ogiva, criada pelo artista alcobacense em 1970
A pandemia fez adiar a festa de celebração dos 50 anos da Galeria Ogiva por um ano e, por isso, no passado domingo, 28 de novembro, fez-se uma festa para recordar este marco da arte contemporânea portuguesa. A sessão contou com a participação do maestro António Victorino de Almeida na partilha de memórias e ao piano, assim como o lançamento do livro de memórias de José Aurélio, o fundador da galeria.
“Comecei a vir a Óbidos com regularidade, enquanto trabalhava na fábrica Secla, nas Caldas da Rainha”, disse o escultor, perante uma plateia de algumas dezenas de pessoas que se uniram nesta celebração. Referia-se aos últimos anos da década de 1960, altura então que adquiriu uma habitação em Óbidos, onde conseguia o sossego para trabalhar. Supostamente, contou o alcobacense, era uma situação provisória, mas tornou-se definitiva, pois ficou a viver na casa que comprou na vila durante 21 anos.
O escultor, que passou a pertencer ao grupo dos Amigos de Óbidos, recorda que foi possível “começar a trazer alguns concertos da Gulbenkian”. Depois da habitação, e com a sua primeira mulher, alugou uma pequena mercearia que passou a dar lugar ao projeto artístico que incluía uma loja de venda de artesanato de qualidade que adquiria no Norte.
O espaço tinha uma ogiva muito bonita, que acabou por dar nome ao projeto que incluía artesanato e artes.
“Convidava artistas para fazerem algumas peças para vender no local”, contou o autor. Foram feitos dois Natais, que tiveram grande sucesso. “Começámos, então, a falar em ter um espaço maior”, partilhou o escultor, acrescentando que foi desta forma que “surgiu a ideia de criar uma Ogiva maior”.
A casa que ainda hoje alberga a galeria custava 150 contos e ele ofereceu 100, valor que ao fim de algum tempo foi aceite pelo proprietário. “Fiquei satisfeito mas, ao mesmo tempo, muito aflito pois na verdade não tinha um tostão!”, revelou José Aurélio, que foi ao Banco Ultramarino, nas Caldas da Rainha, onde tratou do empréstimo bancário.
“Cinco daqui, cinco de acolá e lá fomos fazemos as obras necessárias para recuperar este espaço”, revelou o fundador, que consegue abrir as portas deste projeto cultural a 28 de novembro de 1970. Só que a Ogiva tinha, sobretudo, um papel de divulgação cultural.
“Durante os quatro anos de atividade intensa, creio que se venderam apenas duas pinturas”, contou o artista.
Em janeiro de 1974, com a maioria das galerias nas grandes cidade a contratar os artistas em exclusividade, foi “obrigado a fechar a Ogiva… pois não tinha artistas nem exposições marcadas”, contou o artista, que, integrado na primeira comissão administrativa da Câmara de Óbidos, tentou “dar uma utilidade pública ao espaço da Ogiva”. Mais tarde, o edifício albergou várias associações e a Casa do Povo que adquiriu o edifício. Após 30 anos de indefinição e inatividade, a Galeria reabriu em 2005, como galeria municipal, por ação de Telmo Faria.
“Muito baú para abrir”
Segundo Victorino de Almeida, que atuou na galeria nalgumas das suas iniciativas, “ainda há muito baú por abrir”, afirmou o convidado, que se lembra bem dos eventos de arte contemporânea que ali tiveram lugar e que eram sempre pontuados por “alegria e grandes esperanças”. Para o músico, a Ogiva “sempre se pautou por princípios de modernidade, algo que o maestro também defende.
Na sessão, o presidente da Câmara de Óbidos não escondeu a emoção: “Foi um verdadeiro privilégio conhecer-vos pessoalmente”, assumiu Filipe Daniel, que fez ainda questão de sublinhar a importância do legado que José Aurélio deixou à vila.
O chefe do executivo municipal, que está em início de mandato, fez ainda questão de sublinhar que a cultura “é um elemento chave e ligado à identidade desta localidade”.
No final do evento, José Aurélio dizia à Gazeta das Caldas que lhe era difícil destacar as iniciativas mais importantes da Ogiva.
“Aconteceram aqui coisas tão importantes para a época e para as pessoas que nelas participaram”, afirmou o alcobacense, que lá deixou escapar as muitas atuações musicais que ali aconteceram com o grupo de música contemporânea com Jorge Peixinho as intervenções “significativas” do artista multidisciplinar Zé Ernesto de Sousa. “Era muito empolgante ver esta casa cheia com gente que vinha de toda a parte assistir às nossas inaugurações com artistas que ainda se mantêm na primeira linhas das artes”, resumiu.
José Aurélio continua muito ativo e foi, entretanto, convidado a criar uma sardinha especial para a coleção da Fábrica Bordallo Pinheiro. Está também a trabalhar no livro “Gárgulas” com o historiador caldense João Bonifácio Serra. ■
Cronologia
1970
28 de novembro Inauguração da coletiva “35 artistas”
1971
27 março Exposições de Espiga Pinto e de Alberto Carneiro
15 maio Exposição com obras de Artur Rosa, José Aurélio e Helena Almeida. Mostra de António Areal
Eventos Musicais
27 novembro Coletiva de homenagem a Josefa de Óbidos (primeiro aniversário)
Exposições de António Areal e de Três pintores de Óbidos: Barbosa, Canário e Lyon “Música para Josefa”
1972
5 fevereiro Exposições individuais de SAM, Helena Almeida e de António Areal. Eventos Musicais
29 abril Exposições individuais de Rogério Ribeiro, Jorge Pinheiro e de Ana Vieira
29 julho Exposição individual de Júlio Bragança.
Coletiva 32
16 dezembro Celebração de segundo aniversário com vários artistas. Exposição dos presentes e do bolo de aniversário
1973
2 junho Exposições individuais de Alberto Carneiro e de Herbert Pagani. COLETIVA “Cinco inéditos de 9 artistas”: Alberto Carneiro, António Mendes, António Areal, Eduardo Nery, Espiga Pinto, Helena Almeida, Jorge Pinheiro, José Aurélio e Rogério Ribeiro
24 novembro ”Esculturas” de José Aurélio. Música com António Victorino de Almeida
1974
janeiro Encerramento da galeria
2005
Reabertura da Nova Ogiva – agora galeria municipal – com exposição do seu fundador, o alcobacense José Aurélio, intitulada “Fogo e Areia”