“Pára-me de repente o pensamento” e a realidade do Hospital Conde Ferreira

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2016-04-22 Primeira.inddComo é o quotidiano num Hospital Psiquiátrico no século XXI? De que se fala? Tem-se consciência da doença mental? Sim, os doentes sabem que sofrem sintomas, que têm dificuldades. Mas não é por isso que deixam de conviver, de namorar, de pintar obras e fazer teatro. “Pára-me de repente o pensamento”, o documentário de Jorge Pelicano fala de tudo isto e muito mais pois para melhor contar como se vive no centro Hospitalar Conde Ferreira escolheu um actor, Miguel Borges, que durante três semanas, ajudou a conhecer melhor aqueles que vivem naquele espaço e é ali que se sentem seguros.  O filme foi exibido na tarde do dia 11 de Abril para alunos das escolas da ETEO e da Secundária Rafael Bordalo Pinheiro. À noite, o público encheu o pequeno auditório para conhecer como se atenuam as dificuldades de quem sofre de esquizofrenia na actualidade.
Natacha Narciso 
“A vida lá fora é mais dura”. Uma frase de Rosa para Abreu, o namorado que, tal como ela, é utente da instituição e que gostaria de sair do Hospital Conde Ferreira. Ele quer sair. Ela não. Tem consciência das suas dificuldades e de como tudo seria bem mais árduo fora do Conde Ferreira. Há quem conte que a doença lhes deu para partir coisas, fazer mal às pessoas e alguns contam até que já foram assaltados  por pensamentos suicidas. Todos os retratados revelaram que têm consciência das dificuldades que lhes causa a esquizofrenia. “E tu não sentes assim nenhum sofrer?”, pergunta um dos utentes ao actor Miguel Borges quando este chega para ficar três semanas e lhes pedir ajuda para encontrar uma personagem. O escolhido foi o poeta Ângelo de Lima que também tinha esquizofrenia (agravada pelo consumo excessivo de álcool) e que por isso também viveu no Conde Ferreira em 1894. O actor dá vida a esta personagem e interpreta-a na peça de teatro que celebra os 131 anos daquela instituição, onde participa um grupo de utentes. Estes, trajados a rigor, interpretam várias personalidades, entre estas o Rei D. Manuel, a quem coube inaugurar o hospital psiquiátrico. Durante a rodagem há cenas sobre o a forma como os utentes são tratados pelo pessoal de saúde. As entrevistas médicas, as auxiliares que os ajudam nas tarefas básicas, ou a senhora que lhe ensina a fazer tapetes de arraiolos, têm um carinho imenso por cada um deles. É tocante. “Aqui não há malucos. Aqui há doentes da cabeça”, diz um dos retratados no documentário que conta como, em pleno “ataque” causado pela doença, “fui parar ao Sto. António e foram preci
sos cinco empregados para me agarrar e me injectar!”.
UTENTES AJUDARAM A “COMPOR” POETA
Gostei bastante do filme  pois retrata como é a vida num hospital de tratamento psiquiátrico na actualidade”, disse João Madaleno, de 17 anos, que estuda na  ETEO no curso de  Técnico Auxiliar de Saúde. O jovem considera que “foi interessante” o modo como o actor Miguel Borges “interagiu com os doentes de forma  a poder criar a personagem e ainda assim mostrar interesse pela vida de cada um dos doentes”. Já a sua colega Ana Constantino, 19 anos, e que frequenta o mesmo curso, contou à Gazeta que adorou o filme. Gostou de ver a forma “como os próprios utentes encaram e falam sobre a doença e como explicam como são tratados pelos outros”. Para a jovem, tudo isto se passa sem que os pacientes “percebam que não saem daquele ciclo” que tem como ponto fulcral a permanência no Conde Ferreira, o primeiro
hospital psiquiátrico português feito de raiz. “Acho que o filme fala de uma realidade que se vive no interior do hospital e que nem toda a gente conhece nem está a par”. Palavras de Ruben Assunção, 17 anos, que estuda Animação Sócio Cultural na Escola Secundária Rafael Bordalo Pinheiro, que gostou da postura do actor no filme pois este “quis compreender um pouco a realidade que se vive lá dentro,  dado que as pessoas estão lá por algum motivo”. Da mesma escola esteve Bernardo Marinho, 18 anos, que também estuda Animação Sócio Cultural, que achou o filme “interessante” apesar de considerar  que “não tenho a maturidade necessária para perceber tudo”. De qualquer modo todos os estudantes recomendaram o filme, sublinhando que é bom assistir a boas propostas de cinema português. Uma das docentes que acompanhou as turmas da Bordalo, Dulce Soure, também elogiou o filme, sobretudo porque “tem uma fotografia fabulosa”. Sublinhou  a prestação de Miguel Borges pois foi muito interessante “a maneira como ele se transformou!” A espectadora acha que utentes deram uma ajuda no processo criativo e “foi através daqueles homens que ele chegou ao poeta. Eles transformaram-no”. Dulce Soure ainda salientou um dos utentes que “era uma figura dominadora, do homem inteligente e culto, que lhe servia de tábua de salvação, a si aos mais próximos”. A professora também ficou tocada pela forma como os funcionários tratam os utentes “com uma enorme ternura” e gostou igualmente da forma como foi abordado o medo daqueles que sabem que não podem deixar a instituição. De vez em quando,  o filme também é pontuado por momentos de humor. Quando Miguel Borges pergunta a um dos utentes se ele vai passar toda a sua vida no Conde Ferreira, este responde-lhe que ali permanecerá, pelo menos, “até ganhar o Euromilhões!”.

