Testemunho do Japão duas semanas depois do grande terramoto

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Sónia Ito, a luso-japonesa que habita naquele pais e que há duas semanas partilhou connosco a sua dramática experiência de ter vivo o terramoto mais violento que o Japão sofreu, volta a escrever-nos para testemunhar para todos nós, a dura experiência que continua a viver. Isto mesmo num dos países mais desenvolvidos do mundo e onde atingiram nos últimos anos uma qualidade de vida surpreendente.
E de um momento para o outro, na sequência de várias ocorrências trágicas, como ela explica iniciadas com um sismo de nível 9,1, seguido de tsunamis, que provocaram um acidente numa central nuclear, que ainda no momento em que escrevemos não está dominado, estão a viver os momentos de incerteza que nunca esperaram.
A narrativa de Sónia Ito parece-nos, a nós que habitamos do outro lado do globo, quase irreal. Mas são as suas palavras que nos ajudam a pensar numa ocorrência que, de uma forma ou outra, poder-nos-ia ter calhado, dado que também a algumas centenas de quilómetros também temos a vizinhança de algumas centrais nucleares.
Não queremos dramatizar e amedrontar os leitores, apenas queremos mostrar este testemunho de uma experiência que, para alem dos momentos da Guerra, podem também acontecer no mundo moderno e desenvolvido do séc. XXI.
Meditemos um pouco…

Dia 25 de Março de 2011… duas semanas depois

Hoje, duas semanas depois do grande Grande Terramoto – Higashi Nihon (leste do Japão) Dai Shinsai (Grande Terramoto) -, no Japão as crianças acabam o ano lectivo. A minha filha terminou a segunda classe e começará a terceira classe no dia 5 de Abril.
E como estão as coisas? Não sei por onde começar.

Os abastecimentos não funcionam ainda normalmente

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Aqui em Zushi, a 300 km. a sul da tragédia, os supermercados continuam com pouca comida e muita gente. As casa são pequenas. Pouco é o espaço para armazenar comida, a ida ao mercado é quase uma tarefa diária. Eu também vou quando posso e compro o que há.
Por uns dias a venda de leite e vegetais (espinafres, fruta, etc) foi restringida devido ao nível de contaminação radioactiva encontrada em alguns destes produtos, supostamente  contaminados devido ao grande acidente nuclear – consequência do terramoto.
Há racionamento de tudo inclusive papel higiénico etc.
Ninguém sabe o que fazer. Por isso todos se abastecem o mais possível, para uma eventualidade. Para se tentar sentir um pouco mais seguro.
Todo o país está alerta e com acesso a páginas da net onde nos são dados os números de radioactividade no ar, medida em sivelts (uma coisa é certa a população está agora bastante sabida sobre energia nuclear – novos e velhos, crianças e adultos todos comentam sobre a radioactividade do dia – o número de siveltes por hora).
Na TV em todos os canais temos informações e cada especialista dá a sua opinião, mas quantos sabem eles a verdade sobretudo tudo isto?

Em cada dia que passa surge um novo problema…

Centenas de operários, bombeiros etc, continuam na central nuclear tentando arrefecê-las com água do mar, mas cada dia surge um novo problema. E o pais continua num pânico silencioso.
Sai fumo desconhecido dum lado, operários põem “o pé na poça” – literariamente falando – e têm de recorrer de emergência ao hospital, pois a poça esta 10 mil vezes mais contaminada com radioactividade.
Neste momento, a maior parte do pessoal que está a trabalhar nesta central não são os funcionários da central nuclear, mas de outras companhias adjuntas locais, bombeiros e as forças de segurança japonesas (Jieitai), um conceito diferente do que é um exército “normal”.
Mesmo aqui a 300 km quando chove ninguém quer sair a rua. Os números siveltes sobem.
Tremores de grau 5 e 6 nessa zona e de 3 ou 4 aqui ainda se sentem diariamente.
Mas agora é só pôr a almofada na cabeça e correr para debaixo da umbreira da porta. Já ninguém diz nada de tão habituado que se está com esta situação de pé mal assente no chão.

