Rafael está a ultimar a obra hoje conhecida como «O Jarrão do Gato Assanhado» quando, para seu grande espanto, ouve o gato miar-lhe:
– Oh! Rafael lembras-te que dia é hoje?
Bordalo Pinheiro ainda sem acreditar no que lhe está a acontecer – compreende as miadelas do gato! – olha em volta, não vê ninguém, refaz-se rapidamente do susto, e muito baixinho, quase num sussurro, repete:
– … Que dia é hoje?!…
O gato ergue a cabeça, olha directamente para os olhos de Rafael e mia-lhe:
– Andas muito esquecido Mestre! Não se passaram assim tantos anos para que não te lembres de nada!
– Oh! Gato, tem lá juizinho… Não basta estares para aí a miar comigo – nem sei bem o que estou para aqui a dizer…- como ainda por cima tens o descaramento de estar a ralhar-me? Desembucha, Gato, mia lá tudo o que tens a miar!..
O bichano, depois de duas lambidelas na pata esquerda, replica num tom mais ou menos assanhado, com os bigodes a tremelicarem:
– Ouve-me com atenção. Estamos no Verão, no mês das cerejas e dos damascos, dos dias longos e solarengos que eu aproveito para me esticar ao sol. E sabes onde? Na varanda do teu chalet onde tens por hábito juntares-te ao teu irmão Feliciano, a conversar sobre questões da fábrica. Isto tudo, o que te faz lembrar?…
– Um de nós deve estar doido: ou tu por miares comigo, ou eu por compreender o teu miado e estar para aqui a dar-te conversa… Ora deixa lá ver… estamos em Junho … Ah! já sei: o Zé Povinho faz anos!
O Gato salta do alto da jarra para o chão, roça-se nas pernas de Rafael, dá duas ou três ronronadelas, estica o dorso em s, e regressa ao cimo da jarra. Espreguiça-se, abana o rabo e mia:
– Rafael, Rafael, deixa lá o Zé Povinho que a estas horas ainda deve andar lá por Lisboa, na ressaca das Festas do seu Santo padroeiro! Vê lá se te lembras de outra coisa importante que também sucedeu no mês de Junho. Vou dar-te mais duas dicas: passa-se em Lisboa, o teu irmão Feliciano esteve metido na coisa e até o nosso amigo Ramalho Ortigão se considera em grande parte responsável pela tua vinda para as Caldas em consequência desse acto.
– Eureka! Já sei a que te queres referir!
– Foi difícil, Rafael, foi difícil …
-Que queres que te diga? Já foi há tanto tempo, tanta bicharada me passou pelas mãos desde então, como hei-de eu lembrar-me do aparecimento d’«O António Maria »?
– Não! Rafael! Não! Não estamos a falar dessas revistas que passas a vida a rabiscar! Deixa-me lembrar-te o que sucedeu no último dia de um mês de Junho já passado. Recordas-te de teres ido ao escritório do Barreiras Cardoso, na Rua Áurea, em Lisboa? Não te vem à memória o facto de também lá terem estado, entre outros, o Cunha Porto, o Costa Guimarães, o teu editor Roque Gameiro e o teu irmão Feliciano? Lembras-te agora?
– Sim, já me lembro … – murmura Rafael baixinho ao mesmo tempo que um leve sorriso se lhe desenha no rosto, num misto de alegria e melancolia…
– Querido Rafael – mia o Gato com ternura – foi um grande dia: a seguir fizeste a tua fábrica, vieste parar às Caldas e desde então, por cá tens estado.É graças a ti que eu existo. Eu e um sem número de peças de cerâmica fruto da tua poderosa imaginação, com cores e formas arrojadas que farão o deleite de muito boa gente por longos e bons anos. Quase que aposto que ainda um dia alguém se há-de lembrar disso e talvez eu apareça contigo numa qualquer crónica de jornal …
Comovido com os elogios do Gato, Rafael disfarça a emoção, passa os dedos pelos cabelos rebeldes, pega no teque até então poisado na beira da bancada de trabalho e com ele alisa o dorso arqueado do Gato Assanhado, como se de festas se tratasse…
Isabel Castanheira
PS: Diálogo fantasiado entre o Gato Assanhado e Rafael Bordalo Pinheiro, por ocasião do aniversário da escritura da fábrica, sociedade anónima de responsabilidade limitada, lavrada a 30 de Junho de 1884. Ilustram esta crónica um desenho da autoria de Carlos Moreira em que Rafael Bordalo Pinheiro modela a Jarra Gato Assanhado, e uma caricatura da autoria de Constantinos.