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O título de campeão europeu de futebol ainda está bem fresco na memória dos portugueses. Entre os caldenses, houve um que teve a oportunidade de viver essas emoções por dentro. Ricardo Santos, que aos 34 anos é responsável do departamento de scouting (observação) da selecção, fez à Gazeta das Caldas o relato daquele dia inesquecível e de tudo o que se seguiu. O “olheiro” fala da enorme força que a comunidade emigrante passou ao grupo ao longo dos quase 50 dias de estágio em Marcoussis e também das dificuldades de estar tanto tempo longe da família. Ricardo Santos acredita que o grande trunfo da equipa portuguesa foi a forma focada como trabalhou desde a chegada de Fernando Santos, em Outubro de 2014, e acredita que a simplicidade, a humildade, e o espírito de família conduziram ao triunfo que colocou uma nação em delírio.
GAZETA DAS CALDAS – A conquista do Campeonato da Europa de futebol é um feito inolvidável para esta selecção, que deu uma alegria enorme a todos os portugueses espalhados pelo mundo. Como foi viver essas emoções por dentro?
RICARDO SANTOS – Foi fantástico viver esta conquista. Por tudo! Não só pelos portugueses em Portugal, como por nós – jogadores e staff -, mas principalmente pelos emigrantes, que nos deram um apoio incondicional, todos os dias à frente do nosso centro de estágio, de dia, de noite. Foi fabuloso. Ouvir aquelas pessoas a pedir-nos para ganharmos na cidade e no país onde trabalham há tantos anos com imensas dificuldades, a pedirem-nos para ganharmos a taça por eles, é uma coisa que não tem explicação. É muito maior que qualquer outra coisa.
GC- Como foi viver uma final de um Europeu com tantas peripécias extra-jogo, começando logo pela praga de traças?
RS – Soubemos que havia uma praga quando chegámos ao estádio. Eu, no aquecimento, vim cá fora um bocadinho antes dos jogadores e era impressionante a quantidade de traças que havia no campo. Mas no fim, quando se ganha, acabamos por nos rir de tudo o que se passou.
Foi uma final onde correu tudo bem, foi tudo espectacular, conseguimos dar a volta a adversidades do jogo e transformá-las em incentivo.
Foram momentos muito vividos por todos, pelos jogadores, staff e por toda a gente envolvida. No balneário, a seguir ao jogo, a emoção era grande e notava-se que toda a gente estava completamente eufórica e a viver de uma forma muito intensa aquela vitória.
GC- Antes de Portugal se sagrar campeão europeu de futebol, houve vários atletas medalhados nos europeus de atletismo. Tiveram conhecimento desses feitos?
RS – A Jéssica Augusto é esposa do Eduardo e, portanto, nós seguíamos de muito perto o que estava a acontecer. Foi um dia importantíssimo para Portugal a todos os níveis, não só pela selecção nacional de futebol, mas também pelos feitos do atletismo.
GC – Interpretaram essas vitórias como um sinal de que era um dia favorável para os portugueses?
RS – Muitas estrelinhas se acendem, muitas coisas se passam que nós damos valor, que acreditamos. Mas não foi nesse dia que acreditámos, foi um processo muito longo.
Sempre acreditámos que podíamos fazer qualquer coisa. Obviamente que depois de ganhar não vamos estar a dizer que sabíamos que ia ser assim, mas tínhamos uma convicção muito grande no que poderíamos fazer desde o início. O Fernando Santos já falou sobre isso. O nosso foco, a mensagem dele em todas as palestras, desde Outubro de 2014 quando entrámos na selecção nacional, era chegar à final e vencê-la.
GC – Isso foi uma grande mudança relativamente às anteriores equipas técnicas, esse assumir de um discurso positivo e não do jogo a jogo?
RS – Não estava dentro, portanto não posso falar do que se passou e não gosto de falar sem conhecimento de causa. Sei bem o que é o futebol e uma coisa é o que se fala e outra é o que se vive. Eu gosto de falar de coisas que vivi e vivo, que conheço por dentro.
Acho que aqui a grande diferença, não digo que é melhor ou pior, é que o Fernando Santos foi sincero com o sentimento que tinha e tentou transmitir isso aos jogadores. O “segredo” foi a humildade e a sinceridade de assumir: “é isto que eu sinto. Querem? Vamos embora”. Acho que se resume tudo a simplicidade e humildade, foi isso que nos levou à conquista do Europeu.
O único jogo de Portugal que fui ver ao estádio foi a final
GC – Relativamente ao seu trabalho como responsável do departamento de scouting da selecção, quando se disputa uma competição desta natureza o ritmo aumenta consideravelmente. É possível traçar uma semana de trabalho?
