João Bonifácio Serra está ligado à Gazeta das Caldas desde tenra idade e recorda, em entrevista, alguns episódios marcantes da ligação ao jornal
A propósito do 95º aniversário da Gazeta, o historiador João Bonifácio Serra passa em revista a história do jornal, assumindo uma relação afetiva com o que considera ser uma instituição caldense.
Quando tomou contacto com a Gazeta?
A minha relação com a Gazeta dá-se em dois períodos. Inicialmente, entre os meus 14 anos e até ir para a faculdade em Lisboa, em 1967. E, depois, entre 1984 e 1996, que foi um período igualmente intenso e que considero uma década prodigiosa, em que tudo se fez e aconteceu nas Caldas, desde grandes controvérsias a grandes realizações. Em casa dos meus pais e dos meus avós, na aldeia do Carvalhal Benfeito, os jornais eram muito disputados, até porque se vivia num mundo muito fechado. Recebíamos a Gazeta, o meu pai era correspondente de O Século e o meu avô era natural do Fundão e assinava o Jornal do Fundão. A minha avó não sabia escrever, mas sabia ler, portanto o dia de chegada dos jornais era celebrado com grande interesse. Habituei-me, por isso, a disputar os jornais, antes que o meu avô ou a minha avó os capturassem. Percebi que o meu pai começou a escrever na Gazeta em 1935, aos 18 anos, mas descobri textos do meu avô na Gazeta na década de 1920 sobre temas rurais. Nos anos 1940 encontrei, ainda, textos de um tio, que não conheci, pelo que a relação familiar com a Gazeta era extensa.
E quando começa a escrever no jornal?
Aos 14 anos, mas antes escrevi no Jornal do Fundão, pois concorri a uns concursos de contos e até ganhei um prémio. Tinha um tio materno, César Pratas, que era escritor e me desafiou a publicar alguns textos. A partir daí, entendi que tinha legitimidade para também escrever na Gazeta. Comecei por acompanhar o meu pai, que escrevia sobre temas de desenvolvimento rural nas reportagens que fazia para o jornal. Ao perceber que eu tinha boa memória e recordava-me daquilo que as pessoas diziam nos eventos, começou a levar-me e a utilizar os meus apontamentos… Depois, a partir dos 15 anos, fiz de tudo um pouco na Gazeta. Reportagens, rubricas, co-dirigi um suplemento literário, o Auditório, representava o jornal em acontecimentos de natureza cultural. E tinha um cartão da Gazeta, que me permitia ir ao cinema…
Historiador diz que cresceu em termos intelectuais ao trabalhar na Gazeta, sobretudo entre os 15 e os 18 anos
Foi um período marcante…
Posso dizer que cresci intelectualmente ao trabalhar na Gazeta e isto corresponde a um período particularmente curioso do jornal, que se tinha transformado em bissemanário. Estamos em 1963 e o jornal saía às terças e aos sábados, com um novo diretor, Carlos Manuel Saudade e Silva, que já tinha sido subdiretor.
Quem era Saudade e Silva?
Era um homem com finíssimo sentido de humor, cáustico, escrevia muito bem e era advogado, com escritório na Praça da República. A Gazeta tinha uma sede, mas para mim a sede era o escritório do diretor, que, na minha leitura, tinha uma mágoa com a Gazeta e com as Caldas. Creio que ele ambicionou ter uma carreira política, que não teve, embora tenha feito parte de uma geração que, na década de 1930, ganhou as eleições para a Câmara, conseguiu obter o estatuto de cidade para a vila das Caldas, fez o Museu Malhoa, o primeiro Plano de Urbanização, fez a estátua à rainha, colocou Bordalo como uma imagem das Caldas e dotou a cidade de um conjunto de símbolos marcantes do século XX. E esta geração precisou da Gazeta para fazer isto, pois era um órgão regionalista. Só que em 1936 chega o Estado Novo puro e duro e alguns destes caldenses, que ainda vinham do tempo de Sidónio Pais, são afastados. Havia alguma desconfiança por parte do Estado Novo relativamente a estas personalidades. A Gazeta torna-se, então, um órgão do Estado Novo e não tinha capilaridade social. De tal maneira que o jornal desapareceu em 1946 e 1947. Era um momento em que a única cidade do distrito, além de Leiria, não tinha um jornal. Em 1948, Júlio Lopes compra o título e nomeia João Botelho Moniz como diretor. Há, anos mais tarde, um acontecimento marcante para as elites das Caldas: em 1958 é nomeado presidente da Câmara o leiriense Fernando Pais de Almeida e Silva. A cidade entra em polvorosa e a Gazeta começa a assumir-se como jornal da oposição. É nomeado um novo presidente da Câmara e Saudade e Silva ascende a diretor. Mas quando digo que ele tinha uma mágoa é porque nunca foi reconhecido como diretor. Por causa da censura, ele foi diretor interino durante mais de uma década…
Porque enfrentou a censura…
Conto apenas este episódio para que se perceba a personalidade dele. Há um dia em que ele me chama ao escritório, para me informar que se iria demitir da direção. Tinha 17 anos e nem sabia bem as consequências daquilo, mas ele diz-me que eu iria ficar à frente do jornal. Fiquei muito espantado e respondi-lhe que não tinha sequer idade para o poder fazer, ao que me disse que isso não interessava, a censura apenas precisava de um nome. Bom, fui diretor por um dia…
Vai estudar para Lisboa e continua interessado nos jornais?
