A coluna das Caldas que marchou sozinha para fazer História

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Às quatro da manhã do dia 16 de Março de 1974 uma coluna militar composta por 30 oficiais e cerca de 300 sargentos e praças, cruza a porta de armas do quartel das Caldas da Rainha e marcha sobre Lisboa com o objectivo de ocupar o aeroporto, de acordo com a ordem de operações que tinham recebido da comissão militar do Movimento das Forças Armadas. Pouco antes, um pequeno grupo de oficiais tinha detido o comandante e o segundo-comandante e tomado o controlo do então Regimento de Infantaria 5 (RI5).
A coluna caldense, composta por 14 Berliets e alguns Unimogues e GMCs pensa que está atrasada em relação a outras unidades militares do país que a essa hora também estariam a marchar sobre Lisboa. Mas descobre, à entrada de Lisboa, que está sozinha. Os quartéis de Lamego, Santarém, Mafra e Vendas Novas, que era suposto terem aderido a este golpe, acabaram por não se sublevar e Caldas da Rainha tinha ficado só.
A três quilómetros da entrada de Lisboa, apesar de o regime não ter preparado a defesa do capital, a coluna volta para trás, entrando no quartel pelas 10h00 da manhã, fechando os seus portões e preparando-se para ser cercada pelas tropas – alegadamente – fiéis ao regime.
Pouco depois o quartel caldense fica sitiado por forças do RI7 de Leiria, da Escola Prática de Cavalaria de Santarém (a mesma que iria ter um papel decisivo no 25 de Abril), e também da Policia Móvel e GNR, para além, claro, de elementos da PIDE.
Em inferioridade numérica, os militares cercados procuram capitalizar o tempo a seu favor, na esperança de que esta tentativa de golpe tivesse repercussão nacional e internacional (na verdade viria a tê-la).
O comandante das forças de cerco, um brigadeiro de 76 anos, ameaça fazer fogo se os revoltosos não se renderem e corta-lhes a água, luz e telefones. As horas passam, para espanto da população caldense que, discretamente, com o receio próprio de quem vive num país em ditadura, circunda o quartel na expectativa de notícias.
Apesar de estarem seguros que jamais os seus camaradas disparariam contra eles – como mais  tarde confirmaram à Gazeta das Caldas alguns dos oficiais mais destacados do movimento – os militares do RI5 compreendem que a situação lhes era desfavorável e que não havia mais nada a fazer.
Pelas 17h00 rendem-se e as forças de cerco entram no RI5. Os oficiais são reunidos na biblioteca do quartel, onde ouvem um sermão do brigadeiro. Os oficiais mais comprometidos com a tentativa de revolução assumem as suas responsabilidades e procuram ilibar os seus camaradas dizendo que estes apenas cumpriram ordens.
Mas de pouco serviu porque são enviados para o quartel RALIS, em Lisboa, de onde alguns partiriam para o presídio militar da Trafaria.
Entretanto, sargentos e praças são detidos no refeitório das praças e recambiados para Santa Margarida.
O golpe das Caldas falhara. Nessa noite, Marcelo Caetano, anunciaria na televisão que “reina a calma em todo o país”.
Uma “calma” que perdurou os 40 dias exactos que mediaram até à madrugada de 25 de Abril de 1974. Afinal, a prisão dos militares do RI5 acabaria por acelerar os preparativos para a revolução que viria a ser dos cravos.

Carlos Cipriano
cc@gazetadascaldas.pt

8 COMENTÁRIOS

  1. Todo este acontecimento deveria ser parte integral da história Portuguesa na fase “25 de Abril” pq como descreve Carlos Cipriano, foi um acontecimento marcante para a Cidade e também na revolta Politiva que aconteceu a 25 de Abril seguinte. A nossa juventude não sabe nem lhes passa pela cabeça o que foi o 16 de Março Militarmente e a sua importância na Revolução dos Cravos.

