É hoje apresentado no CCC, pelas 18h00, o livro “Exílios, testemunhos de exilados e desertores portugueses na Europa (1961-1974)” que contará com a presença de Pacheco Pereira, Isabel Xavier (PH), Rui Mota e Fernando Cardoso (ex-exilados) e a colaboração do Teatro da Rainha.
O livro pretende recuperar memórias de quem recusou ir à Guerra Colonial e partiu para o estrangeiro e, ao mesmo tempo, debater a ideia de que a deserção e a fuga não foram actos de cobardia, mas sim de rebelião e até de coragem. Uma vez refugiados nos países que os acolheram (a França para a maioria), os então jovens dos anos 60 e 70 não sabiam quanto tempo estariam impedidos de regressar ao seu país.
Numa entrevista dada ao Público em 21/04/2015, Fernando Cardoso, presidente da Associação de Exilados Políticos Portugueses, diz que é preciso combater a ideia de “fomos uns tipos com falta de coragem, traidores à pátria”. E é nessa perspectiva que este livro se insere.
Gazeta das Caldas traz dois testemunhos dessa época. O do caldense António Morgado e o do caldense por adopção, Nuno Rito, já falecido, através da viúva, Teresa Perdigão que nos apresentou um texto com base nas memórias deste advogado. Carlos Cipriano
“Eu já tinha tomado a minha decisão de partir. Não ia matar ninguém”, conta António Morgado
Durante a Guerra Colonial estima-se que mais de 110 mil portugueses tenham fugido como desertores. França acolheu a maioria, mas também houve quem fosse para a Suécia, Dinamarca, Holanda e Bélgica. O caldense António Morgado partiu a salto e sem passaporte para Louvaina, uma cidade universitária belga. Tinha 19 anos e ainda não havia sido chamado a cumprir serviço militar, mas sabia que esse dia chegaria. Decidiu antecipar-se porque estava consciente que não queria matar ninguém.
Embora já se tenham passado mais de 40 anos desde o fim da guerra, ainda hoje se cruzam dois olhares opostos sobre a deserção: coragem ou cobardia?
[caption id="attachment_63323" align="aligncenter" width="850"] António Morgado tem hoje 63 anos e diz que ainda existe um preconceito em relação aos desertores | Beatriz Raposo[/caption]
Lisboa, 8 de Fevereiro de 1972. Com 19 anos o caldense António Morgado partiu da Avenida do Brasil, onde vivia, rumo à Bélgica acompanhado de duas raparigas e dois rapazes num Fiat 850 Sport. António só não conhecia o condutor, que hoje desconfia que seria informador da PIDE pela facilidade com que passou no controlo das fronteiras. A restante malta era conhecida do prédio onde morava e foi precisamente o primo de uma das raparigas que os convenceu a partir. “Ele tinha vindo de Moçambique passar o Natal, mas também já não tencionava voltar. Eu estava farto de responder a anúncios de emprego, mas ninguém me dava trabalho porque não tardava muito até ser chamado à tropa”, conta António Morgado. “Resolvi partir, consciente da minha decisão porque não queria matar ninguém”, acrescenta.
O carro não pertencia a nenhum dos cinco jovens e tinha sido emprestado por um médico que já havia fugido para a Suécia e cuja esposa também vivia no mesmo prédio de António. Na altura foi preciso elaborar um documento de autorização do proprietário e a assinatura foi falsificada.
No dia em que partiu António não avisou ninguém, mas a mãe facilmente percebeu quais eram os planos do filho e ligou para um tio que era major e que deu o alerta aos postos fronteiriços. No bolso do caldense iam apenas 13 escudos (que davam para seis bicas) e na mala duas mudas de roupa, um par de sapatos, cuecas e um capote alentejano.
No próprio dia 8 de Fevereiro António Morgado passou a fronteira portuguesa em Vilar Formoso. “Nem eu nem o meu amigo Miki tínhamos passaporte, por isso não podíamos ir no carro. Passámos a fronteira por um caminho antigo que tinha uma passagem de nível que estava fechada há algum tempo. Depois ficamos escondidos em cima de um morro com meia dúzia de metros à espera de ver o nosso carro”, recorda o refugiado político (estatuto que depois lhe foi atribuído na Bélgica).
A viagem continuou até Irún (fronteira da Espanha com a França) onde o carro sofreu uma avaria. O rolamento de uma das rodas gripara e já numa oficina situada mesmo ao lado do Rio Bidasoa (que faz a separação entre o território espanhol e francês), António Morgado foi surpreendido pelas palavras do mecânico. “Como se já soubesse que íamos dar o salto disse-nos que o rio era muito perigoso e que ali já tinham morrido muitos”.
Os jovens portugueses acabariam por conseguir atravessar a fronteira em Vera de Bidasoa, uma pequena aldeia por onde circulavam poucos carros. “Tínhamos que continuar com cuidado porque dentro de alguns quilómetros encontraríamos o controlo de fronteiras francês. Inesperadamente, imediatamente a seguir a uma curva lá estava o agente e eu no carro, sem passaporte!”, conta António Morgado, que acabou por ser surpreendido quando o responsável nem os documentos lhe pediu. “Os franceses eram mais permissivos porque naqueles anos havia muita emigração clandestina e muito ‘portuga’ a trabalhar por lá”, revela.
Provar o sabor da liberdade
No dia 10 de Fevereiro António Morgado chegou finalmente à cidade universitária de Louvaina, Bélgica. O condutor do Fiat deixou os quatro jovens num restaurante e estes rapidamente encontraram um grupo de portugueses. A primeira casa de António Morgado pertencia a um casal que ali estava a almoçar naquela tarde. Mais tarde o caldense acabaria por mudar-se para outra casa partilhada apenas com jovens belgas. “Nunca notei racismo e sempre fui bem recebido. Ainda hoje sou amigo das pessoas com quem morava”, afirma.
