Conversas à Roda da Cerâmica -Filho de Bordalo Pinheiro queria reformular o ensino artístico em Portugal

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notícias das CaldasCom Herculano Elias – Rafael Bordalo Pinheiro deixou sempre o filho na sombra mas para Herculano Elias, Manuel Gustavo teve um percurso na cerâmica idêntico ao do pai, só que contou com menos apoio da elite de então.
Na conversa à Roda da Cerâmica o mestre ceramista conta que este autor, que apostou na simplificação das formas e “despiu” as peças da grande ornamentação, influenciado pelo que tinha conhecido nas viagens pelo estrangeiro, pretendia principalmente reformular o ensino artístico em Portugal.
Nesta rubrica publicamos ainda uma carta pouco conhecida de Manuel Gustavo aos funcionários da fábrica caldense, escrita em 1920, ano da sua morte, apenas quinze ano depois do desaparecimento do pai e com 53 anos de idade.

Filho de Bordalo Pinheiro queria reformular o ensino artístico em Portugal

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Manuel Gustavo Bordalo teve na cerâmica um percurso idêntico ao do seu pai

Manuel Gustavo Bordalo Pinheiro (1867-1920), filho de Rafael  Bordalo Pinheiro acompanha desde miúdo o pai na Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha, fundada em 1884. Revela desde cedo muito jeito para o desenho, que se torna na sua área preferencial mas o facto é que também “tomou gosto ao barro e ficou”, disse Herculano Elias. O problema é que o “acabou sempre por ficar na sombra do pai”.
O filho de Rafael Bordalo era uma figura da sociedade que jogava ténis e que frequentava as tertúlias da elite do país. “Era o que se  designava então um dandy”, disse Herculano Elias acrescentando que, contudo, nas Caldas, Manuel Gustavo se refugiava no trabalho na fábrica primeiro do pai e depois na que ele vai construir e designar-se S. Rafael.
“Ele era um homem equilibrado e, segundo o meu avô, mais calmo que o pai”, disse Herculano Elias. Na opinião deste ceramista Manuel Gustavo “fez um percurso idêntico ao de Rafael Bordalo Pinheiro”. No entanto, o pai teve o apoio dos intelectuais da época enquanto que Manuel Gustavo “não teve tanto apoio, esteve sempre mais afastado”. Além deste, outros familiares passam pela sua fábrica como, por exemplo o seu tio, Columbano Bordalo Pinheiro, “que fez na fábrica vários retratos e desenhos e dois ensaios de duas cabeças de velho”, contou Herculano Elias.
Segundo Herculano Elias, Manuel Gustavo passou a dedicar-se mais à cerâmica a partir de 1906 (depois da morte do pai em 1905) e não foi “um mero gestor de uma herança prestigiada”. Na verdade, mestre Herculano considera-o também “um ceramista inovador pois aposta na simplificação das formas e da decoração, marcas do gosto internacional da Arte Nova” que surgia no estrangeiro. Segundo o mestre ceramista, as qualidades de administrador de Manuel Gustavo elevaram a nova empresa “a uma prosperidade nunca atingida anteriormente”.

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Trabalhos de Rafael preferidos aos de Manuel Gustavo

