Em 25 de Março de 1974, a revista espanhola Cambio16 surpreende com uma capa colorida de vermelho e verde com o título !Ay Portugal! Exclusiva: cambio-16 en caldas da rainha.
Nove dias antes ocorrera o 16 de Março no RI5 e precisamente um mês depois dar-se-ia o 25 de Abril. Nas páginas interiores, a reportagem escrita pelo jornalista José Oneto relata precisamente a intentona das Caldas da Rainha e prevê que dentro em breve haverá uma revolução. O jornalista falou com as pessoas certas no momento e refere os actores também do momento: Marcelo Caetano, Spínola, Kaúlza da Arriga. E contextualiza muito bem a situação social, política e militar da época.
Mas como é que numa época sem telemóveis nem Internet um jornalista espanhol (na verdade foram cinco os jornalistas estrangeiros vindos de Madrid que chegam às Caldas da Rainha e assistem ao cerco do quartel) está informado que algo se vai passar na cidade? Esse é um dos aspectos mais extraordinários da entrevista que Pepe Oneto concedeu à Gazeta das Caldas: a sua fonte foi um advogado madrileno, opositor a Franco, que tinha sido amigo íntimo de Humberto Delgado e que tinha relações com a oposição portuguesa, em particular com os militares.
Já sobre quem terá sido a fonte desse advogado, é algo que não conseguimos apurar, apesar de vários contactos que tentámos com militares que foram do MFA.
Nesta entrevista, Pepe Oneto não só relata o que recorda do cerco ao quartel das Caldas, como insere este episódio e a revolução de Abril nos ventos de mudança que por então se começam a sentir em Espanha. O 16 de Março ocorre três meses depois da morte de Carrero Blanco (o delfim do ditador Franco que é assassinado em circunstâncias envoltas em polémica) e que é substituído por Arias Navarro, que ensaia uma pequena abertura na sociedade espanhola, a qual será bem aproveitada pela imprensa espanhola.
É isso que conta José Oneto à Gazeta das Caldas numa entrevista que decorreu num clube de um bairro burguês dos arredores de Madrid, onde o jornalista, hoje com 76 anos, vive. “Na casa onde viveu o Adolfo Suarez. Comprei-a”, diz, rindo-se.
“Disseram-me que havia
movimentos militares em Portugal,
que devíamos ir para Lisboa,
mas que primeiro passássemos
por Caldas das Rainha”
GAZETA DAS CALDAS – Assinas esta reportagem precisamente quando acabas de entrar na Cambio16.
JOSÉ ONETO – É verdade. Eu chego à Cambio16 em finais de Fevereiro de 1974. Este artigo sai em 25 de Março. A Cambio16 é publicada numa época em que acaba de ser assassinado o Carrero Blanco, que era o presidente e futuro sucessor de Franco, e se faz uma pequena abertura no regime quando é Carlos Arias Navarro que substitui Carrero Blanco.
GC – E a julgar pelo que escreves sobre a situação portuguesa, soubeste aproveitar muito bem essa abertura.
JO – Claro.
GC – Mas já não havia censura em Espanha nessa altura?
JO – Havia… Enfim, tínhamos que depositar dez exemplares no Ministério da Informação e Turismo antes de a publicação sair a público.
GC – Entregavam a revista já acabada. Não um artigo de cada vez?
JO – Efectivamente.
GC – Então, se tinham que cortar alguma coisa, cortavam a revista toda e não um artigo em especial?
JO – Sim. Nessa prévia entrega no Ministério, o governo podia actuar e podia sequestrar a publicação. Claro que chegou a haver vários sequestros da publicação. A Cambio16 teve uma primeira etapa e uma segunda etapa. A segunda começa neste período de 74.
Nessa altura era preciso uma autorização do governo para que a marca de uma revista pudesse sair para a rua. Então a Cambio esteve muito tempo paralisada sem poder sair porque tinha conotações políticas. No ano anterior, com a morte de Carrero Blanco, em Dezembro de 1973, esteve praticamente todo o ano paralisada.
A palavra Cambio [mudança] não foi autorizada porque tinha conotações políticas e então passou a chamar-se Cambio16 porque foram 16 os accionistas fundadores. Mas logo acusaram-nos de que era uma manobra porque 16 é metade de 32 e 32 é um símbolo maçónico… Enfim, desde o início que nos tinham sob o ponto de mira. Em 20 Dezembro de 1973 morre Carrero Blanco. Era o almirante a quem Franco havia designado como seu sucessor. Era um homem muito conservador e era o único em quem o caudillo se fiava.