Pára-me de repente o pensamento…

… a propósito do documentário de Jorge Pelicano, filmado no hospital Conde de Ferreira no Porto, o poema de Ângelo e Lima (18721921), “poeta alienado” com internamentos vários, nomeadamente nos hospitais psiquiátricos de Conde de Ferreira e Rilhafoles:
Pára-me de repente o Pensamento… – Como se de repente sofreado Na Douda Correria… em que, levado… – Anda em Busca… da Paz… do Esquecimento
– Pára Surpreso… Escrutador… Atento Como pára… Um Cavalo Alucinado Ante um Abismo… ante seus pés rasgado… – Pára… e Fica… e Demora-se um Momento…
Vem trazido na Douda Correria Pára à beira do Abismo e se demora
E Mergulha na Noute, Escura e Fria Um olhar d’Aço, que na Noute explora…
– Mas a Espora da dor seu flanco estria… – E Ele Galga… e Prossegue… sob a Espora!
… a propósito dum poema ser carne viva, sem metáforas, sem encenação… não qualquer poema, mas este poema, filmado ali, no hospital psiquiátrico, habitado por doentes crónicos para quem aquele espaço passou a ser casa e mundo… Para quem a busca da paz se mescla com o esquecimento… Para quem o abismo é o afastar-se das imediações do hospital… é a possibilidade do salto suicida da ponte da Arrábida… Poderia falar da Esquizofrenia enquanto doença mental e quadros sindromáticos. Poderia falar do papel de hospitais psiquiátricos como o de Conde de Ferreira no Porto ou o de Rilhafoles (depois Miguel Bombarda) em Lisboa, na história da psiquiatria em Portugal. Poderia falar das Instituições Totais e da violência da institucionalização e do estigma a ela associado. Poderia falar da experiência de trabalho de cinco anos no hospital Miguel Bombarda. Poderia falar das reformas dos serviços de psiquiatria e saúde mental em curso… Mas o pensamento e as palavras fogem para outro lado, fogem para as pessoas… para a força da humanidade que teima em sobreviver e em buscar equilíbrios, amizades, rotinas, humor, riso, ternura, amor, sentido… Para as pessoas em que a fuga do sofrimento passado/presente se faz nem que seja à custa da sofreguidão compulsiva dos
cigarros… Para as pessoas que recebem e aceitam a presença do ator. Do ator que faz de si próprio, à procura da sua personagem e dum guião. Do ator que busca o que quer representar, a inquietação, a angústia, o descontrole… acolhido no meio daqueles para quem a inquietação, a angústia, o descontrole, não podem ser representados porque já foram vividos na carne, já foram ausência de limite, já foram caminho sem volta, já foram perda e dor que os conduziu até àquele lugar, àquela condição. Há dois discursos no filme que ficaram a ecoar e que cito de cor. Num, um dos doentes diz: “… eu não sou doido… doido é quem não tem amigos”. Outro diz: “Há remédios para tudo… (…)… há remédios para morrer… há remédios para ressuscitar…” Não sei se há remédios para tudo, mas sei que a solidão e a desesperança desvitalizam e matam, onde quer que seja que aconteçam, a quem quer que seja que aconteçam… Pára-me de Repente o Pensamento, belíssimo documentário, em que o realizador nos consegue fazer entrar em contacto com um universo por definição fechado, duma forma contida, em que filma e capta a humanidade dos que o habitam.
Paula Teresa Carvalho
Psiquiatra
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