RS – Não difere muito do que era o meu trabalho nos clubes, mas é condensado e realizado em ritmos muito intensos e com opções a serem tomadas. Porque o campeonato da Europa tem fases distintas.
No meu trabalho a fase de grupos é totalmente diferente da fase a eliminar, porque o meu trabalho é a observação dos adversários.
Na fase de grupos já vai tudo preparado, porque eu sei com que equipas vamos jogar. Há três equipas que estão completamente trabalhadas e que já em Janeiro estavam analisadas de forma detalhada. Só houve necessidade de fazer acertos em Março, quando se realizaram jogos particulares e o “remate final” nos particulares antes do Europeu, já com a convocatória final e o conhecimento de eventuais lesões.
Durante a fase de grupos eu ia sempre observar os adversários, portanto, o único jogo de Portugal que fui ver ao estádio foi a final, frente à França. No primeiro jogo, jogámos contra a Islândia, eu fui ver o Áustria-Hungria, para analisar a Áustria, que era o adversário seguinte. No jogo da Áustria, fui ver a Hungria com a Islândia, para analisar a Hungria e ver se estava de acordo com o esperado.
Quando se entra na fase a eliminar é totalmente diferente, porque eu não sei contra quem é que vou jogar. Fui ver um jogo e analisar duas equipas, podia calhar uma ou outra. Por exemplo, houve um jogo que fui analisar que não jogámos contra nenhuma daquelas equipas, fomos jogar com outra. Aquele trabalho intenso que foi feito, foi posto de parte. Isto em termos de tempo, imaginem… Na noite a seguir ao jogo, não se dorme. Vamos pegar nos vídeos todos e analisar a equipa de alto a baixo. É essa a intensidade de trabalho.
GC – É uma forma diferente de ver os jogos?
RS – Tem de se ver da mesma forma, tem de se analisar tudo, ir ao detalhe porque é isso que resolve. Tem de se tentar perceber o melhor possível o adversário, para poder transmitir aos jogadores, para que eles saibam o que vão encontrar, para podermos treinar e definir a estratégia para o jogo.
Após a passagem da fase de grupos, tivemos três dias até aos oitavos de final. Depois tivemos uma folga de cinco dias, mas estamos a falar destes períodos para analisar jogos e jogos, montar vídeos, escrever… Os treinadores não têm folga no dia a seguir ao jogo!
GC – Também faz parte das suas funções analisar jogadores seleccionáveis?
RS – Sim, toda a equipa técnica observou muitos jogos, tanto no estádio, como em vídeo. É dividido por todos, para termos um critério coerente e justificado. São diferentes olhos a ver o mesmo jogador, se as coisas coincidirem é muito mais fácil chegar a uma justiça, se é que há uma justiça de selecção. Se for sempre o mesmo a ver, algo pode falhar, com este método é mais difícil escapar alguma coisa.
GC – A forma como o grupo foi montado foi outro dos segredos desta selecção, que foi das poucas a utilizar todos os jogadores de campo? Era um grupo homogéneo em termos de qualidade.
RS – Qualidade haveria sempre, porque os jogadores portugueses têm qualidade. A gestão foi mais em termos estratégicos: qual era a estratégia que íamos utilizar e quais os jogadores que poderiam encaixar na estratégia utilizada. E depois, claro, o momento deles. Tivemos algumas lesões antes da convocatória final e tivemos de fazer ajustes. Todos foram importantes. Ao longo do percurso seleccionámos cerca de 50 jogadores e todos foram importantes porque sem eles não conseguíamos ter chegado ao Europeu e sem os que lá estiveram não o conseguíamos ter ganho. Quando se diz que todos são importantes é mesmo verdade, não é uma frase feita. Até pelo grupo, pelo que nos deram em estágio, pelo fortalecimento dos laços.
GC – Tendo em conta a forte presença de emigrantes e, ainda que em 2004 não fizessem parte da equipa técnica da selecção, teve este Europeu semelhanças ao de há 12 anos?
RS – A noção que eu tinha do Euro 2004 foi aquele apoio todo. Ali estávamos num espaço mais isolado e num país que não é o nosso. Chegámos ao estádio e cerca de 70 mil adeptos eram franceses. Tínhamos lá cinco ou dez mil pessoas, era uma faixa pequena. Em 2004 não, estávamos em casa.
Este Europeu foi mais familiar, pelo apoio dos emigrantes. O grande impacto foi a chegada a Portugal. O que se passou na segunda-feira foi fabuloso.
GC – O que é que se sente em momentos como esses?
RS – Alegria, euforia, vontade de dizer às pessoas: isto também é vosso. Tenho imagens marcadas, por exemplo, das crianças pequeníssimas dos colégios por onde passámos, à porta, a dizer adeus; as pessoas a correrem atrás do autocarro, a deixarem os carros no meio da estrada para seguirem o autocarro da selecção, é impressionante. O mar de gente na Alameda.