  2. Algum comentário a esta opinião pessoal?

    APENAS PARA CLARIFICAR UNS PORMENORES
    Bem, acabei de ler esta notícia e tal como esperava, está um pouco fantasiosa… O meu pai era o segundo comandante do à época RI5, e portanto como devem calcular, tenho a versão em primeira mão do que aconteceu. Em primeiro lugar, ninguém deteve o segundo comandante do quartel, pela razão bastante simples, que o mesmo se encontrava em casa. Também nós filhas, nesse dia não fomos à escola e toda a família esteve mais ou menos de prevenção em casa. Então e porque terá o meu pai tomado esta decisão de ficar em casa com a família, em vez de se meter ao caminho com os seus bravos camaradas, decisão essa que lhe valeu mais tarde a exoneração, por alegadamente estar contra o famoso golpe de estado falhado? Bem, a resposta também é simples: é que a desorganização era tal que os militares do 16 de Março fecharam o comandante no quarto, com o telefone ao lado, e ligadinho da silva, que é como quem diz, ainda eles nem tinham saído do quartel, já o comandante estava a ligar para todo o lado a dar parte do sucedido. Claro que à entrada de Lisboa não só estavam sozinhos, como também tiveram uma recepção inesperada. Foi esta razão prosaica que levou o meu pai a ficar em casa com a família em vez de marchar sobre Lisboa: achou as intenções boas mas a execução bastante longe da perfeição e até perigosa, como mais tarde se veio a confirmar. Logo após o 25 de Abril, no meio de mais algumas injustiçazitas, exoneraram o meu progenitor, alegando que era anti-revolução. Só muitos anos mais tarde a verdade foi reposta, a exoneração anulada, o posto restituído e a pensão de alimentos da família também. Pena que isso tivesse acontecido já depois de ele morrer. Ora bem, e porque estou eu a escrever isto agora? Porque penso que é altura de clarificar estas coisas. O meu pai foi um militar de carreira como muitos saberão, fez as várias guerras em que a ditadura se envolveu e não só cumpriu o seu dever, como era conhecido como um dos oficiais com maior taxa de sobrevivência entre as tropas que comandava. Era um tipo duro mas os seus soldados confiavam nele cegamente e sabiam que se o seguissem tinham bem mais hipóteses de sair de lá vivos. Nunca se interessou por política. Dizia muito acertadamente, que a carreira militar não se coaduna com actividade política, visto que os militares devem obedecer ao chefe primeiro da nação e defende-la sempre que necessário. Com o tempo, esta noção do que é um militar tem-se vindo a perder e já nem ouço falar destes conceitos… Isto não quer dizer que não concordasse que os capitães que não eram do quadro, arriscavam o coiro tal como os outros e portanto, deviam ter as mesmas remunerações e regalias. Pois, é que foi esta a verdadeira razão do 16 de Março. A reivindicação, por parte dos milicianos, de remunerações e regalias iguais às auferidas pelo pessoal do quadro. Nada de tão heróico, nem com base em ideologias políticas revolucionarias. Eles limitaram-se a pedir os que pedem hoje os polícias e GNR, quando querem subsídios de risco, acomodações decentes, etc. Portanto e em resumo, o meu pai não participou no 16 de Março, apenas porque achou que toda a organização da coisa estava de pernas para o ar, e previu (acertadamente) que eles iriam acabar todos presos. Assim, deixou-se ficar sossegadinho em casa, a ver em que paravam as modas e por isso foi exonerado e acabou morrer antes de lhe fazerem justiça. Aqui fica a minha homenagem ao meu pai, grande líder das tropas que comandou pela vida fora, grande chefe de família e acima de tudo, grande pai e marido.
    Maria João Sacadura e Serrano

  3. O 2º Comandante era o Tenente Coronel Farinha Tavares e não o Major Serrano, que efectivamente só no dia seguinte compareceu no Quartel, à hora habitual e não tomou parte na acção.

  4. Ao que pude apurar em conversas sequenciais com diversos oficiais que se encontravam no então RI%, a 15 e a 16 de Março de 1974, três majores foram individualmente junto do comandante interino (até ao dia 15, altura em que se apresentou um novel comandante da unidade) solicitar “ver a família”. faziam-no por estarem em prevenção rigorosa há dias e, nesse contexto, desejos de verem as respectivas mulheres e filhos menores. O tenente-coronel Farinha Tavares autorizou tais deslocações a casa, a título particular, pois as ordens que recebera do brigadeiro Pedro Serrano iam no sengtido inverso.
    Os três majores sabiam bem o que se passava e, em vez de o comunicarem com a frontalidade que o momento exigia, optaram por ter um pé na revolução (saindo do quartel) e outro na situação (alegando então, até ao dia 25 de Abril, desconhecimento da situação).
    Esta é a verdade dos factos, a mais pura realidade. Tivesse o golpe pretoriano redundado em fracasso e, certamente, os ditos majores seguiriam alegremente para o Ultramar com a missão de cumprirem Além-Mar o desígnio lusitano.
    A História dá muitas voltas e, nas suas cisuras, encontramos agora heróis que se encontravam, no momento em que a coluna saía para Lisboa, de pijama e de chinelos.
    Viva Portugal!

