Será que as Caldas são apenas “isto”?

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Isabel Xavier
professora

Quando eu era criança (anos 60 do século XX), os meus pais gostavam de ir a Lisboa, de vez em quando, jantar a um restaurante e assistir a uma revista à portuguesa no Parque Mayer. Na adolescência, chegaram mesmo a levar-me a um espetáculo desses mas, como é habitual nessa faixa etária, o meu gosto não coincidiu com o dos meus pais, e eu não repeti a experiência.
Uma das coisas de que me lembro quando os meus pais regressavam dessas incursões à capital, era o entusiasmo resultante do facto de as Caldas serem sistematicamente invocadas nos espetáculos de revista. Como é sabido, vigorava uma espécie de código para ludibriar a censura ou exame prévio, no qual as alusões a Santo António significavam que se estavam a referir a Salazar e as alusões às Caldas referiam-se, implicitamente, ao falo característico da cerâmica caldense e a todo o universo de temas que o mesmo pode suscitar de forma mais ou menos velada.
Os meus pais sempre me pareceram orgulhosos desse feito, ou seja, que as Caldas fossem tão lembradas e que servissem de modo tão ardiloso para ludibriar a censura. No entanto, em minha casa nunca vi nenhum desses artefatos, mesmo vivendo numa zona da cidade onde havia muitas lojas de faiança, muito frequentadas pelos excursionistas que se dirigiam às Caldas, a fim de os adquirir de forma mais ou menos disfarçada. Perpassava por todas essas práticas uma sensação de interdito, de estar a infringir uma qualquer regra. Naquele tempo, os falos não eram expostos publicamente como hoje em dia, quando tudo é visível, sem interdito, sem censura.
Serve esta introdução para contextualizar o programa de televisão “Terra Nossa”, de César Mourão, que passou no sábado passado (4 de setembro) na SIC, dedicado às Caldas da Rainha. Compreendendo que se trata de um programa de entretenimento e concordando que não seria possível ou sequer desejável não fazer referência à loiça erótica das Caldas, foi-me penoso assistir a um programa que se arrastou de tão repetitivo, sempre em redor do mesmo tema. Foi assim que ficámos a saber que, para além da cerâmica, há produtos que nasceram dessa tradição, da doçaria aos bordados. Sem pretender ofender nenhum dos envolvidos, todos temos de ganhar a vida, pareceu-me que perpassava por tudo aquilo mais tristeza do que alegria.
Os tempos agora são outros, já não há interdito neste tema, a brejeirice que dele emana está gasta de tão repisada, sempre nos mesmos termos, sempre no mesmo esquema de abordagem. A não ser a pescaria na lagoa de Óbidos, nenhum outro assunto foi tratado no programa. As imagens do parque e da praça da fruta, grandiosas, belíssimas, contrastaram com o conteúdo do programa.
E a mim só me dá vontade de perguntar: então não há mais nada nas Caldas? Não há outros temas e outras personagens, como o Zé Povinho por exemplo, para animar um programa humorístico? Será que as Caldas são apenas “isto”? ■