Manoel Barbosa diz que os Encontros realizados nas Caldas estão documentados, são estudados e divulgados, fizeram História!

A entrevista que se segue é o resultado de várias conversas que tive com o artista Manoel Barbosa. Encontrámo-nos várias vezes e o Manoel falava-me encantado dos IV Encontros Internacionais de Arte que tinham acontecido nas Caldas da Rainha em 1977. A primeira vez que ouvi falar sobre estes Encontros não quis acreditar. Nas Caldas da Rainha, um festival de performance arte? Nos anos 70?
Manoel Barbosa é artista plástico, performer e programador. É um dos pioneiros da performance arte em Portugal. Hoje é também um dos responsáveis pela partilha desta história, desconhecida por muitos. Tive o prazer de me cruzar com ele e de receber em primeira mão um testemunho do que se passou, entre 2 a 12 de Agosto, nas Caldas da Rainha em 1977.
Este ano faz 42 anos que recebemos os IV Encontros Internacionais de Arte nas Caldas. Nestes encontros participaram artistas portugueses e internacionais tais como Nadir Afonso, Sérgio Pombo, Albuquerque Mendes, Grupo Puzzle, Grupo Acre, Orlan, Robert Filliou (pioneiro do movimento fluxos), Chantal Guyot, entre muitos outros.
Em maio de 2018, a ESAD recebeu exposição “IV Encontros Internacionais de Arte: Rememorar o Verão de 1977 nas Caldas da Rainha”. E recentemente os investigadores Paula Pinto e David-Alexandre Guéniot publicaram o livro Caldas-77 nas Editions Ghost, um livro fundamental que reúne muita documentação sobre o que se passou (à venda na Gazeta das Caldas).
Foi histórico. Foi, de facto, aquilo a que podemos chamar um mini-Woodstock da arte contemporânea.

Por: Isabel Costa*

Celebram-se 42 anos dos IV Encontros Internacionais de Arte nas Caldas da Rainha. Qual a memória mais forte que guarda desses Encontros?
Liberdade e criatividade sem limites.  Interesse do público pelo que via, ouvia, e expectativas pelo que iria acontecer.
A inicial adesão dos caldenses, e não só, foi passiva, contemplativa, mas a partir do terceiro ou quarto dia o público participou, interessou-se pela programação diária. Quantidade considerável desse público passou a conviver diariamente connosco E alguns acompanhavam-nos nas noitadas.

Antes dos Encontros nas Caldas da Rainha, a mesma iniciativa (da Galeria Alvarez-Dois, do Porto, de Jaime Isidoro e do diretor artístico Egídio Álvaro), tinha acontecido noutras cidades – Valadares, em 1974, Viana do Castelo, em 1975, e Póvoa do Varzim, em 1976. Participou nesses Encontros anteriores?
Em 1974 eu estava na guerra, em Angola. Regressei a Portugal em 1975, fui a Viana do Castelo só durante três dias, unicamente para ver e reencontrar amigos. Tenho na memória óptimos trabalhos apresentados nesses Encontros.
Nesse ano estava bastante perturbado com ressonâncias da guerra na mata e, após o 25 de Abril, com a guerrilha urbana em Luanda. E criativamente desorientado, a recompor-me, a reestruturar-me… Só fiz uma performance, em Barcelona.
Estive três ou quatro dias nos Encontros da Póvoa do Varzim também para assistir, a muito boas e históricas performances.
O Egídio insistiu para que eu fizesse algo, passaram os dias, e nada apresentei. Recordo-me bem do muito e interessado público em Viana e na Póvoa.
Todos os Encontros foram extraordinários, marcantes na História da Arte em Portugal, com repercussões no estrangeiro – basta ver as biografias, fotobiografias dos participantes, e as reportagens e críticas em revistas, jornais. Em Junho deste ano foi editado o muito especial livro “Caldas 77”, do David-Alexandre Gueniot, Paula Pinto, e da Veronica Metello, que recomendo.

Lembra-se como lhe foi dirigido o convite para as Caldas?
Por carta do Jaime Isidoro e por um postal do Egídio Álvaro.

Chegaram às Caldas artistas portugueses vindos de outras cidades e artistas internacionais.  Onde ficaram hospedados?
Creio que nas instalações de uma escola agrícola. Poucos, noutros locais. Todos E Pluribus Unum, não havia esquisitices nem vedetismos, alguns artistas já reconhecidos internacionalmente (o Filliou, o Miller, a Shirley, a Orlan, o Serge III, entre outros), sentiam-se iguais a novatos, como eu. Inesquecível companheirismo e preciosa aprendizagem, permanentes.
A quantidade e qualidade dos artistas nas Caldas (e nos Encontros anteriores) é impressionante! Não por acaso artistas, críticos, jornalistas, público, de Lisboa, iam diariamente as Caldas. A televisão emitiu várias reportagens e creio que todos os jornais e revistas editaram muitas notícias e críticas posteriores. A presença de alguns artistas estrangeiros chegou a provocar urticária no centralismo lisboeta.

