
O Golpe das Caldas não conseguiu derrubar o regime, mas foi capaz de atrair a imprensa internacional para a agitação que já se vivia em Portugal em 1974, mais concretamente, nas forças armadas. Esta foi a ideia defendida por José Rebelo no colóquio “25 de Abril: o que ficou por dizer”, numa organização conjunta da Gazeta das Caldas, Comissão das Comemorações do 25 de Abril e Associação de Estudos Comunicação e Jornalismo, na noite de 19 de Abril no pequeno auditório do CCC. Quase 200 pessoas, entre as quais 30 militares da ESE, ouviram também José Pedro Castanheira partilhar alguns dos artigos censurados no Expresso, Adelino Gomes contar a história da sua cobertura noticiosa da Revolução dos Cravos e Avelino Rodrigues defender a saída da ‘sombra’ do papel desempenhado por Vasco Lourenço no 25 de Abril, com quem conviveu no RI5.
José Rebelo, jornalista e professor jubilado do ISCTE, em Lisboa, trabalhava no departamento de pesquisa do Le Monde (em França) em 1974, quando se deu o Golpe das Caldas e o 25 de Abril. “Foi o 16 de Março que chamou a atenção da imprensa internacional para Portugal”, defendeu o orador. Aquele era o momento propício para confirmar a existência de descontentamento nas forças armadas com a questão colonial, de tensões caetanistas e salazaristas, de movimentos contra o aumento do custo de vida e de uma nova consciência política que resultara das crises estudantis.
Sobre o Golpe das Caldas deu o exemplo do artigo do Le Monde que foi metaforicamente interpretado e que se intitulava: “Quem travará os leões?”, numa alusão a um jogo de futebol entre o Sporting e o Porto. Aí lia-se que “muitos nortenhos avançaram no fim-de-semana até Lisboa sonhando com uma vitória, mas retiraram-se desiludidos com a derrota”.
Já no 25 de Abril toda a primeira página do Le Monde era sobre o país à beira-mar plantado. Sob a manchete “Com o apoio popular as Forças Armadas tomaram o poder em Portugal”, um editorial e um artigo que abordava as causas do descontentamento dos militares. Na primeira página desse dia a única notícia que não era sobre Portugal era um título no canto inferior direito onde se dava conta da evolução das eleições presidenciais em França, na altura também a decorrerem na sequência da morte do presidente Pompidou.
Lisboa estava no centro das atenções europeias. “Era o fórum da imprensa internacional e o foco da inteligência europeia”, esclareceu José Rebelo.
Esta atenção mediática prende-se, segundo o jornalista, pela “ausência de grandes causas em França”, porque a Guerra do Vietname tinha terminado, no Chile Allende já tinha caído e o Maio de 68 já estava esquecido. “A relação entre o povo e o MFA [Movimento das Forças Armadas] preenchia essa lacuna”.
Analisando a cobertura mediática ao acontecimento, José Rebelo afirmou que “é curioso perceber que a História, do ponto de vista mediático se faz numa figura de retórica”. Daí que “os rigores da clandestinidade estão expressos na altivez de Álvaro Cunhal, as delícias da democracia na bonomia de Mário Soares, o compromisso possível com o passado no monóculo de Spínola, a efervescência do presente na verbosidade do Otelo de Saraiva de Carvalho”.
José Rebelo recorda-se que, quando veio de França para Portugal já como jornalista do Le Monde, em Janeiro de 1975, os colegas estrangeiros agrupavam-se nos hotéis por nacionalidade e que ali constituíam autênticas redacções onde partilhavam as informações. “Os acontecimentos eram tantos que ninguém tinha a possibilidade de cobrir tudo”, daí que cada um partilhasse o que sabia com os colegas do mesmo país e depois, em pé de igualdade em relação às informações, cada um escrevia o seu texto segundo as suas orientações ideológico-redactoriais.
José Rebelo contou que Portugal se manteve “sob atenção mediática europeia, de tal forma que no Verão de 75 o mínimo acontecimento neste país estava na primeira página do Le Monde, relegando temas como carnificinas para as páginas interiores”.