GC – Mas foi assassinado e isso constituiu uma oportunidade para a abertura política.
JO – A ETA fá-lo voar em circunstâncias muito raras. Ele morre precisamente no dia anterior à chegada de Kissinger a Madrid. E matam-no a escassos 100 metros da embaixada norte-americana. Ele saía da igreja quando lhe fizeram explodir o carro. Ora, não se explica que durante oito meses tenham estado a escavar um túnel a 100 metros da embaixada dos Estados Unidos para lá colocarem uma bomba, quando se sabia que vinha aí o Kissinger! Nessas circunstâncias, aquela zona deveria estar muito vigiada, especialmente nos dois meses prévios à chegada de Kissinger, que ainda por cima ficou alojado na própria embaixada.
Este atentado teve circunstâncias tão raras que o homem encarregado de proteger Carrero Blanco, que era o ministro do Interior, Carlos Arias Navarro, ascendeu a presidente do governo. Arias então inicia um discurso supostamente de abertura, em que começa uma nova etapa e nós, na Cambio16, apostamos nessa abertura.
GC – Precisamente quando entras na revista.
JO – Eu entro na Cambio16 nessa altura. Eu sempre tinha dito que queria ser repórter, um contador de histórias. Mais tarde fui durante 10 anos director da Cambio16, 10 anos director do El Tiempo, quatro anos director dos serviços de televisão de Antena 3… Fiz de tudo, mas creio que sobretudo um jornalista é um contador de histórias e a prova é que os melhores romancistas em língua castelhana são dois jornalistas (que ainda por cima passaram por agências de notícias) – Vargas Llosa e Gabriel García Márquez. Dois típicos contadores de histórias.
Por isso, eu, apesar de ser director, quis sempre sair, queria escrever, queria fazer reportagens. Eu cobri a longa doença de Franco, a coroação do rei, cobri todas as viagens dos presidentes do governo ao estrangeiro, as viagens de Juan Carlos e Sofia, eu fiz 120 viagens com os reis. Ou seja, além de dirigir a revista ou o jornal, fazia questão em escrever.
GC – Quando entras como director da Cambio16?
JO – No ano seguinte, em 1975, pouco antes da morte de Franco.
GC – No 16 de Março, como soubeste que se passaria algo em Portugal e nas Caldas da Rainha?
JO – Tivemos informação de que havia um grande mal estar no Exército português, sobretudo porque tinham começado a regressar muitos militares de Angola e Moçambique que sabiam que havia aí uma situação mais ou menos crítica. Havia então um íntimo amigo de Humberto Delgado… Humberto Delgado esteve muito ligado ao partido de Henrique Tierno Galván, o Partido Socialista Popular (que mais tarde se une ao PSOE). Este contacto, que era um advogado que se chamava Mariano Robles Romero-Robledo, também era desse partido. E é ele que nos passa uma informação dizendo para estarmos atentos porque em Portugal vai passar-se algo, que há movimentos militares e que devemos ir para Lisboa, mas antes que passemos por Caldas. Então… Enfim, ele sabe de algo e nós vamos. Robledo tinha sido amigo íntimo de Humberto Delgado e estava bastante relacionado com militares.
GC – Mas quando saíste de Madrid não sabias o que estava a acontecer nas Caldas da Rainha?
JO – Não, não sabia nada. Nós, quando saímos, só sabíamos que nos tinham dito ‘vai acontecer algo nas Caldas’. Eu fui com o Walter Haubrich, que era o correspondente do Frankfurter Allgemeine Zeitung. Nas Caldas da Rainha inteirámo-nos que havia um levantamento militar. Que o quartel estava cercado, que as pessoas estavam na rua. Então fomos ao quartel e aquilo estava tomado pela polícia, GNR e pelo Exército.
GC – Então a tua fonte, o advogado, acertou em cheio?
JO – Efectivamente.
“Não se notava que aquilo fosse uma revolução ou uma rebelião. Transcorria tudo num ambiente bastante relaxado.”
GC – E se não se tivesse passado nada, o que fariam nas Caldas da Rainha nesse dia?