A maior preocupação de todos é o que não se vê

A maior preocupação de todos é, na realidade, o que não se vê e nem se cheira: a radioactividade.
Ah, a electricidade está racionada – todos os dias avisam pela rádio e por altifalantes da cidade a que horas e que zona ficará sem electricidade por 3 horas.
À noite é mais difícil, pois ainda faz frio e as temperaturas máximas continuam nos 10 – 12 graus C.
Mas comparado com o sofrimento das pessoas no norte, ninguém tem coragem de se queixar. Não querendo ser sarcástica mas já o sendo – é talvez também uma estratégia de fazer ver ao povo para que dê graças a Deus pela electricidade que nos facilita a vida (claro que aqui neste pais é toda derivada da energia atómica nuclear…). Eles só dizem: “nós não precisamos de electricidade, queremos de volta as nossas famílias. Queremos viver na paz.
Estaremos nós mais felizes, seguros e saudáveis no escuro que á luz da lâmpada que á partida parece tão inofensiva?”

Sem saber como recomeçar

Os sobreviventes estão ainda sem saber como recomeçar as suas vidas. Ainda sem forças de digerir tudo o que perderam. Os mais fortes pedem que o país os suporte na reconstrução de suas vidas. Necessitam de fundos.
No local mais afectado pelo terramoto e monstruosos tsunamis continua a nevar. Além dos 20 mil mortos e desaparecidos há mais de 36 mil sem habitação e só há material para construir 400 casas provisórias no recreio de uma escola local (cada casa dará alojamento a 2 ou 3 pessoas – deixando os idosos que vivem sozinhos na mesma.
Alguns já se juntaram a desconhecidos e na mesma situação para se habilitarem a um tecto e algum descanso e privacidade.
Muitos dos idosos morrem do frio, de cansaço e tristeza de terem perdido tudo. Os que ainda têm casa recusam-se a sair dela mesmo sem terem mantimentos.
Mesmo nas zonas num raio até 30 km  da central nuclear – que têm de ser evacuadas – os idosos recusam-se a sair de suas casas.

Solidariedade por todo o país

Por todo o pais já se criou o movimento de recolher famílias. Mas, como é de entender, os locais não querem sair da sua terra  e continuam em estado de choque.
Todo o país manda mantimentos para eles.
Agua, fraldas para crianças e adultos, klinex, papel higiénico, cobertores etc. Nada pode vir em segunda mão. Roupa já chega.
Como a zona mais afectada é de cerca de 500km todos os voluntários têm de vir com tudo: roupa, água, comida e todos os próprios mantimentos, etc. – pois não há para eles nem para os locais.
Por isso não é qualquer um que se aventura a partir ajudar. Bicicleta é a única forma de transporte. Os mantimentos mandados por todo o país e estrangeiro chegam do modo mais rápido e eficiente – chegam de navio.
As escolas foram destruídas, famílias por todo o pais irão receber as crianças para que possam continuar as suas vidas escolares.

Crianças voluntárias para ajudar os outros

De momento muitas das crianças locais tornaram-se voluntárias ajudando na alimentação e na convivência com os idosos. Compartilhando alguma alegria e sorrisos. Tentando fazer o melhor da dolorosa situação.
Também os animais de companhia têm sido recolhidos. Conhecidos nossos foram de carro até onde puderam para recolher gatos, cães, etc. Estes são distribuídos pelos voluntários por todo o Japão para estarem em segurança até seus donos voltarem a ter possibilidades de os rever.
O dia a dia continua, pouco a pouco o pesadelo tornar –se o normal. Os tópicos das conversas não mudam. Todo o momento é para dar graças a Deus. Cada momento é vivido com mais intensidade.
Devido às faltas de luz nos locais públicos, teatro, cinema etc., as sessões têm sido canceladas ou adiadas até à chegada de dias mais prósperos.
Uma coisa é certa: amigos de todo o mundo têm-nos contactado, mesmo as pessoas com quem já não falávamos há mais de 10 anos. Todo este amor nos tem dado muita coragem e forças para ajudar o próximo.

“Quando saem daí? ”

“Quando saem daí? ” perguntam-nos alguns.
Mas nós queremos ficar, aqui é a nossa casa, a nossa vida. Só nos ultimo dos casos tentaríamos reconstruir uma vida num outro local seguro… Onde o viver o dia e dia possa ser vivido em segurança e amor. Onde será?
Por enquanto dormimos com os sapatos e o casaco a cabeça, com o rádio a manivela e a mochila com mantimentos. As máscaras para proteger a respiração também lá estão – mesmo que não sirvam de grande coisa.
Entretanto pelo mundo muitas mais desgraças continuam a acontecer.
Será que os humanos nunca aprenderam a deixar os interesses egocêntricos para trás e criar e viver na paz?
Peace, love and light

Sónia Ito

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