Comia-se bem e bebia-se melhor

Onde faziam as refeições?
O quartel-general era num restaurante no Parque. Ocasionalmente, e por opção de poucos artistas, noutros locais. Dentro, e sobretudo na esplanada, delimitada com cordas, fazíamos (dezenas de artistas…) as refeições sempre festivamente sob olhares dos passeantes. Os empregados eram formidáveis para nos aturar. Comia-se bem e bebia-se melhor. No quarto ou quinto dia dos Encontros fui a Rio Maior (onde nasci, e a vinte quilómetros das Caldas) pedir a meu pai uma garrafa de aguardente para presentear aos artistas. Deu-me duas, reserva de 1936, um sucesso absoluto durante uns três dias e que estimulou, lembro-me bem, dois artistas a recriarem trabalhos. Aconteceram nesse restaurante-esplanada, durante e após alguns manjares, inesquecíveis happenings espontâneos.

Imagino a complicação que era para muitos dos artistas estrangeiros, chegarem a Lisboa e depois virem até às Caldas, cidade que provavelmente nunca tinham ouvido falar…
Nesse ano, de facto, as vias de acesso às Caldas eram muito diferentes e de qualidade inferior às actuais. Demorava-se muito tempo. A maioria dos artistas estrangeiros deslocaram-se para Portugal em automóveis, carrinhas e, pelo menos dois, em autocaravanas. Soube que só cinco ou seis por via aérea, mas depois… esperava-os o martírio das estradas até às Caldas. Os portugueses idem, só poucos em transporte público. Mas, chegados às Caldas, o espírito dos Encontros é que importava.

Dentro da cidade, quais os locais que ocuparam para as manifestações artísticas?
Principalmente o Museu Malhoa, o Parque, o lago, a Casa da Cultura e a Praça da Fruta. Na Casa da Cultura assistimos a obras notáveis, da Chantal Guyot, do Operation Ceros, do Jac Berrocal, do Richard Marachin, da Compagnie Michel Hallet & Pierre Deloche…
Mas também ocorreram trabalhos fora das Caldas, por exemplo, do Fernando De Filippi à beira-mar na Foz do Arelho (e na cidade), e do Christian Tobas em Peniche, com um trabalho de land art, transportou e instalou nas Caldas um pedaço de rocha.

“A minha relação pessoal com o museu malhoa é inesquecível”

Lembro-me que numa das nossas conversas falou-me de uma relação especial com o Museu Malhoa, que servia um pouco como ‘casa que vos acolhia’. Que performances aconteceram no seu interior?
Se se refere à minha relação pessoal com o Museu Malhoa é inesquecível, porque eu com 12, 13 anos, comecei a viajar incontáveis vezes no autocarro (à guarda do motorista) de Rio Maior para as Caldas para estar encantado, dias quase inteiros, no ‘meu’ primeiro Museu visitado. Via, revia, voltava às salas, anotava, lia, desenhava, uma funcionária conhecia-me já muito bem. Lembro-me perfeitamente das pinturas, das salas. Saía à hora de almoço para comer uma sandes, voltava e regressava ao fim dos dias a Rio Maior ou ficava nas Caldas em casa de familiares.
Voltando aos Encontros: no Museu estavam algumas óptimas exposições de pintura, fotografia e instalações de portugueses e de estrangeiros (casos de Gretta Saffarty, Eugenia Balcells, Fatima Vaz, Fernando Pinheiro, Gillian Ayres, Monique Frydman, Nadir Afonso, Nicole Gravier, Roualdes), e nalgumas noites ocorreram no salão grande, conferências e sobretudo debates (e manifestos) sobre vários temas. Debates moderados pelo Egídio, participados pelo público (sempre muito!), pelos artistas, não só os dos Encontros, mas também por outros idos de Lisboa.
Houve momentos de anarquia, prolongavam-se para além da hora estabelecida pela desesperada direção do Museu, fumava-se, bebia-se, amava-se, mas obviamente sempre respeitando as esculturas e as pinturas do Malhoa e de outros – nitidamente os espíritos dos artistas antigos estavam presentes, ali connosco, gostavam. Quanto às performances, recordo-me bem da Orlan, Nil Yalter, Da Rocha, Grupo Puzzle, Collectif Femmes/Art Rupture, de um happening do Nadir Afonso, Eugenia Balcells, ou Roualdes.
A maioria das apresentações eram performances e happenings programados ou espontâneos? Pode-se dizer que havia uma programação não-oficial, que acontecia ao sabor das relações estabelecidas entre os artistas e o espaço?
Havia uma programação diária (surgida antes da hora de almoço) ao dispor do público na Casa dos Barcos, em folhas A4: nome do artista, título do trabalho, local e hora.
Claro, houve também artistas que, para além das suas obras programadas, fizeram algumas espontâneas, lembro-me por exemplo do Serge III Oldenbourg, o Robert Filliou e a Marianne, o Miguel Yeco, o Giner, o Daniel Grenier, a Shirley Cameron e o Roland Miller, uma minha obra com o R.Miller, entre outros.