JO – Nada. Não saberíamos. Aconselharam-nos a passar por Caldas e de facto produziu-se essa intentona. Eu creio que aquilo não tinha nenhum tipo de relação com o 25 de Abril, mas demonstrava que havia um grande mal estar dentro do Exército. E quando muitos interpretaram que o que aconteceu nas Caldas, por ser uma reacção ao livro de Spínola “Portugal e o Futuro”, que o general estava metido na intentona, o que seria lógico, eu não fiz essa interpretação. Penso que era porque havia muita gente a regressar das colónias e que via que aquilo estava perdido, que era uma sangria económica e de vítimas.
GC – Foste ao quartel?
JO – Sim.
GC – Deixaram-te passar?
JO – Não. Não conseguimos chegar ao portão de entrada, mas estivemos perto. Foram muito amáveis. Tão pouco se notava que aquilo fosse uma revolução ou uma rebelião. Transcorria tudo num ambiente bastante relaxado. É o que eu recordo do comportamento das pessoas e das forças públicas. Quando dissemos que éramos jornalistas, trataram-nos bem, mas, claro, disseram-nos que não podíamos passar, que havia um incidente, que estava quase a terminar, que era uma situação que estava quase a ser controlada e, efectivamente, ao final da tarde estava controlada.
GC – Viste os militares detidos saírem do quartel?
JO – Não. Inteirámo-nos mais tarde que tinha havido uns 200 detidos, mas isso foi dentro do esquema de secretismo do Exército. Nessa noite ficámos em Caldas e no dia seguinte fomos a Lisboa. Dormimos mais duas noites em Lisboa, mas o ambiente já parecia totalmente controlado.
GC – Na tua reportagem dizes que falaste com um capitão de Santarém que estava no cerco. Recordas-te do nome?
JO – Não.
GC – Salgueiro Maia. Poderia ser?
JO – Não, não creio… Não me lembro.
GC – Mas esse capitão era um dos que estava nas tropas de cerco?
JO – Sim, sim. Mas já não consigo situar-me em que momento falei com ele.
GC – Hoje sabemos que as tropas de cerco não disparariam contra os que estavam dentro do quartel…
JO – Claro. Por isso eu digo que o ambiente era muito relaxado. A mim o que realmente me surpreendeu é que não havia nenhum sintoma de enfrentamento, de tensão.
GC – O único que estava mais nervoso era o comandante do cerco, o brigadeiro Pedro Serrano. Confirmas?
JO – Sim, sim. Os outros estavam tranquilos. Aquilo parecia uma conversa entre colegas. E até a mim me surpreendeu que pudéssemos chegar tão perto da porta do quartel e falar com os que estavam a controlar a entrada.
GC – Só não conseguiste falar com os que estavam dentro. Cá fora falaste com quem quiseste?
JO – Claro. Fiquei admirado. Até pensei que isto pode ser próprio do carácter português, que é muito pacífico. Se há uma intentona militar, um tentativa de revolução, o normal é que se note a tensão, não é? Mas não. Inclusivamente as pessoas na rua contemplavam o que se estava a passar como se fosse um espectáculo, como se estivessem a ver um filme.
GC – Isso é muito português, sim…
JO – Sim, recordo-me que as pessoas levavam as cadeiras para a rua. Asseguro-te que estavam a ver aquilo como se fosse um filme.
GC – Na tua reportagem falas de um oficial com quem te encontraste em Lisboa, em Alfama.
JO – Sim, mas não me lembro do nome. É que eu tenho o mau costume de não guardar as minhas notas. Deveria guardá-las, mas…
GC – Quem eram os outros jornalistas estrangeiros que assistiram ao cerco do quartel das Caldas?
JO – Eram o Walter Haubrich, do Frankfurter Allgemeine Zeitung, o José António Novaes, correspondente do Le Monde, o Philip Carvallo da France Press e um correspondente da Associeted Press, um norte-americano, mas não me lembro do nome.
GC – Tu viajaste com o Walter Huabrich. E os outros três como souberam dos acontecimentos?
JO – Porque eu também os avisei. Eu na altura também tinha começado a colaborar com a Agência France Press e eu conto ao Philip Carvallo o que me tinha contado o Mariano Robledo e ele comenta com os outros.
GC – Vocês cinco eram os únicos jornalistas estrangeiros que estavam nas Caldas?