A criação de novas linhas de Arte Nova e Arte Deco foram “notáveis” só que são os antigos modelos do pai que continuam a ser mais procurados pelos clientes.
A simplificação do desenho e a estilização equilibrada das decorações que Manuel Gustavo cultivava “nem sempre terão  sido compreendidas pelo gosto dominante da época convencional e arreigado a modelos tradicionais, o que poderá explicar o facto de algumas propostas, mesmo as aplaudidas pela crítica, não terem tido continuidade”, disse.
Em vez de “encharcar” as peças com decoração, aposta mais nas formas mais simples, libertando-as da ornamentação. “Havia peças que demoravam dois a três dias a ornamentar, algo que encarecia muito as obras”, contou Herculano Elias, acrescentando que, por isso, apenas uma pequena elite podia comprar peças de Bordalo Pinheiro. “Hoje as suas peças são valorizadas mas na sua época não obtiveram êxito”, contou o ceramista.
Com as suas viagens ao exterior, sobretudo a França, Manuel Gustavo inspira-se na Arte Nova e conhece os movimentos de reforma  das artes decorativas e do design Industrial a partir da articulação da indústria com o ensino das artes e ofícios.
Manuel Gustavo assimilou estes princípios e as suas cerâmicas revelam a forma como se deve incorporar o design, enfrentando uma das questões mais suscitadas pela cerâmica do século XIX na Europa: “a funcionalidade da forma e a adaptação ao material. Não podia ser só decorativa, a peça tinha que possuir funcionalidade”, disse Herculano Elias.
Destas viagens, mas sobretudo do contacto com o meio parisiense, Manuel Gustavo chega a Portugal e passa a defender uma escola livre sem ter que estar sujeira à situação académica.”Queria uma reforma no ensino artístico em Portugal, em especial, na cerâmica defendendo pois a aprendizagem em pequenos ateliers”.
Segundo o mestre, Manuel Gustavo valoriza a olaria. O filho de Bordalo, inspirado na técnica oriental, utiliza também com mestria nas suas peças a decoração com vidrados escorridos. “Ele soube tirar partido desta técnica usando-a em peças de formas simples adicionando-lhes belíssimos escorridos em combinações de cores ricas e variadas dos vidrados”.
Contudo, em 1908 a Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha fundada pelo pai e não resistindo à crise económica, é arrematada em hasta pública por Manuel Augusto Godinho Leal e a direcção artística é assumida por Costa Motta Sobrinho.
Só que Manuel Gustavo começa a construir uma nova fábrica – nos terrenos que pertenciam à sua irmã, Maria Helena –  e além do recheio da fábrica inicial traz algo de mais precioso: a sua equipa de trabalho.
Antes de ter a sua nova unidade industrial pronta ainda aceitou o convite de José Pinto (Visconde de Sacavém) para utilizar as instalações do Atelier Cerâmico – situado onde hoje se alberga o museu de Cerâmica. Manuel Gustavo aproveitando os padrões de azulejo relevado da autoria do pai, completou em 1906 a decoração da da Quinta do Visconde, criando  floreiras assentes nas bases das mós dos moinhos, oriundas da antiga Fábrica de Faianças. Ainda hoje se podem apreciar estas peças decorativas no jardim do espaço museológico.
Os colaboradores de Bordalo mantém-se ligados ao seu filho
Manuel Gustavo que tinha entre a equipa de trabalhadores, quatro elementos da família Elias. “Ele procurava dar-lhes conhecimentos de desenho de modo a poderem aperfeiçoar as suas competências  ao nível da ornamentação”, disse Herculano Elias explicando que Manuel Gustavo dava algum espaço à criatividade dos seus colaboradores.
Na modelação, o filho de Bordalo contava com Francisco Elias a quem “dava os desenhos e ele, meu tio, passava-os a três dimensões”. Foi também este ceramista o responsável pela modelação de várias estatuetas, assinadas por Manuel Gustavo como, por exemplo, a que retrata S. Francisco e o Lobo e a de Mofina Mendes.
Entre os seus colaboradores destacou-se também José Carlos dos Santos que estudava a fundo os vidrados. “Se não fosse este colaborador nem Bordalo Pinheiro nem o filho teriam a exuberância que os seus vidrados e os esmaltes atingiram”, afirmou Herculano Elias.
Só que à boa maneira portuguesa, este homem “escondia tudo o que fazia e não dava a conhecer a ninguém as misturas que realizava”. Só mais tarde é que passou alguns conhecimentos a Armelim Simões que obteve a mesma prática do seu mestre.
“O ambiente da fábrica era familiar”, conta Herculano Elias, que trabalhou na fábrica quando tinha 11 anos e recorda que existia uma relação de respeito entre os trabalhadores mais velhos e os mais novos e os primeiros passavam os conhecimentos aos segundos.
A produção da fábrica e a forma artesanal de trabalho mantém-se ao longo dos anos e não se moderniza. Durante os anos da primeira guerra surgem várias dificuldades. Manuel Gustavo a partir de 1919 é vitima de doença prolongada que o leva a afastar-se progressivamente dos destinos da empresa. No ano anterior já tinha perdido um dos seus colaboradores mais importantes. “O meu tio Francisco Elias saiu em 1918 para se dedicar em exclusivo às miniaturas”, disse.
Manuel Gustavo morre em Setembro de 1920 e é Fernando Bordalo Pinheiro, seu primo que o substitui na fábrica S. Rafael que mais tarde volta a ter o nome Bordalo Pinheiro, como aliás ainda hoje se mantém.