Tenho um episódio que me marcou: na segunda-feira, logo à saída do aeroporto, reparei num rapaz que estava a torcer junto ao autocarro a gritar muito. Passado um bocado voltei a vê-lo, continuámos o percurso e quando saímos na Alameda ele estava lá! Foi a correr do aeroporto atrás do autocarro a seguir-nos o caminho todo, durante um trajecto bem longo. Foi muito impressionante.
Ao oitavo o meu filho perguntar: “quando é que vens pai?”, aperta o coração
GC – São 50 dias fora do país, num grupo fechado. Como se mantém o grupo focado e como se tenta diminuir as saudades?
RS – Em termos de comida, por exemplo, não temos problemas, porque temos dois cozinheiros connosco e em França foi ainda mais simples, porque iam abastecer-se a mini-mercados portugueses.
Obviamente que as saudades da família apertam, então em momentos menos bons, em dias mais difíceis, porque os há, em 50 dias tão intensos, a primeira coisa que vem à cabeça é a família e a saudade. Só poder falar pelo telemóvel…
Muitos deles têm filhos pequenos, como é também o meu caso, e custa sempre mais, porque as crianças não percebem. Para quem está sob uma intensidade tão grande, a saber que o objectivo é ficar 50 dias, ao oitavo o meu filho perguntar: “quando é que vens pai?”, aperta o coração. Mas o foco lá é muito grande, o trabalho é diário, 24h sob 24h, algumas noites sem dormir e tentar aproveitar todos os momentos do meu trabalho.
GC – E em relação aos jogadores?
RS – Tentámos ser mais justos e coerentes em todos os momentos. Não diferenciar se o jogo foi bom ou mau e alterar muito o plano. Tínhamos uma estratégia e as coisas foram sempre feitas com muita coerência, sendo justos para os jogadores, percebendo o cansaço, percebendo que há jogadores contentes e outros chateados e que é preciso gerir essas coisas, mas acima de tudo ser justos com todos e perceber que, para lá de um jogador, um treinador, um médico ou um segurança, há uma pessoa que está longe da família e que só vê aquelas pessoas durante 50 dias. Não há aquele momento para descansar um bocadinho e ver televisão, para estar com a família. Mas correu tudo muito bem!
GC – A vertente mental desta equipa foi muito trabalhada. Éder é um exemplo, mas há outros. Como é que se trabalha esta vertente?
RS – Felizmente correu bem para o Éder. Ele merecia. Pelo que diziam, pelo que via na imprensa. Eles são humanos, também ouvem, também lêem… É colocarmo-nos na posição deles e imaginar que estão sempre a criticar o nosso trabalho.
Passa tudo por conversar, acreditar e fazer ver que acreditamos. O treinador teve um papel fundamental nisso. Mostrou que hoje joga um e amanhã pode jogar outro. Não utilizou todos os jogadores porque era bonito, mas sim porque acreditou que determinado jogador era importante em determinada situação e se calhar no jogo a seguir saiu e entrou outro que era importante. Sempre com um pressuposto: ganhar. Para isso foram escolhidos 23.
GC – Esperavam ser recebidos em Portugal da forma que foram?
RS – Nada é preparado numa situação destas. Imaginem a festa que foi no estádio, no caminho para o centro de estágio com os emigrantes… Nós chegámos ao hotel para jantar por volta das 4h30 da manhã, às cinco e tal ainda estávamos todos a conversar. Às 6h00 eu estava a fazer a mala, dormi meia-hora e às 8h00 estávamos a partir para o aeroporto.
Quando chegámos a Portugal tínhamos uma imensidão de gente à nossa espera. Ninguém se prepara para uma recepção daquelas. É chegar, ver e usufruir, desfrutar daquilo tudo.
Surpreendeu-me muito a zona do aeroporto, porque nós saímos por uma saída secundária e estava lá imensa gente. É impressionante. No autocarro os jogadores brincavam e gritavam que naquele dia era feriado e parecia mesmo. Foi fantástico.
O Fernando é, para mim, um treinador e uma pessoa fabulosos, que tem os momentos de exigência máxima, mas também de amizade máxima
GC – Como é a sua relação com Fernando Santos, numa ligação que já dura há 11 anos?
RS – É uma relação com duas vertentes: uma profissional, com um respeito e fidelidade de 200% da minha parte e da parte dele a mesma coisa, confia em mim e eu faço por isso.