Mas “a efervescência desaparece” e “do interesse decrescente passa-se para o desinteresse crescente e Portugal vai saindo das páginas do Le Monde”.
Até 1991 José Rebelo produziu cerca de 1100 artigos e, admite, que lhe resta “uma nostalgia extraordinária” que espera resolver com a edição de um livro com 80 artigos, contextualizados num texto de uma historiadora francesa, que irá publicar em breve.
“ERA PRECISO SER CEGO PARA NÃO PERCEBER QUE VINHA AÍ UMA REVOLUÇÃO”
Esta ideia de que a imprensa nacional não noticiava, ou não podia noticiar, alguns dos assuntos de maior interesse para os portugueses por estar sujeita à Censura, por contraponto com a liberdade dos media estrangeiros, foi corroborada por José Pedro Castanheira, jornalista do Expresso há 44 anos. O massacre do Wiriamu, em Moçambique, é um bom exemplo.
Em Dezembro de 72, uma força de comandos portugueses matou cerca de 400 civis, sobretudo mulheres e crianças naquela localidade rural, mas o episódio só foi inicialmente denunciado pelo jornal britânico The Times. Em Portugal, este foi o tema relacionado com a Guerra Colonial que mais vezes foi visado pela censura.
Este foi um dos vários casos relatados por José Pedro Castanheira, que ao longo do colóquio deu a conhecer o trabalho de investigação que resultou mais tarde no livro “O que a censura cortou” (2009). Nesta pesquisa analisou um por um todos os cortes que a censura fez às primeiras 58 edições do Expresso, semanário criado em Janeiro de 1973. Ao todo seis robustas e pesadas pastas de arquivo.
Ficou apenas por examinar uma sétima pasta, correspondente às provas de censura das 10 últimas edições do semanário até à data da revolução. Alguém a fez desaparecer e, até hoje, ninguém se acusou.
“Seria talvez a pasta com o arquivo mais suculento e interessante para este colóquio, pois, a nível cronológico, era a que fazia referência aos acontecimentos mais próximos do 25 de Abril, incluindo o golpe do 16 de Março”, explicou o jornalista.
Das 58 edições analisadas, José Pedro Castanheira realça: 1584 artigos censurados, 3795 cortes de censura e 388 artigos cortados na íntegra, que nunca chegaram sequer a ver a luz das páginas do jornal. Em média, por cada número semanal do Expresso, sete textos eram totalmente cortados. Mas até anúncios e as palavras cruzadas eram censurados.
As lacunas informativas eram “aos pontapés” e, ao mesmo tempo, um claro sinal de como havia uma revolução em marcha. “Bastaria que as chefias militares ou que os censores fossem colecionando os cortes ao Expresso para terem uma plena noção da agitação cada vez maior que se alastrava nas Forças Armadas”, referiu o convidado, frisando que “era preciso ser completamente cego para não perceber”.
E os exemplos são vários. Logo na primeira edição do Expresso, em Janeiro de 1973, o lápis azul da censura não deixou passar a notícia sobre a célebre vigília na Capela do Rato, no dia 31 de Dezembro de 1972, organizada para discutir a situação da Guerra Colonial e ao mesmo tempo assinalar o Dia Mundial da Paz. Cerca de 70 pessoas foram detidas pelas forças de choque da PSP, mas a opinião pública não soube.
Acontecimentos relacionados com a Guerra Colonial eram constantemente perseguidos pela Comissão de Exame Prévio. Da Guiné, por exemplo, quiseram cortar a voz aos jornalistas que escreveram sobre o assassinato de Amílcar Cabral, líder do PAIGC (Partido Africano para a Independência de Guiné e Cabo-Verde), em Conacri, à porta de sua casa. Ou sobre Aristides Pereira, seu sucessor partidário e que foi depois do 25 de Abril o primeiro Presidente da República da Guiné.
Em Junho de 1973, mais um exemplo. É cortada na íntegra uma notícia que dá conta que desde Março desse ano já haviam sido abatidos 25 aviões da Força Aérea Portuguesa pelos mísseis do PAIGC (fornecidos pela União Soviética). “Os derrubes eram tão frequentes que se gerou uma espécie de greve entre os pilotos, que se recusavam a levantar voo pela sua sobrevivência”, explicou José Pedro Castanheira.