Costuma dizer-se que, quando artistas se juntam, abrem muitas portas uns aos outros. Houve parcerias artísticas durante os Encontros, ou mais tarde noutros contextos?
Abrem, e fecham portas… conforme. Houve parcerias, do Serge III, do Yeco, do Daniel Grenier… Pelo que sei, nos anos seguintes algumas relações entre artistas mantiveram-se; no meu caso mantêm-se e tenho-me reencontrado com portugueses e estrangeiros.

Que performances apresentou nos Encontros?
Para além da improvisada pelo Miller e por mim, apresentei ‘Projecto Para Paraíso Possível’ e ‘Itinerário’, com colaborações por minutos na primeira do Ernesto Mello e Castro e, na segunda, do Victor Fortes. O Ernesto foi impecável, tinha a missão de só destapar-me, para minha surpresa (ainda eu estava ocultado), falou ao público e num improviso, dissertou sobre paraísos, futuro, e… um jovem artista, eu.

Os Caldenses assistiram a muitas das performances, aos happenings?
Como eu referi atrás, os caldenses e não só (note-se, vários estratos sociais, culturais e etários), participaram imenso, assistiram, aplaudiram (ou não), dia após dia queriam saber da programação, relacionavam-se connosco, tiravam fotografias. Sobretudo no Parque havia quotidianamente muitas centenas de pessoas. Acabavam de ver uma performance ou happening, deslocavam-se para outro artista, assim sucessivamente. E, como já disse, conviviam connosco, alguns chegaram a beber umas cervejas enquanto nos viam a almoçar ou jantar, íamos noite dentro passeando, bebendo e conversando.

‘Os Encontros das Caldas’ são um marco na história da arte em Portugal

Os Encontros foram também aquilo a que hoje se chama residências artísticas ?
Também, mas pontualmente. O nosso relacionamento, vivências, trabalhos projectados e apresentados ultrapassou qualquer ‘residência artística’… Os objectivos eram outros, mais diversificados.
Havia em todos uma total e notória liberdade social e responsável… comprometida com o trabalho. Só quem assistiu tem noção do que aconteceu… uma espécie de mini Woodstock na arte contemporânea. Éramos as vedetas, mas tocáveis, sem vedetismos dos consagrados. No âmbito da arte em Portugal, creio que nunca mais houve algo semelhante num festival ou encontro, com aquela magnitude (qualidade, quantidade, resultados, etc.) – não por acaso, ‘os Encontros das Caldas’ são um marco na história da arte em Portugal. Note-se e registe-se, os Encontros anteriores e os festivais de Almada também foram excelentes. Ah e claro, também em 1977 aconteceu a histórica Alternativa Zero, mas com outra formatação e objectivos.

A Gazeta das Caldas teve um papel fundamental na divulgação e registo das performances e happenings. Qual era a relação dos artistas com o registo das suas performances?
A Gazeta e o seu director, José Luis Almeida e Silva, foram inexcedíveis, preciosos. Apresentou semanas antes o evento, editou um suplemento especial, entrevistas e reportagens. Lembro-me perfeitamente que o José Luís (reencontrei-o em 2018 na ESAD, precisamente para recordarmos, com o Jaime Silva/Grupo Puzzle, os Encontros) estava entusiasticamente omnipresente nos Encontros. Presumo que a Gazeta terá óptimo espólio fotográfico sobre os Encontros.
Quanto aos registos das performances (trabalho magnífico da fotógrafa e videasta oficial Ursula Zangger), não me consta que estivéssemos preocupados com isso.