JO – Sim, os únicos. Pelo menos que eu saiba.
GC – E jornalistas portugueses viste alguns?
JO – Haveria alguns, mas não os conhecia. Não sei…
GC – Na altura não havia auto-estradas entre Madrid e Portugal. Tardaste muito tempo em chegar a Caldas da Rainha. Recordas-te do percurso?
JO – Tardei muitíssimo tempo, sim. Mas só me recordo que entrámos em Badajoz e que não passei por Lisboa. Fui directo a Caldas da Rainha.
“Romero Robledo tinha muito boas informações. Ele tinha sido amigo de Humberto Delgado.”
GC – E confiavas tanto em Mariano Robledo que foste, às cegas, para um “pueblo” que não conhecias, só porque ele te disse que iria lá acontecer algo?
JO – Sim, sim. Para mim o Romero Robledo era um tipo que tinha muito boas informações. Ele tinha sido amigo de Humberto Delgado e até foi advogado dele, ou da família dele quando ele morreu, porque, agora me recordo, o cadáver de Humberto Delgado foi encontrado em território espanhol. Logo, para mim, ele era uma fonte muito fiável. Ele tinha sido advogado de presos políticos e sempre me tinha dado boas informações. Não há dúvida que ele era uma fonte informativa muito credível. E era militante do partido de Tierno Galván, o Partido Socialista Popular, que naquela época estava na clandestinidade. Romero era claramente um membro destacado da oposição naquela época.
GC – Onde é que dormiram nas Caldas da Rainha?
JO – Por estas fotos que me mostras, foi neste [Hotel Lisbonense]. Sim… Recordo-me desse parque aí em frente.
GC – E no dia seguinte foste para Lisboa?
JO – Sim e fiquei lá dois dias.
GC – E logo na semana seguinte – numa época em que não havia computadores, Internet e os jornais e revistas não se faziam como hoje – sai a tua revista com uma extensa reportagem sobre Portugal. Quando a escreveste?
JO – Escrevi em Espanha quando regressei.
GC – E a escolha para que este tema fosse primeira página da revista foi pacífico?
JO – Sim, sobretudo porque eu tinha a sensação de que o tema tinha tido pouca repercussão em Espanha. É verdade que Espanha sempre tinha estado muito distanciada e de costas para Portugal, mas parecia-me uma informação de extrema importância aquilo que se estava a passar em Portugal. É que aqui, naquela época, nenhum jornal deu absolutamente nada de informação sobre uma coisa que me parecia importante – uma crise política no Exército português num momento que também era um momento chave para Espanha. Porque isto [o 16 de Março] poderia ter tido repercussões importantes para o meu país.
Do ponto de vista político, havia uma ligação entre o regime de Franco e o regime de Salazar e qualquer perturbação que ocorresse no país vizinho iria ter repercussões em Espanha.
GC – Como acabou por ter.
JO – Claro, como afinal acabou por ter, com o 25 de Abril. O maior receio das autoridades de Espanha era o contágio que se poderia produzir no Exército com o que se estava a passar em Portugal.
GC – Ou seja, esta reportagem da Cambio16 não foi nada do agrado do regime espanhol?
JO – Não, nada, nada. Absolutamente. Houve reacções ao artigo e telefonemas do Ministério da Informação e Turismo para a revista. Queriam saber de onde vinham aquelas informações, que pretendíamos com aquilo, porque é que estávamos a noticiar com este destaque todo um conflito em Portugal como se fosse um problema espanhol. Só que isso era mesmo verdade. No nosso entendimento, o conflito português era também um assunto de política interna espanhola. Ou seja, aquela reportagem sobre Portugal não era informação de política internacional. Era informação que, embora tenha ocorrido em Portugal, tinha a ver com a política interna espanhola.
GC – E foi isso que vocês responderam?
JO – Exactamente. Enfim, a chamada foi feita ao presidente do Conselho de Administração da Cambio16.
No debate que nós tivemos na redacção para decidir publicarmos este assunto na capa da revista, evidenciámos o valor que isto tinha enquanto política interior espanhola e não um mero assunto de um país estrangeiro que tinha um problema com o seu exército. Havia aí concomitância entre o Exército espanhol e o Exército português que nos levava a valorizar a história e a levá-la à primeira página. E a prova é que acertámos. Muitos dos factos que prevíamos na reportagem acabaram por produzir-se mais tarde, no 25 de Abril.
