Foi apresentado a 9 de Fevereiro, no CCC, o livro “Os Fuzilamentos das Caldas da Rainha”, da autoria do investigador Mário Tavares com base nas memórias de Manoel de Sá Mattos, cirurgião militar que viveu os acontecimentos ocorridos na cidade a 9 de Fevereiro de 1808 durante a primeira invasão francesa.
A sessão decorreu no pequeno auditório e a plateia não foi suficiente para todos os que quiseram assistir à apresentação da obra. Só da Escola de Sargentos do Exército vieram 130 alunos.
As receitas obtidas com a venda deste livro revertem a favor do Grupo de Amigos do Museu de Cerâmica, entidade que é presidida pelo autor da obra.
“Destes matava eu sete!”. Terá sido esta a provocação de um caldense, “já toldado pelo vinho”, aos militares franceses – chefiados pelo general Junot. Isto foi o suficiente para despoletar uma rixa em 27 de Janeiro de 1808. Os soldados injuriados – que se encontravam em Portugal há apenas dois meses – correram atrás do caldense que se foi fechar em casa de uma irmã que lhe deu guarida, tendo passado pela Rua da Amargura, nas imediações da Praça da Fruta.
Os soldados queriam à força a chave da divisão onde o jovem se escondera e violentaram a jovem que as tinha escondido e se recusara a entregá-las. Os gritos da mulher foram ouvidos por militares portugueses do Porto, que se encontravam a jogar bilhar num local onde hoje fica o Café Central. “Com tacos e outras armas que tinham à mão, trataram de ripostar contra os franceses”, contou com pormenor, Mário Tavares, no final da apresentação do seu livro. A rixa generalizou-se e levou à instauração de um processo por parte das forças ocupantes.
Seguiram-se as inquirições, o julgamento e o Conselho de Guerra com a condenação de todos os envolvidos no processo, ao todo 13 pessoas, entre civis caldenses e militares da Invicta. Quatro, porém, conseguiram fugir.
“Os militares franceses deram importância a este acto e quiseram simular um julgamento imparcial que decorreu na Câmara”, contou o autor, acrescentando que tiveram também a intenção “de amedrontar as populações e os militares para que não ousassem praticar mais actos daqueles pois seriam castigados”.
O caso acabou com o fuzilamento de nove pessoas – seis militares e três civis – na então Quinta do Borlão (onde hoje se encontra os Paços do Concelho), a 9 de Fevereiro de 1808.
Mário Tavares contou que foi na loja do seu amigo alfarrabista, Hermínio de Oliveira, que encontrou na revista portuense “O Tripeiro” um testemunho na primeira pessoa, da autoria de Manoel de Sá Mattos, que era então cirurgião-mor do referido Regimento do Porto e que viveu aqueles dias dos fuzilamentos e a dissolução do seu Regimento, no dia 10 de Fevereiro.
O historiador caldense explicou que Manoel de Sá Mattos era, porém, um afrancesado (apoiante da causa de Napoleão Bonaparte) “o que não retira o grande interesse histórico do seu depoimento”. Até porque até agora não havia testemunho directo de quem tivesse presenciado o sucedido, ganhando este testemunho grande relevância para a História Local.
Mário Tavares foi procurar quem era este cirurgião e soube que Sá Matos era “um indivíduo culto que aos 22 anos já tinha publicado uma história da Medicina e da Cirurgia e mais tarde é aceite no exército. Era simultaneamente oficial do Santo Ofício e, enquanto esteve no exército, escreveu a história do seu regimento”, contou.
O historiador não deixa de se interrogar sobre as razões que levaram o ilustre médico a apoiar a causa liberal dos franceses sendo, ao mesmo tempo, oficial do reaccionário Santo Ofício.
Através do testemunho de Sá Matos percebe-se que antes da fuga da corte para o Brasil, ainda não se tinha decidido se as tropas portuguesas iriam enfrentar as francesas e por isso davam-se movimentação várias, entre elas a vinda do Regimento do Porto para esta região do país.
As tropas nas Caldas acabaram por se “enfrentar” por causa da rixa e os franceses aproveitaram para realizar uma demonstração de força “para que todos soubessem o que acontece a quem se metia com as tropas francesas”, acrescentou Mário Tavares.
O historiador contou que o cirurgião Sá Matos pagou por ter escolhido colocar-se ao lado de França, foi considerado um traidor e “depois da dissolução do regimento foi preso e condenado por ser adepto dos franceses”, disse o autor.
“Este é um testemunho resgatado da amnésia colectiva”
Rui Correia, professor de História e vereador socialista na Câmara das Caldas, apresentou a obra de Mário Tavares mencionando outras obras sobre história militar como, por exemplo, “O Rosto da Batalha” de John Keegan onde o autor “faz descer à infantaria toda a apreciação do mundo militar”.
Sobre o livro de Mário Tavares, disse que o testemunho nele relatado foi “resgatado da amnésia colectiva”. No fundo, disse, foi “um testemunho que regressa ao mundo dos vivos”. E isto porque foi publicado algures no inicio do séc. XX e desapareceu até agora, altura em que foi redescoberto por Mário Tavares. “De nada serve um texto se não houver quem o leia. De nada serve um livro se ninguém o abre”, rematou o orador.
O presidente da Câmara, Fernando Costa, referiu a associação do município à comemoração dos 200 anos da Guerra Peninsular e da parceria que foi estabelecida com o Estado Maior do Exército com vista a assinalar estes acontecimentos.
“Procurámos a melhor forma de recordar esses momentos históricos, fazendo evocações e prestando homenagem às nove vítimas das Caldas das invasões francesas. Espero que este acontecimento possa ser recordado ao longo dos anos”, disse Fernando Costa, anunciando ainda que o produto da venda dos livros reverterá a favor do Grupo de Amigos de Museu de Cerâmica.
O general Matos Coelho, em representação do Exército Português, enquanto decorria a investigação de Mário Tavares era então director de secção de História e Cultura Militar do Exército e por isso também apoiou a sua pesquisa. “É com muito gosto que estou na apresentação desta obra, onde a história militar se cruza com conhecimentos e saberes de outras áreas”, disse.
O militar ainda fez questão de agradecer à Câmara Municipal das Caldas o apoio que prestou na recuperação de um painel de azulejos que se encontra no Museu Militar e também por ter convidado o Exército a participar nestas celebrações dos 200 anos da Guerra Peninsular.
Durante a sessão foram feitos agradecimentos ao Estado Maior do Exército, à ESE, a Mário Lino, ao coronel Rocha Neves e a Hermínio de Oliveira pois todos apoiaram a realização destas comemorações.
Honras militares junto ao memorial
A Câmara das Caldas encerrou a sua participação, em parceria com o Exército Português, nas Comemorações do Bicentenário da Guerra Peninsular apoiando a edição do livro de Mário Tavares. Ainda a 9 de Fevereiro de 2012, ao final da tarde, o acontecimento que ali se viveu há 204 anos foi assinalado também com uma cerimónia de homenagem que teve lugar junto ao memorial de homenagem às nove vítimas e que se encontra colocado junto ao edifício dos Paços do Concelho.
O evento contou com honras militares e nela participaram presidente da Câmara, Fernando Costa, o presidente da Assembleia Municipal, Luís Ribeiro e o comandante da ESE, Alves de Oliveira.
Natacha Narciso
nnarciso@gazetadascaldas.pt