… a propósito do documentário de Jorge Pelicano, filmado no hospital Conde de Ferreira no Porto, o poema de Ângelo e Lima (18721921), “poeta alienado” com internamentos vários, nomeadamente nos hospitais psiquiátricos de Conde de Ferreira e Rilhafoles:
Pára-me de repente o Pensamento… – Como se de repente sofreado Na Douda Correria… em que, levado… – Anda em Busca… da Paz… do Esquecimento
– Pára Surpreso… Escrutador… Atento Como pára… Um Cavalo Alucinado Ante um Abismo… ante seus pés rasgado… – Pára… e Fica… e Demora-se um Momento…
Vem trazido na Douda Correria Pára à beira do Abismo e se demora
E Mergulha na Noute, Escura e Fria Um olhar d’Aço, que na Noute explora…
– Mas a Espora da dor seu flanco estria… – E Ele Galga… e Prossegue… sob a Espora!
… a propósito dum poema ser carne viva, sem metáforas, sem encenação… não qualquer poema, mas este poema, filmado ali, no hospital psiquiátrico, habitado por doentes crónicos para quem aquele espaço passou a ser casa e mundo… Para quem a busca da paz se mescla com o esquecimento… Para quem o abismo é o afastar-se das imediações do hospital… é a possibilidade do salto suicida da ponte da Arrábida… Poderia falar da Esquizofrenia enquanto doença mental e quadros sindromáticos. Poderia falar do papel de hospitais psiquiátricos como o de Conde de Ferreira no Porto ou o de Rilhafoles (depois Miguel Bombarda) em Lisboa, na história da psiquiatria em Portugal. Poderia falar das Instituições Totais e da violência da institucionalização e do estigma a ela associado. Poderia falar da experiência de trabalho de cinco anos no hospital Miguel Bombarda. Poderia falar das reformas dos serviços de psiquiatria e saúde mental em curso… Mas o pensamento e as palavras fogem para outro lado, fogem para as pessoas… para a força da humanidade que teima em sobreviver e em buscar equilíbrios, amizades, rotinas, humor, riso, ternura, amor, sentido… Para as pessoas em que a fuga do sofrimento passado/presente se faz nem que seja à custa da sofreguidão compulsiva dos
cigarros… Para as pessoas que recebem e aceitam a presença do ator. Do ator que faz de si próprio, à procura da sua personagem e dum guião. Do ator que busca o que quer representar, a inquietação, a angústia, o descontrole… acolhido no meio daqueles para quem a inquietação, a angústia, o descontrole, não podem ser representados porque já foram vividos na carne, já foram ausência de limite, já foram caminho sem volta, já foram perda e dor que os conduziu até àquele lugar, àquela condição. Há dois discursos no filme que ficaram a ecoar e que cito de cor. Num, um dos doentes diz: “… eu não sou doido… doido é quem não tem amigos”. Outro diz: “Há remédios para tudo… (…)… há remédios para morrer… há remédios para ressuscitar…” Não sei se há remédios para tudo, mas sei que a solidão e a desesperança desvitalizam e matam, onde quer que seja que aconteçam, a quem quer que seja que aconteçam… Pára-me de Repente o Pensamento, belíssimo documentário, em que o realizador nos consegue fazer entrar em contacto com um universo por definição fechado, duma forma contida, em que filma e capta a humanidade dos que o habitam.
Paula Teresa Carvalho
Psiquiatra