GC – A verdade é que acertaste em praticamente tudo naquilo que escreveste. Dizes sobre o 16 de Março que “desta vez não triunfou, mas o processo é imparável”. Falaste com as pessoas certas da altura.
JO – Sim. E no 25 de Abril, quando estala a revolução, com a canção da Grândola Vila Morena e isso, fui imediatamente para Lisboa. E outra vez com o Walter Haubrich. Aliás, fomos os últimos a passar a fronteira de Badajoz antes dela fechar. Eu sei isso sabes como? Porque umas horas depois… Enfim, aquilo do 25 de Abril foi uma coisa maravilhosa… Eu entrei no quartel-general da PIDE! Quando as pessoas entram e começam a abrir armários e sacar papéis… aquilo foi uma confusão… Eu entro com o Haubrich e vou a umas máquinas de escrever que estavam ali, automáticas…
GC – Telexes?
JO – Isso! Uns telexes!… E o último telex da fronteira dizia “entram dois jornalistas stop um espanhol José Oneto e um alemão Walter Haubrich”. É o último telex que eu vejo vindo da fronteira de Badajoz porque fecham-na logo a seguir, depois de termos passado. Fomos os últimos a passar a fronteira.
“O 25 de Abril foi dos eventos jornalísticos que eu vivi com mais intensidade em toda a minha vida e que eu recordo como se fosse ontem”
GC – Como viveste o 25 de Abril em Lisboa?
JO – Eu vivi aquela jornada… Aquilo foi maravilhoso! Quando as pessoas invadem o quartel general da PIDE, enfim, aquilo já era uma autêntica revolução. Foi fantástico. As ruas cheias de gente, os soldados com flores nas metralhadoras… Foi uma história realmente maravilhosa. Eu nunca pensei que poderia vivê-la. Aquilo parecia… Enfim, gente feliz, alegre, beijando os militares, os militares a pôr as flores nas espingardas. Foi emocionante. Foi um dos eventos jornalísticos que eu vivi com mais intensidade em toda a minha vida e que eu recordo como se fosse ontem.
Mais tarde entrevistei o director da PIDE na prisão e com isso fiz uma primeira página que titulei com O Terror.
P – E deixaram-te entrar em Caxias?
JO – Sim. Eu consigo a entrevista devido a uma familiaridade do nome porque digo que sou familiar espanhol de um oficial chamado Neto. E consegui entrar e estive com o director da PIDE.
GC – E porque foste entrevistar o director da PIDE quando havia tanta gente para entrevistar do lado dos revolucionários?
JO – Não sei, mas uma vez que estava preso, era uma fonte que tinha muito interesse.
GC – O Pepe Oneto de então, com 29 anos, era um jovem jornalista e activista de esquerda ou era, essencialmente, um jornalista?
JO – Era um jovem de esquerda. Como quase todos. Eu militava no FLP (Frente de Libertação Popular) que era conhecido como FELIPE. Mas era clandestino. E muito mais perseguido que o Partido Comunista. Desse partido saíram grande parte dos dirigentes do PSOE. Muitos ministros do PSOE passaram pelo FELIPE. Naquela época eu estava na universidade, estudava Economia. Mas não acabei o curso. Estudei quatro anos e picos, faltava-me já muito pouco para acabar, mas dediquei-me ao jornalismo.
GC – E o FLP era um partido radical, tinha acções violentas?
JO – Não. Mas havia um sector que sim. Houve uma cisão no FELIPE do qual saiu um grupo trotskista. Era a época dos movimentos populares na América Latina e esse grupo pensava que se poderia montar uma guerrilha na Serra de Guadarrama, aqui ao lado.
GC – Hoje com 76 anos fizeste ao longo da vida a típica passagem das esquerdas revolucionárias para a direita…?
JO – Não. Eu continuo a votar nos socialistas. Neste momento a minha posição é a de votante socialista crítico. Mas continuo mais apaixonado pelo jornalismo do que pela política. Eu tive a sorte de ter estado em sítios chave em momentos chave. Conheci praticamente toda a classe política espanhola. Eu sou amigo do Pinto Balsemão. Eu fiz a primeira entrevista ao príncipe Filipe quando ele tinha 13 anos. Recordo-me que lhe ofereci um brinquedo, um avião telecomandado.
