
Valter Vinagre, 62 anos, mantém-se ligado à cidade onde viveu e trabalhou durante três décadas da sua vida. O fotógrafo diz que os primeiros anos foram vitais para a sua aprendizagem e experimentação e, como tal, muito contribuíram para ser o autor que é hoje e que se dá a conhecer aos leitores do nosso jornal e aos caldenses. Assume-se como homem de esquerda, com uma postura de abertura, aproveitando esta realização para homenagear a Gazeta das Caldas que considera que foi para si “uma escola” e também “a cidade e as pessoas que a constroem”.
No próximo dia 14, pelas 16h00, vai estar presente na inauguração da sua exposição “Retratos e outras histórias I” onde constam fotografias suas, de parte do arquivo da Gazeta das Caldas, captadas entre 1985 e 2001.
Gazeta das Caldas – Quando inicia a sua ligação às Caldas da Rainha?
Valter Vinagre – Em 1976 vim para as Caldas por amor. A mãe dos meus filhos mais velhos é de cá e eu mudei-me nessa altura. Comecei a trabalhar na autarquia, na limpeza de ruas, passei para o Turismo e depois para a Cultura, área dos meus interesses. Fui também um dos fundadores do Cine Clube que durou uma década e que funcionou, nos anos 80, nos Pavilhões do Parque. Íamos para Alqueidão da Serra para projectar cinema e tínhamos programas para fora. Também passei pela serigrafia, marionetas e pelo canto coral, na Casa da Cultura. Publiquei em jornais críticas de cinema e de fotografia. Mas escrever era algo doloroso. Tentei várias coisas, sobretudo agitar…
G.C. – E a fotografia? Quando começou a expor e a editar?
V.V. – A fotografia foi algo pensado, maturado e comecei cá, com máquinas emprestadas.
Foi um esforço grande, não havia apoios e ao fim de um ano de começar a tactear tive a certeza que tinha que frequentar uma escola. Frequentei a escola de arte Ar.Co em Lisboa, entre 1986 e 1989. Durante esse trajecto tive apoio do município para ir estudar. Lembro-me que ia muitas vezes com a então minha colega na autarquia Luísa Pimenta que, na época, estudava Direito e dava-me boleia. A minha primeira exposição individual foi feita no café da Estação da CP das Caldas. Designou-se “Comboio, Pretexto para um olhar” e as imagens eram acompanhadas por um texto do meu saudoso amigo Nuno Teotónio Pereira. Foi em 1988. Era constituída por imagens a preto e branco e teve o apoio da CP. Hoje entre livros e catálogos de exposições, já são mais de duas dezenas.
G.C. – E como vê a cidade das Caldas da Rainha hoje?
V.V. – Acho que a cidade continua a dar coisas, sobretudo a partir da ESAD. Saem dali autores que se revelam bons artistas e bons profissionais ao nível do design e a cidade devia orgulhar-se disso… E também se devia orgulhar dos seus museus pois mesmo com as dificuldades que têm, não é fácil para uma autarquia aguentar todos os museus e colecções que possui. No entanto, conheço as pessoas que neles trabalham e que têm de vontade de fazer. Passei por lá e sei como é. Sempre que fazemos coisas que saem da normalidade, estas só são entendidas à la longue. Creio que as Caldas foi pioneira em várias áreas e há coisas que se não se têm feito no passado, não havia a actividade que se mantém nos dias de hoje.
G.C. – Refere-se a quê? Pode dar alguns exemplos?
V.V. – Claro. É, por exemplo, a primeira localidade onde se constrói o primeiro edifício de raiz para ser um museu, o de José Malhoa. E também houve um arquitecto, Rodrigo Berquó que – com os seus pavilhões, mata e parque – tinha uma ideia perfeitamente romântica para a cidade e suas termas.
Trabalhei, por exemplo, durante vários anos, com Carlos Mota, no projecto de animação termal, pioneiro na época e fizemos entre outras coisas, a primeira Agenda Cultural do país.
Actualmente creio que há um grupo de pessoas que, com ou sem apoio da autarquia, conseguiu que as Caldas fosse um polo cultural a funcionar e que se mantém.
“Impressionou-me a pobreza em Espanha”
G.C. – Antes de vir para as Caldas da Rainha, por onde andou?