Pela primeira vez António era livre. “Podia dizer asneiras na rua sem que ninguém me reprimisse. Agora sim, respirava livremente”, conta, acrescentando que a liberdade também se via nas discotecas, onde os jovens aproveitavam para comprar discos, e na facilidade com que a droga circulava. “Da erva aos ácidos, encontrava-se de tudo, mas eu nunca me meti nisso”, disse.
António Morgado teve três empregos diferentes: primeiro numa fábrica de ecrãs de televisão, depois num restaurante de cozinha francesa (inicialmente a lavar pratos, depois a servir às mesas) e finalmente a limpar escritórios. O salário que recebia chegava perfeitamente para viver despreocupado e gozar a vida. O caldense chegou a inscrever-se no curso de Química Nuclear, mas nunca o concluiu pela dificuldade em conciliá-lo com o trabalho.
“Chamavam-nos cobardolas”
António Morgado recebeu a notícia do 25 de Abril num bar universitário onde se juntavam todos os estudantes estrangeiros. O golpe militar já era esperado pela maioria dos desertores que sabiam que não tardaria muito até regressarem ao seu país. António voltou a Portugal no dia 30 de Junho de 1974 e veio directamente para as Caldas, onde frequentou o Magistério Primário e depois o curso de Design Industrial.
Quando regressou foi bem recebido, mas também se lembra de ouvir conversas desagradáveis entre os militares. “Chamavam-nos de cobardolas porque não tínhamos dado o corpo ao manifesto. Uma coisa é certa: se eu não tivesse ido para a Bélgica hoje não estava vivo de certeza”, conta, assegurando que ainda existe esse estigma da deserção.
António Morgado tem 63 anos e vive em Cortém (Vidais). Foi professor do ensino básico e dedica-se actualmente à marcenaria.
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A inevitabilidade do exílio
(…)
Tinha decidido tudo abandonar (…). Deixaria o curso, antes que a Pide viesse e o levasse.
Saiu de Coimbra, num chuvoso e frio dia de Fevereiro de 1970, sabendo que aquela seria a sua última viagem de estudante, até Ourém.
(…)
Foi junto da mãe e disse-lhe que ia partir. (…)
Ouve, mãe, o teu filho não será nunca um herói do Ultramar, balbuciou, imaginando que a abraçava e acariciava. (…)
(…) Pensou nos amigos com quem jogava bilhar no café e sentiu uma saudade antecipada, tanto mais que não desvendaria a nenhum deles o seu segredo. Ouviu a mãe dar ordens à criada e pensou que, a ela sim, iria dizer que ia partir (…)
Ia para longe, a salto. A salto, Maria. Com um passador, Maria. Em Paris, Maria, vou trabalhar numa fábrica ou nas obras, onde der, Maria. Como o povo, Maria. Eu aprendo, como os outros, a dar serventia a pedreiros, a lavar pratos, a varrer ruas, nas linhas de montagem de uma fábrica, seja onde for. Mas o que tu podes ter a certeza é que eu não serei um assassino, não matarei os nossos irmãos africanos que lutam pela liberdade. E não serei nunca um parasita, percebes?
[caption id="attachment_63328" align="alignleft" width="209"] Nuno Rito, Teresa Perdigão e Nuno Cardoso em S. Gregório (Caldas da Rainha) nos anos noventa[/caption]
Cartas de exílio para que a memória perdure
(…)
A 8 de Dezembro de 2000, de manhãzinha, encontrei as cartas e os escritos pessoais que ele me havia deixado, juntamente com os dossiers históricos, como ele lhes chamava.
Estavam bem alinhados, mas um deles destacava-se por ter folhas não arquivadas, meio soltas. Demasiado atabalhoado para a sua maneira de ser e de arrumar. Não teve tempo para mais, pensei.
Destacava-se uma nota datada de 6 de Novembro desse ano, dia do último aniversário, que celebrámos juntos, em Ourém. Dia de muitas recomendações para um futuro que, para mim, poderia ser longo, mas que a ele o atraiçoaria dias depois. Se acontece aos outros, por que me não há-de acontecer, a mim?!! Parece-me que foi assim que começou a conversa desse dia, quase festivo, não fosse a sombra da morte, conversa que diariamente reiniciávamos desde Abril, desde que havíamos recebido a sentença.
Travei com denodo as recordações que me distraíam do essencial e agarrei-me ao único dossier que tinha a nota na capa e que me dizia:
Faz o que quiseres de tudo o que aqui deixo, excepto das nossas cartas de luta e de amor. Relê-as, como eu as reli agora, pela última vez. Grava-as na memória e no coração. Depois, cobre-me a campa com elas, num dia de Inverno, e deixa que a chuva tinja a terra de vermelho. Espera um pouco até que a chuva, a tinta, o sangue e as palavras penetrem no meu corpo morto e o aqueçam. Espera até que sintas que te beijo pela última vez. Depois, comigo no pensamento e de frente para o castelo, lê-me o poema que me leste hoje. Aí sim, morri.
Em 2000, o Inverno foi inclemente, inundou as lezírias e os rios mostraram como são violentas as margens que os comprimem. O cemitério de Ourém tingiu-se, então, de vermelho, de amor e de saudade, com a dor e o amor que escorreu das cartas que ali depositei, no dia de Natal, o primeiro dos muitos que nunca mais seriam o que foi.
Para este Livro de Exílios seleccionei as cartas que escreveu aos pais porque elas são o nítido retrato de um exilado. São cartas-documentos que ajudam a perceber as razões da fuga à guerra colonial de milhares de jovens portugueses que alteraram os rumos das suas vidas para lutar por um país livre.
(…)
Teresa Perdigão