“Os portugueses não são revolucionários, mas sim estupidamente mansos ou intratáveis”

Vivia-se um momento pós-revolução, sem regras. Considera que a rua se transformava num laboratório experimental de arte?
Vejamos: a Revolução, ou se quisermos, o golpe de Estado do 25 de Abril, ao contrário do que é comum concluir-se, teve regras, muitas e decisivas (entre as quais evitar mortes), que se repercutiram, conscientemente ou não, nos anos seguintes… até a actualidade. Depois um regime estagnado, teimosamente fechado, sem mundo, proporcionou conquistas tardias e imprescindíveis, mas também exageros, oportunismos, abusos, actos antidemocráticos (da esquerda, do centro, da direita). Sem ela – ou sem ele, o golpe – não teria havido liberdade, progresso.
Os portugueses não são revolucionários, mas sim estupidamente mansos ou intratáveis, perigosos até de mais; vão atrás do que lhes é apresentado, nalguns momentos acertam no ‘farol’ para promissor futuro, noutros piores porque acreditam em modas impraticáveis, e parece que fatidicamente, desinteressam-se deles próprios e da comunidade. Tudo isto tem a ver com o ambiente nas Caldas durante os Encontros e com a última pergunta.
Sem dúvida, após o 25 de Abril surgiram esporadicamente no espaço urbano ‘laboratórios’ para criar e apresentar arte, alguma com inquestionável qualidade – actualmente se exceptuarmos raros casos, há esse boom destruidor de locais, da harmonia e da sensibilidade.

Os artistas internacionais que aqui chegavam, estavam curiosos e a par da nossa recente história política? Algumas das suas obras reflectiam o momento que estava a ser vivido em Portugal?
Sim, muito curiosos, interessados, afectuosos. Falava-se muito da situação de Portugal, da relativamente ainda recente ‘Revolução dos Cravos’, de cultura. Nos debates no Museu, a política estava omnipresente, puxada ou não pelo Egídio. Porque gosto muito de política, lembro-me de falar bastante com o Serge III OLdenbourg e com o Giner, grandes artistas-teóricos e pensadores.
Trabalhos político-artísticos e sociais de artistas estrangeiros visivelmente relacionados com Portugal, não houve. Mas indiretamente sim, do Serge, do Giner, da Orlan, Lea Lublin, Monique Frydman, De Filippi, Filliou… E de artistas portugueses: da Clara Menéres e do Grupo Acre, da Comuna, as minhas performances também tinham a ver com política.

Patetices, javardices e muita ignorância

Estes Encontros tiveram um desfecho inesperado.  O que é que aconteceu?
Conservadorismos políticos, culturais e sociais, patetices, javardices, muita ignorância, incompreensão pela cultura e arte contemporânea. Desrespeitos pelas pessoas. Interesses partidários (da esquerda à direita).
A liberdade, a arte diferente da habitual, foi pretexto para perseguições, ofensas, ataques, agressões corporais, destruições, expulsões. Mais um entendível e simultaneamente abominável basta-assim mundinho local e doutras localidades conseguiu destruir em poucas horas o que até então (repito, com interessada participação de caldenses durante 12 dias e noites) foi uma manifestação artística e cultural memorável e importantíssima.
Já poucos sabem, recordam-se, participaram na destruição. Inversamente, os Encontros estão documentados, são estudados e divulgados, fizeram História!

Em Portugal temos o costume de achar que estamos quase sempre, em todas as áreas, de alguma forma ‘atrasados’. Este sentimento também acontece nas artes. Olhando para estes Encontros, vemos uma experimentação artística semelhante ao que acontecia nos grandes centros culturais da Europa. Sente que há uma falha em manter viva a história da arte em Portugal?
Actualmente em Portugal ainda há – e são muitos! – os que propositadamente se deixam atrasar – problema aparentemente só deles, mas que afectam (e infectam) a evolução do país. Mas salutarmente há os que deixam para trás os indigentes, os incultos, e evoluem, criam, investigam, determinam em todas as actividades – é com estes que de certeza o Futuro se reformulará e progredirá. Também nas artes, na cultura.
Tenho repetido isto desde há anos: os Encontros (sem dúvida ao nível do que nesse período e segundo o conceito festivais ou encontros aconteciam na Europa) foram excelentes, exibiram-se obras extraordinárias, estiveram nas Caldas artistas então já notáveis e outros que mais tarde entraram na história da arte.
A história da arte em Portugal é investigada, escrita, nem sempre correctamente, tantas vezes através de uma pequena, escolhida, entreaberta janela, e sob a luz duma reles lamparina que ilumina deficientemente. E quando a sempre vigente inveja e compadrio tuga entranha o crítico, o historiador, este fecha a janela, apaga a luz e sai pela porta para entregar ao editor a sua gloriosa, fundamental história-e-basta-assim.
Mas atenção, há desde algumas décadas, hoje e certamente no futuro, muita e boa arte criada por portugueses. E poucos bons historiadores e críticos.
Por fim, permito-me dedicar esta entrevista à memória de um meu amigo, muito mais idoso do que eu, que reencontrei após sete anos, nos Encontros. Esteve quase sempre presente nas exposições, performances, debates, amigo e cativante companheiro dos artistas – o ilustre, cultíssimo intelectual caldense Leonel Cardoso.

*Licenciada em Teatro e Mestre em Estudos de Cultura.
Trabalha como actriz e curadora.