GC – Se tivesses que escrever hoje uma reportagem igualmente prospectiva sobre Portugal e Espanha como fizeste em 1974, que escreverias?
JO – Para mim, a situação recente de Portugal surpreendeu-me. Foi um dos países mais castigado pela crise (até teve que ser intervencionado). E que um partido de esquerda agora tenha conseguido o que nenhum partido de esquerda conseguiu, é uma surpresa. Ainda por cima, com uma política bastante sensata, que pressupôs, ainda assim, bastantes sacrifícios para os portugueses. Mas sair da crise quando ninguém pensava que um partido de esquerda pudesse contribuir para sair da crise!… Ao contrário da Grécia que, por enquanto, ainda não conseguiu levantar a cabeça.
Aliás, Portugal, que esteve muito mal, saiu da crise em melhores condições do que a própria Espanha. Ou seja, Portugal sofreu muito mais a crise do que a Espanha e, no entanto, com um governo de esquerda superou a crise. Muita gente aqui pensou, quando os socialistas portugueses foram para o governo, que iriam estragar tudo…
GC – E também pensaste isso?
JO – Sim. Porque estava em linha com o que acontecia na Europa. Mas, surpreendentemente, começou-se a reconhecer que a fórmula funciona.
GC – Em 1974 acertaste nas tuas previsões. E hoje, o que opinas para Portugal e Espanha no futuro?
JO – Bom, eu gostaria mais de ter Portugal do que a Catalunha (risos). Há um grande desconhecimento em Espanha sobre Portugal. O que é surpreendente, pois é um país que temos mesmo ao lado. Mas também há uma grande simpatia entre os dois países. O que lamento é o desconhecimento que aqui existe da sua cultura, da sua literatura. O único autor que aqui entrou e é muito admirado é José Saramago. Mas não se conhece muito mais da literatura portuguesa. Enfim… olha, creio que foi um erro a paralisação do TGV Madrid – Lisboa. Espanha continua de costas voltadas para Portugal.
GC– Crês que sim? Tal como há 40 anos?
JO – Creio que menos, mas sim. Não há um mínimo de interesse numa aproximação com Portugal. Há coisas que se repercutem muito na economia portuguesa, desde as centrais nucleares, que é um tema que não se fala muito…
GC – De Almaraz fala-se bastante.
JO – Em Portugal sim. Aqui não. Eu acompanho a imprensa portuguesa e vi que o tema de Almaraz tem sido um tema quente em Portugal, mas aqui é como se não existisse. E é um assunto que afecta Espanha e Portugal.
GC – E sobre a Catalunha, como vês esse problema?
JO – Esse tema está envenenado e tem uma saída muito difícil. Vão ter que seguir todos os processos abertos por rebelião, sedição.
GC – Já não há marcha atrás para o diálogo?
JO – É muito complicado. A Catalunha está dividida em duas: espanholistas e independentistas. Estamos num impasse que eu não sei quanto vai durar, mas ou se muda a Constituição, ou isto não tem saída. O que se passa é que os independentistas sabem que se se fizer um referendo em toda a Espanha sobre a independência de Catalunha, ganhará o “não”. E é verdade que os catalães com sentido comum já viram que, do ponto de vista económico, a independência é inviável, é um desastre. Já se ressentiu o turismo, há 3500 empresas que se foram embora da Catalunha, aumentou o desemprego, diminuiu o consumo interno… Há uma sensação de crise económica que não tem correspondência no resto do país e há sobretudo um medo com o que pode acontecer. Então, com tudo isso… Eu digo: oxalá se chegue a um acordo com Portugal e se faça uma Federação Ibérica.
GC – É isso que pensas? Federação Ibérica?
JO – É o que muita gente pensa. Como as nações estão a desaparecer e vamos no sentido de uma Europa muito mais aberta, não seria mais razoável neste momento uma Federação Ibérica? E a Catalunha só nos traz problemas. Este tema pôs-se agora em cima da mesa em alguns sectores na sequência da crise catalã. Muitos dizem que muito melhor nos iria um acordo promissor hispano-português e não ter o conflito da Catalunha onde há metade da população que não quer estar em Espanha, que não se considera espanhola.
No País Basco, onde houve o problema do terrorismo, as pessoas não têm a urgência de uma Euskadi independente. E aí sim, foi um problema mais grave do que o catalão.