V.V. – Sou de Avelãs de Caminho e cedo percebi que para medrar, tinha que viajar. As primeiras viagens que fiz foi à boleia, antes de ter ido para a Marinha. Andava sobretudo de Coimbra para Norte, não desci a Lisboa nessa época. Ia também muito a Espanha, sobretudo à Galiza e ficava perplexo com a pobreza espanhola, miserável, muito visível e que muito me impressionou. Aqui também havia pobreza só que era “limpinha e salazarenta”.
G.C. – Como era a sua postura? De curiosidade, de abertura…?
V.V. – Para mim era claro por todas as influências que lia, uma das maneiras de medrar era viajar. Também queria ver sem filtros. Era entrar numa igreja, num café e se havia uma casa que se abria, ir sem medo, falar com as pessoas e ver como era… Quando me decidi pela fotografia tinha a ideia da escolha da imagem fixa, pois era na época uma maneira de contar histórias de uma maneira diferente, sem estar muito agarrado a ideias fixas…
G.C. – Depois foi para a Marinha…
V.V. – Sim, de 1972 a 1976, andei na Marinha de Guerra, onde entrei como voluntário. Participei no dia 25 de Novembro, do lado dos que foram expulsos. Assumi o lado que escolhi e sofri as consequências, sem amargura. Fui expulso. Tecnicamente, passámos à reserva. Eu tinha um contrato de seis anos e saí ao fim de quatro anos e meio de serviço. Gostaria que os caminhos tivessem sido outros, mas não tenho remorsos e continuo a lutar por aquilo em que acredito. Era marinheiro e tinha actividade política.
G.C. – Era filiado nalgum partido? Mantém-se ligado a alguma força política?
V.V. – Depois do 25 de Novembro, filiei-me no MES (Movimento de Esquerda Socialista). Até aí, era do MFA (Movimento das Forças Armadas). Sempre defendi um ideal socialista, era ouvir e fazer pontes entre diferentes forças – sim, nesse sentido era radical… nunca dei nada por adquirido, nem como verdade absoluta. Acredito que há sempre vários caminhos que nos podem ajudar a chegar mais depressa e mais longe a uma justiça maior e a uma repartição da riqueza mais justa. Por isso acredito no socialismo e, à minha maneira, continuo a apostar nisso. Mantenho-me filiado ao Bloco de Esquerda.
G.C. – Como encara a fotografia?
V.V. – Enquanto fotógrafo, na criação artística, faço perguntas em busca de respostas.
Também faço alguma curadoria, sobretudo em Idanha-a-Nova. Devo dar o meu melhor pela terra que decidi abraçar enquanto residente. Tenho uma relação informal com o centro cultural local e é uma forma de partilhar saberes e de ajudar zonas que aparentemente estão longe dos centros de decisão e de mostrar que fazem tão bom ou melhor que as restantes. Essa também uma das minhas formas de intervenção.
Idanha passou a ser a minha residência oficial, depois de ter saído das Caldas. Não me entendo com grandes cidades…
Da casa mortuária para a beira da estrada
G.C. – O seu trabalho revela preocupações sociais. Concorda?
V.V. – Sim, é verdade. Um deles, intitulado “Para” numa altura em que inaugurávamos a Expo’98 e estávamos na mó de cima mas andávamos a matar-nos nas estradas como ratos.
Houve um pico de mortalidade e eu, para dar resposta a essa inquietação – sobretudo após a morte da princesa Diana –, resolvi fotografar todos os memoriais que passaram a surgir nas vias de rodagem onde aconteciam os acidentes. O primeiro choro da dor da casa mortuária transferiu-se para a beira das estradas.
Noutro projecto, Carta do Sentir, tentei encontrar respostas à inquietação causada pelas guerras civis na ex-Jugoslávia e também no Ruanda. Tinha havido um pico de assassínios de mulheres em Espanha. Desenvolvi um trabalho ao longo de dois anos que resulta de interrogações e estas têm sempre a ver com causas.
G.C. – Há também uma recolha fotográfica, ligada à ruralidade e à tradição…
V.V. – Sim, andei a pesquisar sobre o húmus da cultura portuguesa. Fiz um trabalho sobre Portugal, antes de ingressarmos na CEE. Sobretudo aquilo que ainda existia de ruralidade ancestral.