    Mário Silva

  5. A História tem sido feita de mitos, de invídia e de estulta ambição. Quem não deseja ter o seu nome perpetuado numa lápide ou no bronze? Até aí é compreensível pois o ser humano é, por natureza, vaidoso. No entanto, a bem da verdade e do rigor, urge referir que por diversas vezes encontrei-me, ainda nos anos 70, com os majores Morgado, Serrano e Monroy, que haviam servido no RI5. Também conversei com alguns capitães e subalternos. Só não logrei conversar com o comandante interiono, até 15 de Março, Farinha Tavares, altura em que se apresentou à porta de armas um novo comandante da unidade, por o mesmo desejar manter-se alheado das querelas que minavam a verdade dos factos.
    De tudo o que apurei resulta a certeza de que os três majores, sabedores do golpe, como o poderá confirmar Luz Varela, estiveram dos dois lados da barricada. Como oficiais superiores deviam lealdade absoluta ao comando e à instituição castrense. Nada disseram superiromente como, também, cônscios da boa-fé de Farinha Tavares, oficial distinto e aprumado, foram pedindo para irem ás suas casas verem as famílias já que se encontravam de prevenção rigorosa há cerca de uma semana. Farinha Tavares, que se dava mnuito bem com o brigadeiro Pedro Serrano, com o qual servira na década de 50 na mesma unidade lisboeta, daí tendo resultado excelentes relações que levaram este último a propôr superiormente que aquele ficasse a comandar o Curso de Sargentos Milicianos, então sediado no RI5, ia deixando os três majores sairem por curtos períodos. estes alegavam sempre, conforme consta dos relatórios que foram feitos pelos coroneis inquiridores do golpe (entre 17 de Março e 25 de Abril), que apenas desejavam visitar as famílias e que estavam do lado do regime.
    Tendo recolhido ás respectivas casas na noite de 15 de Março, sem que o devessem ter feito em sobreposição, contrariando assim as ordens de Farinha Tavares, ficaram paulativamente á espera do êxito do golpe. Mal se aperceberam que este redundara em fracasso e que Pedro Serrano partira de Tomar para repor a ordem e se encontrar com Farinha Tavares, seu amigo desde os anos 50 e com o qual ainda se cruzara Além-Mar, volveram à unidade.
    É claro que, perante esta situação, foram menorizados pelos coroneis inquiridores, até ao dia 25 de Abril, e pelos capitães vitoriosos, pós 25 de Abril. Em suma, não foram peixe nem carne, nem dia nem noite, nem água nem terra. Procuraram ficar com um olho no cigano e outro na burra, como o referiu, poucos antes de ter morrido, Pedro Serrano.
    Mário Silva referiu no comentário precedente que existem herois desta história que estavam de pijama e de chinelos. É bem verdade…Mouzinho de Albuquerque, que lutara em Chaimite, para fugir a tantos herois teve que se suicidar. Enquanto ia a enterrar os ditos herois folgavam e dançavam no Paço.