Carta de Manuel Gustavo dirigida a José Carlos Santos

Lisboa, 24 de Abril de 1920

Meu Caro José Carlos

Sendo tu o empregado mais antigo e o mais categorisado da “Fábrica Bordallo Pinheiro” é a ti que me dirijo, pedindo-te o favor de leres, em voz alta e fazeres compreender a todo o pessoal, esta minha comunicação que, decerto, a todos interessa.
Srs. Operários da Fábrica Bordalo Pinheiro organizou-se em Lisboa uma sociedade por quotas da qual eu sou o Director artístico e principal accionista e cujas escrituras se assignarão na próxima semana, ficando a sociedade definitivamente constituída no principio do próximo mês de Maio.
No empenho de lhes ser agradável, satisfaz então o vosso pedido logo propus e obtive dos meus sócios a concessão d’um novo aumento sobre os salários actuaes.
Foi portanto satisfeita, com grande prazer meu e certamente de todos, a vossa pretensão que ser de, mais 20% sobre as jornas até 1200 reis  e de 15% sobre as da 1200 reis para cima. (Pedido dirigido a meu primo Fernando Bordallo Pinheiro, em 3 d’Abril).
Mas, na ideia de vos animar ao trabalho, nós vamos mais alem das vossas pretensões porque resolvemos argumentar, a todos, mais de 20%, o que os outros srs. Patrões não fizeram…
Alem d’isso, que já me parece importante, também consegui que me fosse permitido arredondar, para mais, esses argumentos, da forma que consta da tabela seguinte:
Acelino Carvalho —— 1.950 por dia
F. Victorino — 1.950 por dia
J. Elias — 1.650 por dia
Heitor— 1.500 por dia
Rui— 1.500 por dia
António Elias —1.500 por dia
Damas— 900 por dia
Augusto— 900 por dia
Mário Libanio — 1.950 por dia
Feliz—1.950 por dia
Vinagre—1.950 por dia
João Elias —1.600 por dia
Rafael —1.150 por dia
Chaves—1.500 por dia
Cabaço —1.600 por dia
Marques —800 por dia
*Armando —200 por dia
Menécha 6.650 por semana (6$65)
Os outros aprendizes, preciso de saber a opinião do Acelino. Elle como mestre d’officina da Escola de Cerâmica Raphael Bordallo Pinheiro é que, segundo um justo critério, me deve informar do merecimento artístico d’elles, da sua produção, da sua aplicação ao trabalho e até do seu comportamento dentro da fábrica porque eu pretendo que as nossas oficinas sejam um modelo d’ordem e de disciplina. Isto é para todos.

Depois d’isto estou certo de que, a partir da primeira semana de Maio todos ficarão satisfeitos, esperando eu da nossa velha camaradagem e do seu carácter d’homens sérios que todos saberão corresponder aos nossos esforços e ao encargo importante que acabamos de tomar, entregando-se a um trabalho consciencioso e honesto que fica justamente recompensado e não voltando com mais exigências que, à força da repetição se tornarão, por fim, intoleráveis e mesmo impossíveis de satisfazer.

Sem mais, saúda-os com muita sympathia o seu velho amigo

Gustavo Bordallo Pinheiro

Cronologia

1867 – Manuel Gustavo Bordalo Pinheiro – nasce a 20 de Junho na Travessa das Parreiras, Sta. Marta, em Lisboa. É filho de Elvira Ferreira de Almeida e de Rafael Bordalo Pinheiro
1888- Participou na Exposição Industrial de Lisboa como aluno da Escola de Desenho Industrial Rainha D. Leonor, fundada nas Caldas em 1884.
1896 – Lecciona desenho na Escola Rodrigues Sampaio. Ensina desenho livre, ainda não se dedica à cerâmica.
1905 – Assume os destinos da Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha coma morte do pai.
1906 – Ceramista mais activo a partir desta data. Realiza a 1ª exposição dos seus modelos no seu atelier, situado na Rua António Maria Cardoso, em Lisboa
1907 – Faz a segunda exposição dos seus modelos no seu atelier.
1908 – A Fábrica das Caldas da Rainha é arrematada em hasta pública sendo adquirida por Manuel Augusto Godinho Leal e a direcção artística é assumida por Costa Motta Sobrinho.
A 5 de Novembro de 1908 – É inaugurada nas Caldas a nova fábrica de Manuel Gustavo, denominada S. Rafael (onde existem as actuais instalações) e depois Fábrica Bordalo Pinheiro Lda. Faz uma exposição no Rio de Janeiro (Brasil) e recebe uma medalha de ouro.
1909 – Realiza a terceira exposição com novos modelos e esta é apresentada no Porto, em Coimbra e em Lisboa. Inclui, entre outras, as primeiras peças com embutidos em barro.
1911 – Apresenta uma exposição em Maio no âmbito do Congresso de Turismo de Lisboa.
1914 – A 2 de Abril faz uma exposição na Sociedade de Belas Artes no Porto e é transferido como professor para a Escola de Cerâmica de Lisboa que ficava anexa à Escola Industrial Fonseca Benevides.
1915 – Realiza duas grandes exposições em Guimarães e em Viana do Castelo que foram largamente noticiadas em revistas e jornais nacionais.
1918 – Manuel Gustavo viaja até França onde contacta com os principiais centros cerâmicos e quando chega propõe uma reforma do ensino industrial de cerâmica em Portugal, mas sem sucesso.
1920 – Manuel Gustavo morre a 8 de Setembro, com 53 anos.


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