Ironicamente, também houve declarações do próprio Presidente do Conselho, Marcelo Caetano, que foram alvo da censura. Como aquela que disse em resposta à BBC e que o Expresso nunca pôde publicar: “A independência é uma solução que só os povos podem resolver. Não pode ser dada por um político. Não posso ser eu a dar a independência”.
Até rankings dos livros mais vendidos eram escrutinados de uma ponta à outra. Em 19 de Maio de 1973, a censura riscou do top 10 “O Caso da Capela do Rato no Supremo Tribunal Administrativo”, o livro mais vendido em Portugal na altura, escrito por Jorge Sampaio e Francisco Sousa Tavares, entre outros advogados. E do sexto lugar retirou “Redescoberta da França”, um ensaio sobre o movimento francês de 1968 da autoria do jornalista e escritor Urbano Tavares Rodrigues. Conclusão: não se publicou nenhuma lista, porque o jornal não quis apresentar resultados adulterados.
Outro exemplo dado pelo jornalista foi a censura aos artigos que davam conta da contestação dos militares ao decreto de lei 353/73, que muitos defendem que esteve na origem da criação do Movimento dos Capitães. No seguimento da publicação deste diploma, o Expresso passou a incluir uma nova rubrica – “Coluna Militar” – onde acompanhou o descontentamento crescente dos militares. Sem estranheza, também esta secção foi amplamente visada.
Mário Soares, exilado em Paris, quase não conseguia escrever para o Expresso. Só a sua assinatura era um alerta ao lápis azul, à semelhança de Álvaro Cunhal. Mas também o actual Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, na época um jovem jornalista do Expresso, foi muitas vezes escrutinado.
Filho da revolução, José Pedro Castanheira só entrou para o mundo do jornalismo após o 25 de Abril. Nunca escreveu sob censura, mas tem-se dedicado ao longo destes anos à investigação daquilo que ficou por dizer. “Tenho conhecimento, por exemplo, e escrevi sobre isso, que nas vésperas do 25 de Abril – e ao contrário do que sempre se disse – houve reuniões de negociação entre o Estado Português, o PAIGC e o MPLA, em que se discutiu a independência destas colónias”, deu conta.
A CENSURA ATÉ AO ÚLTIMO MINUTO
Dado o adiantado da hora, Adelino Gomes partilhou apenas como foi narrar a revolução para a Rádio Renascença, mas não sem antes salientar a coragem dos jornais que no dia 25 publicaram as primeiras edições sem serem visadas pela censura. O jornalista estava proibido de trabalhar para essa rádio, mas no dia da revolução foi entrevistado por uma equipa da Renascença e acabou por se associar à reportagem passando a narrar o que se passava na coluna liderada por Salgueiro Maia.
Entre as 10h30 e as 19h00 contava o que via e alguém entregava as bobines de 40 minutos na rádio e trazia outras vazias. Quando terminou, no momento em que Marcello Caetano e dois ministros saem presos na chaimite, dirigiu-se à rádio.
“Pensava que o país estava a ouvir a reportagem com um desfasamento de 40 minutos e que tínhamos sido os primeiros e únicos a transmiti-lo quase em directo”, contou Adelino Gomes, confessando que esperava ser recebido como um herói. “Ninguém nos bateu palmas”, contou. “Fui mandado para a sala de visitas e depois disseram-me para sair porque estava proibido de estar ali”, continuou.
O director da rádio, o Padre Américo, dizia que o regime ainda não tinha caído, porque tinha ouvido um comunicado a anunciar que o Presidente da República estava na sua residência. Conclusão: “a reportagem passou apenas no dia 27 de Abril de 1974”.
VASCO LOURENÇO FOI O HERÓI QUE ACEITOU FICAR NA SOMBRA
Avelino Rodrigues defendeu que “Vasco Lourenço teve um papel fundamental na revolução que não está esclarecido” e que “foi o principal organizador da conspiração do Movimento dos Capitães”, mas que “aceitou ficar na sombra”.