Durante uma parte larga do trajecto, fui com a antropóloga Teresa Perdigão. Percorremos o Portugal ancestral e rural que se manifestava nas festividades de raiz pagão e, no fundo, não foi só um registo, foi um ensaio.
Achávamos que demoraria 10 anos até Portugal perder o pendor ruralista que existia e afinal foi em menos: em cinco anos quase tudo se perdeu… Algumas das coisas que estamos a perder por desajuste provavelmente assenta nessa entrada de dinheiro fácil no país e sobretudo pelo desgoverno sob os auspícios do sr. Cavaco Silva. É nos seus mandatos que se destrói a pesca e a agricultura. É com ele que se subsidia a não produção e foram feitas autoestradas e um série de gente que enriqueceu de forma indevida. As pessoas tendem a esquecer, mas não se pode…
G.C. – Do seu currículo fazem parte vários prémios e distinções….
V.V. – Uma das mais importantes foi o de Melhor Trabalho Fotográfico de 2015, devido a Posto de Trabalho, exposição comissariada por João Pinharanda que esteve no Museu da Electricidade. Passou ainda pelo Centro Internacional José Guimarães e pelo Museu de Etnologia em Lisboa. Foi muito bom para a minha carreira.
Foi para mim igualmente importante ter-me sido atribuída a Medalha de Mérito Cultural pela autarquia das Caldas em 2016. Obviamente que me soube muito bem. Ser reconhecido pela cidade onde se trabalhou três décadas, deixa-me muito orgulhoso e grato.
Conviver com os amigos e cortar o cabelo
G.C. – Como é actualmente a sua relação com a cidade das Caldas da Rainha?
V.V. – A minha relação com a cidade é boa e regular. Venho cá cortar o cabelo ao salão do Jeff, de três em três meses (há 25 anos que lá vou) e tenho com amigos.
Continuo a ter um bom núcleo de amizades e gosto de vir ao Pachá, comer e beber e conversar com uma série de gente. Estou a tentar corresponder ao convite de vir ver uma peça do Teatro da Rainha, mas não tenho conseguido.
Tenho um olhar atento ao que se vai passando na cidade, onde vivi 30 anos fundamentais da minha vida.
G.C. – Além da fotografia, também se dedica a outras áreas, quais? Gostaria de ensinar?
V.V. – Faço algumas conferências em universidades, além de participar em exposições, colectivas e de produzir individuais. Com “Posto de Trabalho”, sobre a prostituição de beira de estrada, também participo em formações com gente relacionada com os trabalhadores do sexo.
Também me dedico hortofloricultura – produzo alguma fruta e gosto de cozinhar para a família e amigos.
Não faz parte de mim fazer só uma coisa. Ensinar com regularidade não, mas coordenar workshops e programas curtos é algo que faço. Também acompanho jovens fotógrafos. Quando estou a partilhar estou a receber e é isto que nos mantém vivos.
G.C. – Esteve fora recentemente?
V.V. – Sim, estive em Estrasburgo, no Parlamento Europeu. Fui na comitiva de Idanha a Nova, localidade que foi convidada a representar o país no evento “Natal em Estrasburgo”. O município levou produtos da região e do país e apresentou o seu lado cultural. Levou uma exposição de um colecionador particular (Paulo Lopo), espectáculos de música e a minha exposição de fotografia, “Barra das Almas”. Esta foi uma boa forma de mostrar aos funcionários da União Europeia que pequenas comunidades conseguem produzir trabalhos de qualidade.
G.C. – Como é a sua relação com o estrangeiro?
V.V. – Vou com alguma regularidade, expor ou desenvolver alguns trabalhos como fiz por exemplo no Brasil. Fui convidado para um trabalho num hospital no Ceará, para os 25 anos da AMI. Vou de vez em quando mas na maioria das vezes estou por cá. Penso sobretudo o país, a partir de cá de dentro.
G.C. – Em que projectos está a trabalhar?
V.V. – Ando em volta de um projecto que termina em 2018 relacionado com as Invasões Francesas. Sabemos pouca coisa sobre o tema, ou seja, esta história não foi bem contada. Apetecia-me realizar um trabalho sobre esta aparente inquietação e fui procurar informação. Por causa deste projecto, ando a correr o país todo.






