Na minha geração, e num país tão fechado, trabalhar nos jornais era muito interessante. Enquanto fiz o curso, escrevi para O Século, colaborei na Flama, na Vida Mundial e concorri para o lugar de correspondente da Associated Press. Ganhei o concurso, só que fui colocado em Castelo Branco para dar aulas e tive de recusar ser jornalista. Mas com a Gazeta sempre mantive a proximidade. Há um segundo período, que vivi intensamente, que vai de 1984 a 1996, quando fui para a Presidência da República. Aquilo que me aproximou do jornal em 1984 foi as comemorações do centenário do Raul Proença, porque a Gazeta estava empenhada nessa celebração. Logo a seguir, em 1985, assinala-se o quinto centenário da criação do hospital e também aí a Gazeta esteve muito empenhada. Ajudei a escrever as reportagens e, a partir daí, estreitou-se muito a minha relação com a Gazeta e com o diretor do jornal. A Gazeta assume grandes bandeiras nessa década, como a criação do Cencal, da ESAD ou do Museu da Cerâmica. Chegámos a ter na Gazeta uma revista de cultura, muito bonita, e inúmeras iniciativas. Considero que essa foi uma década prodigiosa nas Caldas. Hoje fala-se na cidade criativa, mas Caldas já era, efetivamente, uma cidade das artes e da cultura. Outra iniciativa em que me envolvi foi no lançamento do primeiro curso de Jornalista Regional em 1986, que decorreu no CENCAL ainda antes da criação do CENJOR – Centro de Formação de Jornalistas. O Curso foi idealizado por José Luiz de Almeida Silva. Trouxemos às Caldas um conjunto notável de jornalistas como Jorge Almeida Fernandes, Mário Mesquita, José Júdice, Adelino Gomes, Alexandre Manuel, Carlos Pinhão, Diana Andringa, Eduarda Dionísio, Emídio Rangel, António Jorge Branco, Manuel Múrias, Zé d’Almeida, Rui Ochoa, que fizeram história no jornalismo português, assim como da vinda do presidente do Conselho de Imprensa, Jorge Mendonça Torres. Deve ter sido a primeira vez que em Portugal se usaram os Macintosh para paginar um jornal.
“A imprensa local é uma peça central no controlo das instituições”
E escreveu com frequência no jornal.
A partir de 1984, tive rubricas de opinião no jornal, que normalmente duravam um ano e que não assinava com o meu nome. Assinava com iniciais ou pseudónimos, com o propósito de diversificar a colaboração e, também, as minhas funções na escola. Tive, ainda, uma rubrica chamada Continuação, um conjunto de crónicas que acabou num livro, destinada aos leitores do mundo rural e que suscitou interesse. E escrevi, durante um ano, A Semana do Zé Povinho, que foi uma criação minha. Quando terminou esse ano, o diretor do jornal decidiu manter a rubrica, que ainda hoje se mantém.
Foi, também, diretor num período muito específico…
Essa foi uma circunstância mais dramática. Em setembro de 1991, o diretor da Gazeta teve um acidente e ficou impossibilitado de assegurar a edição do jornal. O chefe de redação, Carlos Cipriano, contactou-me e pediu-me ajuda para editar o jornal. Passei a vir todas as terças-feiras à Gazeta ajudar no fecho de edição, o que durou alguns meses, até o diretor estar recuperado e voltar a ocupar o lugar. Penso que, externamente, ninguém se apercebeu disso. Fundamentalmente, o meu papel nesse período foi ajudar o chefe de redação a escolher o que entrava ou ficava de fora da edição, porque havia sempre mais material do que espaço… Esse foi um período muito desafiante e, ao mesmo tempo, angustiante. As notícias do estado de saúde do José Luís nem sempre eram as mais favoráveis, mas agi sempre no pressuposto de que ele iria recuperar. Felizmente, tudo acabou bem.