Salientou “como um conflito de personalidades pode ter uma importância determinante numa revolução” e acusou Spínola de ter “empalmado a revolução” e alterado o programa do MFA. “Queria uma democracia musculada, podia consentir a democracia desde que fosse ele a mandar”, apontou.
Avelino Rodrigues afirmou que muito do que ficou por esclarecer foi propositado e deu exemplos: a ligação de Vasco Gonçalves com o PCP, ou a falha de Jaime Neves (que mais tarde se redimiu) ao não se ter infiltrado no quartel de Cavalaria 7. A decisão de omitir algumas verdades esteve relacionada com o medo “de beliscar a unidade precária do MFA”.
O também antigo capelão do RI-5 notou que “a História não se faz sob os acontecimentos, faz-se muito mais tarde, quando já morreram quase todos, mas nós não estávamos a fazer a História dos que já tinham morrido”.
Falou da ligação da França de De Gaulle ao regime salazarista na questão do armamento das tropas coloniais e questionou “como foram adquiridas as primeiras armas para Angola, quem as vendeu, quem as pagou” mas não concretizou mais do que isto: uma grande empresa portuguesa que mantinha volumosos negócios em Angola.
Na abertura do colóquio, moderado por José Luiz de Almeida Silva, director da Gazeta das Caldas, Tinta Ferreira, presidente da Câmara, salientou o interesse do tema da sessão e disse que “é um elemento importante” do programa de comemorações do 25 de Abril. Já Maria da Conceição Pereira, vereadora da Cultura que encerrou o debate, destacou as Caldas como “terra de democracia que fez acontecer o 25 de Abril”.
Esta iniciativa teve o apoio da Câmara Municipal e das Uniões das Freguesias urbanas das Caldas da Rainha.
TESTEMUNHOS
“A revolução foi uma alegria”
No período aberto ao debate, talvez pelo adiantado da hora, ninguém quis participar. Ainda assim, falámos com a caldense Maria Corado, que considerou a sessão “um bocadinho monótona”, apesar de “ter trazido alguns pormenores que passaram e que agora são curiosidades”.
Quando soube do 25 de Abril, com perto de 18 anos, estava em casa a preparar-se para ir para a escola (do Magistério Primário das Caldas). “Ouvi na rádio dizer que era para as pessoas ficarem em casa e eu pensei: qual ficar em casa? Isto deve estar relacionado com o 1º de Maio que era dali a uns dias e que gerava sempre uma certa tensão, então não liguei nenhuma”, contou.
Só quando chegou às aulas é que percebeu o que se tinha passado. Naquele tempo “apesar de ser menina, já tinha sido despertada para certas coisas, então quando a revolução aconteceu foi uma alegria”.
“Há coisas que não se podem dizer”
Já José Conceição achou “interessante que com o passar do tempo se vão levantando pontinhas de coisas, até porque há coisas que não se podem dizer, não se sabem ou estão por esclarecer”. Em termos de lacunas preenchidas por esta sessão disse que “são tantas”, sem, contudo, salientar uma.
No 25 de Abril estava a cumprir serviço militar na Força Aérea, nas Oficinas Gerais de Material Aeronáutico em Alverca. De manhã quando utilizava o transporte e viu, numa fábrica metalomecânica, o pessoal de trabalho todo sentado no muro percebeu que se passava algo estranho.
Quando chegou à oficina soube que havia uma revolução com intervenção dos militares e a primeira sensação foi de medo porque uns anos antes tinha havido um golpe militar no Chile e também já tinha havido um na Grécia.
“Quando se fala em militares a minha geração tinha algum receio e o meu primeiro medo foi que fosse um golpe dos ultras”, porque se falava na possibilidade de militares ultra de direita tentarem tomar o poder.
Ao longo do dia foi recebendo alguma informação, mas só no dia seguinte tomou consciência da realidade. “Com a catadupa das coisas não tive grande percepção, estávamos fechados, era um regime militar a informação não chegava, a rádio não era famosa e os boatos sobrepunham-se à informação”.