O investigador João Serra abriu o ciclo de conferências “O Mundo Mudou”, organizado pelo Património Histórico e que teve lugar no Capristanos, a 29 de Setembro. A intervenção autobiográfica deste historiador – que assistiu a grandes transformações da sociedade portuguesa, desde o ruir do mundo rural até à revolução de Abril – foi assistida por 70 pessoas.
“A distância entre as Caldas e a minha aldeia, o Carvalhal Benfeito, não era apenas física”, disse João Serra, acrescentando que entre o Carvalhal e as Caldas havia grandes diferenças “nos modos de vida, nas formas de falar, de vestir, nas referências culturais, nos códigos sociais e no modo de lidar com a informação”.
Nascido em 1949, numa família de pequenos-médios proprietários rurais, o orador frequentou o ensino liceal, num colégio privado, nas Caldas pois só em 1972 é que a cidade teve autorização para ter ensino liceal público, que dava acesso directo à universidade.
Vinha de camioneta, num percurso que demorava uma hora, o mesmo tempo que hoje leva percorrer a distância entre as Caldas e Lisboa.
Na sua aldeia, “a percentagem de analfabetismo era esmagadora e a sociabilidade limitada e fortemente controlada pela Igreja”. O historiador assistiu ao ruir daquele mundo “hierarquizado e conservador” na década de 60. O seu pai – correspondente de O Século e colaborador da Gazeta das Caldas – denunciava o êxodo rural, “a saída da mão de obra, até aí abundante e barata, do campo para a cidade”. Este fazia-se para as cidades e para a França, e era precedido do serviço militar obrigatório, aos 21 anos. Depois de 1962 “incluía uma passagem de dois anos por uma das frentes de guerra colonial”, disse.
“Senti que tudo estava em causa”
Já nas cidades, estes jovens rurais procuravam emprego na indústria e nalguns serviços. Outros frequentavam escolas, sobretudo as técnicas, onde faziam formação para a indústria ou comércio. “Deslocavam-se em motorizadas e adoptavam modos e vestuário urbanos”. Segundo o orador, rapidamente se “desvinculavam do mundo rural onde tinham nascido”.
Em 1966 João Bonifácio Serra “assentou praça” em Lisboa, na Faculdade de Direito. Algo possível depois da sua família ter apostado na conversão parcial da produção agrícola do vinho e cereais para a fruta, que se destinava ao mercado colonial. A mudança foi radical pois os estudos secundários “urbanizaram o aldeão, mas não me prepararam para o embate da grande cidade. Senti que tudo estava em causa”, disse. Referia-se ao facto de achar que não era possível fazer parte de uma turma com 300 alunos, como constatou na sua primeira aula na universidade. Entretanto decidiu mudar para o curso de História, na Faculdade de Letras e, para aliviar a família do encargo do ano perdido, começou a trabalhar, dando lições particulares.
Militante quando o ditador caiu
Em Setembro de 1968, o ditador Salazar foi substituído por Marcelo Caetano, na sequência da queda da cadeira. Nessa altura João Serra “era já um militante empenhado na vida associativa estudantil e participava em grupos de reflexão sobre o sentido das transformações da economia e da política”. O sistema político inspirador era o marxismo. “Acreditávamos que a luta de classes constituía o motor da história”, disse o orador, acrescentando que “estávamos convencidos de que a criatividade nas artes e na cultura não podiam senão andar de mãos dadas com a luta contra o regime autoritário”.
Assistia-se então a uma alteração social que era o crescimento sem precedentes da escolaridade secundária e superior. Na Alemanha Federal, na Irlanda, por exemplo, o número de estudantes no ensino superior multiplicou por cinco entre 1960 e 1980, na Finlândia ou na Suécia, por 7. “Em Portugal multiplicou por 9 entre 1960 e 2000”, disse acrescentando que se somava o facto dos estudantes não serem apenas da elite. Significava agora que várias famílias – com parcos recursos – estavam dispostos a fazer um sacrifício para por os seus filhos a estudar. E foi o aumento exponencial de estudantes e de professores que permitiu criar as condições para a agitação estudantil, o radicalismo político e a mobilização sem cariz económico-sindical que se seguiu.
A mulher no mercado de trabalho
Cada ano que passava, constatava-se que havia mais raparigas a frequentar o ensino superior. “A entrada de mulheres no mercado de trabalho estava a acontecer, e não só no sector terciário”, disse o historiador cuja mãe e tias tinham sido domésticas. As mulheres da geração seguinte, “a minha irmã e primas tiveram ou têm carreiras profissionais”, acrescentou. Esta mudança foi causa e consequência de mudanças do papel da mulher na sociedade. Entre outras alterações, desencadeou (ou acelerou) o fim da família extensa e a tendência para a redução da família ao seu núcleo básico. Indirectamente, fez aumentar o número de separações e divórcios e as famílias monoparentais e as situações de celibatários por escolha. “Sobretudo alterou a relação entre homem e mulher e a relação entre pais e filhos”, disse. À lupa foi vista também a emergência de uma cultura juvenil autónoma e internacionalizada. Nos anos 80, já era evidente que a cultura de massas tinha vindo para ficar. Moldava-se pela cultura americana e anglo-saxónica e tinha reflexos nos jeans e no rock, na adesão à “beatlemania”, na generalização do inglês ou na curiosidade pelo amor-livre.
“Abril” precedeu mudanças noutros continentes
Quando se deu a revolução, João Serra tinha 25 anos. Para o orador, esta insere-se na terceira vaga de democratização – defendida por Samuel Huntington – que foi desencadeada pelo 25 de Abril português. A esta seguiu-se a queda do regime militar grego e, após a morte de Franco, em Novembro de 1975, a reforma do regime autoritário espanhol. “Esta vaga propagou-se à América Latina, à Ásia e aos países do Leste Europeu, a partir de finais da década de 1980”, disse.
Na sua opinião, o caminho percorrido pela transição portuguesa, cai no âmbito das rupturas. O facto de ter origem num golpe de Estado militar “coloca-o no campo das transições revolucionárias, mas foi a intensa mobilização social subsequente que definiu a natureza do processo”.
João Serra foi questionado pela Gazeta das Caldas porque é que designou como “A última lição”. O investigador considera que esta foi uma lição do próprio tempo. “Do tempo que muda, que transforma. Assisti a grandes transformações da sociedade neste meu tempo de vida”, afirmou, acrescentando que olha para estas mudanças de um ponto de vista autobiográfico, “mas sobretudo de um ponto de vista histórico”. Nessa medida “esta narrativa constitui para mim uma última lição. É a lição de quem faz perguntas, de quem questiona. É a vida para além da vida, na expressão de Fernando Pessoa”, rematou.
Isabel Xavier e Rui da Bernarda, responsáveis pelo PH e Capristanos não podiam estar mais satisfeitos com esta parceria e com a forma como o público aderiu a esta primeira conferência. As seguintes terão lugar nas últimas quintas-feiras dos próximos meses, pelas 18h00.