Depois existe a vertente de amigo, que quando é preciso alguma coisa, de parte a parte, estamos um para o outro. Eu a restante equipa técnica, que são pessoas que trabalham há algum tempo com ele. Só assim é que pode funcionar. Quando é profissional é profissional. Se ele tem de criticar, de “ralhar”, pois que o faça, que lá estamos para aguentar e dar o melhor na próxima vez. Quando são assuntos pessoais, é o abraço, o apoio, a conversa e também está lá para isso.
O futebol é tão intenso e estas situações são tão intensas que muitas vezes, quando surgem problemas pessoais, as pessoas que estão ao nosso lado são da equipa técnica, são eles que nos vão ouvir e apoiar. É uma relação de muita afectividade e ligação forte, tanto eu como os outros adjuntos.
O Fernando é, para mim, um treinador e uma pessoa fabulosos, que tem os momentos de exigência máxima, mas também de amizade máxima e eu valorizo isso. Se o meu trabalho é aquele, eu tenho de dar o meu máximo. Se isso é o que o Fernando Santos pretende, cabe a ele diagnosticar, mas que eu dou o meu melhor, isso dou.
GC – Também têm em comum uma ligação a esta região…
RS – Sim, o Fernando Santos tem uma ligação de infância com as Gaeiras. É lisboeta, mas gosta realmente desta zona. E eu sou caldense e é com muito orgulho que estou onde estou. Tenho muito orgulho por termos conquistado o que conquistámos e por um caldense estar nessa situação. Nasci, cresci, vivi, fiz tudo aqui, esta há-de ser sempre a minha cidade, nunca me hei-de esquecer.
GC – A região é um tema das vossas conversas?
RS – Sim, vai estando presente em tudo. Obviamente que brincamos… Por exemplo, estávamos a vir no avião e a ver a costa, passámos pela Nazaré e por São Martinho e eu disse: vem aí a Foz e o Fernando começou a chamar a atenção para isso.
Obviamente toda a gente sabe de onde é que eu sou e brincam às vezes, como é óbvio, com a louça das Caldas! Um dos técnicos de som é de Alcobaça também.
GC – Já teve oportunidade de ver as comemorações nas Caldas?
RS – Recebi fotografias no momento em que estavam a colocar as camisolas nas peças da Rota Bordaliana e fiquei muito orgulhoso de ver esse apoio. Tive caldenses – pessoas ligadas à Câmara – no jogos em França que nos apoiaram. Não vi fotografias de comemorações, mas soube que houve na final, porque o meu filho não conseguia dormir.
GC – Tendo em conta a relação que tem com o Sporting Clube das Caldas, como é que tem vivido os recentes feitos do clube caldense?
RS – É uma relação muito forte, porque fui atleta de ténis de mesa e de voleibol e fui treinador de voleibol, portanto, a ligação que tenho ao voleibol é muito grande.
O professor Júlio Reis é uma pessoa que considero muito, que respeito muito e que admirei e admiro muito pelo trabalho e pela intensidade que colocou em prol do voleibol. Um pouco à semelhança do que nos aconteceu, de ter objectivos claros, saber o que queria e trabalhar para, é admirável. Daí tirar o chapéu 500 vezes ao professor Júlio. Mas também a outras pessoas que trabalharam comigo lá, como o professor Fortunato, a professora Teresa, o professor Margarido, como director, todos os atletas, o professor Hugo Madruga, o professor João Santos… Todos me marcaram muito.
Não foi um período muito longo no voleibol, foram dois anos a jogar e um ano a treinar juniores, mas marcou-me muito. Desde pequeno que tenho uma ligação forte ao SCC e será para sempre, por isso fiquei muito contente com os feitos do voleibol. Seguia sempre, mesmo quando estava na Grécia. Ia à página da Federação saber resultados. A visibilidade tornou-se maior, mas antes já seguia, quando era apenas no site da federação, porque a Gazeta saía na semana seguinte. É difícil seguir de longe o que se passa…
GC – Já nos pode adiantar alguma coisa relativamente ao futuro?
RS – Agora vem aí uma semana de férias, tranquilo. Em termos profissionais não sei o que aí vem, nem estou preocupado. Quero desfrutar e estar junto da minha família. Passou a parte profissional, conquistámos o que conquistámos e agora vem a parte pessoal e familiar. Quero agora conquistar esse outro europeu que é recuperar o tempo perdido com a família.
São onze anos de trabalho, nunca me preocupei com nenhum contrato, com ter ou não clube. A minha formação é educação física – com especialização em futebol -, mas fui professor de educação física e gostei do que fiz. Se um dia tiver de sair do futebol, vou dar aulas outra vez, ou outra coisa qualquer. O futuro não me preocupa, deixo que Deus me encaminhe.
Isaque Vicente
ivicente@gazetadascaldas.pt
Joel Ribeiro
jribeiro@gazetadascaldas.pt