Quem eram os cinco jornalistas de Madrid que cobriram o 16 de Março
José Oneto é provavelmente o único sobrevivente visto que três já morreram e não se consegue saber o nome do correspondente da Associated Press que também se deslocou às Caldas.
Walter Haubrich (1935-2015) foi durante 33 anos correspondente em Madrid do Frankfurter Allgemeine Zeitung e é nessa qualidade que acompanha José Oneto na sua viagem a Portugal. Acaba por publicar primeiro que o seu colega espanhol porque trabalhava para um diário e Oneto para uma revista semanal. Logo no dia 18 de Março de 1974 o Frankfurter publica um primeiro artigo titulado “Tensão e incerteza em Portugal” seguido de um subtítulo “Oficiais protestam contra a exoneração de Spínola”. Referindo-se ao golpe das Caldas, refere que o general não teve nada a ver com este levantamento, mas também não o condenou.
Haubrich escreve ainda que a sublevação do RI5 “não teve como objetivo fazer um golpe de Estado, mas essencialmente opôr-se à exoneração de Spínola”.
E conta que a coluna das Caldas e as tropas leais ao regime (GNR) estiveram frente a frente à entrada de Lisboa durante algum tempo, sem que houvesse disparos.
No dia seguinte, o jornalista alemão publica novo artigo, desta vez com uma análise da situação política portuguesa, muito centrado no general Spínola que é, claramente, o homem do momento.
Mas no dia 20 de Março volta a falar das Caldas da Rainha. O artigo questiona os motivos da guerra colonial e se Caetano se consegue manter no poder. E revisita os factos do 16 de Março com um tom irónico: “300 soldados que não queriam morrer em vão em África marcham de Caldas para Lisboa. Um motim – mas um motim à moda portuguesa. Isto significa que decorreu tudo mais suavemente do que seria normal em qualquer outro lugar do mundo. E com boas maneiras. Quando os insurrectos se aproximaram de Lisboa e aí se depararam com as tropas leais ao regime, não houve tiros. Foram, com a cortesia típica dos portugueses, persuadidos de que seria uma boa ideia regressar ao seu quartel. E eles assim fizeram”
O Correspondente do Le Monde
José António Novaes (1925-1993) é correspondente do Le Monde e muito conhecido em Espanha pelos seus artigos desabridos e corajosos, que denunciavam a ditadura franquista. Por isso foi várias vezes detido e Manuel Fraga, que foi ministro da Informação e Turismo entre 1962 e 1969, chegou a retirar-lhe a carteira profissional de jornalista.
Segundo José Oneto, terá sido Philip Carvallo quem o informou do que iria ocorrer nas Caldas da Rainha, mas não seria de estranhar que fosse a mesma fonte de Oneto – o advogado Mariano Robles Romero-Robledo – que tivesse avisado José António Novaes. É que nesse mesmo ano (1974) aparece nas bancas o livro “Humberto Delgado – Asesinato de un Heróe” escrito em co-autoria entre Romero-Robledo e António Novaes. Os dois homens eram amigos. Não se conhece o mês da publicação, mas é provável que em Março de 1974 os dois já estivessem a trabalhar juntos no livro. E se o advogado estava tão bem informado do que se passavam em Portugal, não deixaria de avisar o seu amigo jornalista.
José António Novaes estava ligado à História recente de Espanha e à oposição ao franquismo de forma quase irremediável. O seu pai, o português Joaquim Novais Teixeira, tinha sido chefe do Gabinete de Imprensa do último Presidente da Segunda República Espanhola, Manuel Azaña. Cercado pelos franquistas, já na fase final da Guerra Civil, fugiu de Valencia para Barcelona e conheceu depois o exílio em França (Marselha e Paris). A invasão alemã obriga-o a fugir para Portugal onde, devido aos seus ideais democráticos, é obrigado a exilar-se novamente, desta vez no Brasil. Regressaria, após a guerra, a Paris, onde morreu.
Philip Carvallo (1941-2012) era correspondente da agência France Press e foi também um dos cinco oriundos de Madrid que esteve em frente ao quartel das Caldas no dia 16 de Março de 1974. Poucos anos depois deixaria o jornalismo e fez carreira na União Francesa das Indústrias do Petróleo.
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