  6. No início dos anos 90 tive a grata oportunidade de, em Oeiras, conversar com o brigadeiro Pedro Alexandre Brum do Canto e Castro Serrano, ex-2º comandante da Região Militar de Tomar até ao dia 25 de Abril de 1974. Este oficial-general, de elevadas qualidades, estivera envolvido nos acontecimentos que fizeram abortar a intentona do 16 de Março.
    Segundo me confidenciou inúmeras vezes, lendo excertos de um livro manuscrito em que punha a nu a sua versão sobre o biénio 1973 e 1974. Por esses excertos pude verificar que nutria um desdém incalculável pelos três majores colocados na unidade e que, na sua opinião, jamais deveriam ter ascendido ao posto seguinte. Serrano nutria particular carinho pelo tenente-coronel Ernesto Farinha Tavares, que por sua iniciativa convidara para comandar, durante dois anos, ficando assim com o estatuto de inamovivildade, o curso de sargentos milicianos. Este oficial acumulava as funções de comandante do CSM com as de, desde 1973, comandante interino da unidade. A 15 de Março, precisamente na véspera da revolta dos capitães, apresentara-se na unidade um novo comandante, tenente-coronel Horácio Lopes Rodrigues, o qual teria como funções libertar Farinha Tavares do desgaste que estava a acusar em face da duplicidade de funções. Ainda que não antipatizasse com Lopes Rodrigues, cujo carácter era completamente diverso do seu antecessor, Serrano não nutria por si qualquer sentimento de estima.
    Ao que parece, a ligação de Serrano a Farinha Tavares vinha dos anos 50 em que estiveram colocados em Caçadores 5 e no Colégio Militar. A ligação entre ambos era de tal forma consistente que, quando este foi colocado no RI5, ido da Guiné, aquele o seleccionou para uma deslocação de âmbito militar a França, Bélgica e Reino Unido. A 13 de Março de 1974, ainda antes da apresentação de Lopes Rodrigues na unidade, Serrano deslocou-se expressamente às Caldas da Rainha para receber de Farinha Tavares informações pertinentes sobre o moral dos oficiais capitães e subalternos. O então 2º Comandante da Região Militar de Tomar, que nutria um absoluto desprezo e desconfiança absoluta pelos três majores, também tinha grandes reticências face a alguns capitães. Não tive a oportunidade de reter na memória os nomes que, lendo do seu livro manuscrito, Serrano me confidenciou. Recordo-me que referiu que, em situações normais, muitos deles jamais teriam ingressado na Academia Militar (aproveitou o momento para sublinhar as diferenças abismais entre os oficiais que ingressavam na Escola do Exército e aqueles que, muito mais tarde, vieram a fazê-lo na Academia Militar).
    A 15 de Março, quando Lopes Rodrigues se apresentou nas Caldas da Rainha, recebendo das mãos de Farinha Tavares o comando da unidade, então com cinco companhias do primeiro ciclo do Curso de Sargentos Milicianos, outra de serviços e apenas uma operacional, Serrano telefonou separadamente aos dois. A Lopes Rodrigues recordou-lhe que deveria ter pulso na unidade já que parte dos oficiais não lhe mereciam qualquer respeito e procuravam destabilizar a estrutura castrense. A Farinha Tavares prontificou-se, porquanto os dois anos de inamovibilidade se encontravam prestes a terminar, que novas funções de responsabilidade o aguardariam na Região Militar de Angola (Setembro / Outubro de 1974).
    Os três oficiais (Serrano, Farinha Tavares e Lopes Rodrigues) foram, ao contrário dos três majores, completamente apanhados de surpresa com o golpe do dia 16. O primeiro a falecer foi Farinha Tavares. Uns anos mais tarde foi Serrano. O último foi Lopes Rodrigues.
    O livro do ex-2º Comandante da Região Militar de Tomar, que nunca vi editado, certamente poderia constituir um marco fundamental para contrapor às diferentes e pouco coincidentes versões dos capitães de Março (cada um destes procura, à sua maneira, ter a paternidade do golpe mas recusa quaisquer responsabilidades no que viria a passar-se, em consequência, nos teatros de operações da Guiné, Angola e Moçambique, a par do Comando Territorial Independente de Timor). Serrano era solteiro pois casara-se não apenas com a instituição castrense como, também, com a pátria. Esta era fundamento maior da sua vida, o projecto que amara e pelo qual se batera de forma apaixonada e em desapego de sacrifícios. Talvez algum familiar, mormente sobrinhos, conserve tal documento consigo. Se assim for, se o mesmo não tiver sido inutilizado por alguma mão sinistra que dele se apropriou ainda com o cadáver quente, seria certamente importante dá-lo à estampa. Talvez os familiares dos três majores já falecidos ou alguns desses capitães golpistas, hoje generais a saltitarem entre a Associação 25 de Abril e a loja maçónica da esquina, entre as Messes de Caxias e de Évora, entre a Sociedade de Geografia (cujos objectivos fundacionais ajudaram a destruir) e a Escola Básica da localidade onde nasceram, não os retrate como desejariam. Mas a História não se faz apenas de um lado do muro. Qualquer criança sabe, por mais desastrada que seja, que qualquer murete, muro ou muralha, tem duas faces. Ambas verdadeiras e genuinas. Ver e crer apenas numa recorda tempos que os ditos oficiais tentam esquecer (não obstante nele tenham feito juramento de bandeira, isto é, de fidelidade; nada mudou a não ser, porventura, na farda – os dourados e a espada dos bailes da Gomes Freire, em Lisboa, deram lugar ao camuflado e à G-3, facto que amedrontou muitos, imensos…).