Foi há 45 anos, em 11 de novembro de 1975, que foi declarada a independência de Angola, até então uma “província ultramarina” como lhe chamava o regime derrubado um ano antes, no 25 de Abril
A “jóia da coroa” do Império resvalara para o caos: perseguições aos portugueses (mesmo que nascidos em Angola), acusados de colonialistas, e uma guerra civil provocada por movimentos de libertação opostos e alimentada pela Guerra Fria. A Portugal afluem entre 1974 e 1975 milhares de “retornados” fugidos de África, muitos sem raízes no país que os acolhia e que vivia também um enorme convulsão social e política. Na ressaca da revolução, os retornados não são bem vindos para grande parte da população. Mas rapidamente se integram e hoje a maioria dos portugueses já não tem memórias desses tempos. É a propósito da independência de Angola que publicamos os testemunhos de dois caldenses nascidos em África e a quem o destino trocou as voltas levando-os a viver noutro continente. Jorge Galeão e Pet Mazarelo eram adolescentes quando chegaram às Caldas. E contam agora a sua história.
Um mangolé caldense
Jorge Galeão tinha 19 anos quando veio de Angola para Portugal, em 1974. Não se ambientou e regressou meses depois à terra onde nasceu, agarrado ao passado e recusando-se a acreditar que aquele mundo mudara. Mas o cenário de guerra em que Luanda tinha mergulhado obrigou-o a voltar definitivamente as costas a África para construir um futuro nas Caldas da Rainha. “Esta terra acolheu-me de uma forma fantástica”, resume, 45 anos depois.
Viveu uma infância feliz. Brincava nas ruas, ia a pé para a escola primária, mais tarde de motorizada para a Escola Industrial, onde tinha amigos brancos e negros. Recordar a adolescência ainda hoje lhe faz brilhar os olhos: as tardes na piscina de Alvalade, o bairro dos meninos ricos (ao qual faz questão de dizer que não pertencia), as idas às praias da Barracuda e de S. Jorge, as festas de garagem aos sábados.
Os pais, ambos das Caldas, eram funcionários públicos. O pai trabalhava nos Serviços de Economia e a mãe no Instituto do Café. Luanda era, então, uma cidade segura e, num tempo em que não havia televisão em Angola, havia o cinema, as esplanadas, a marginal, as festas.
Findo o curso de Eletricidade, matricula-se no Instituto Superior Tecnológico Industrial e é num café ali próximo que um dia ouve dizer aos amigos que “estava a haver uma revolução no Continente”.
“Eu tinha os meus amigos em Luanda. Não queria aceitar que tinha perdido aquilo tudo”
Jorge Galeão
O “Continente” era Portugal, que à data se imaginava ainda como um império que ia do Minho a Timor. Da Metrópole, conhecia bem as Caldas e o Casal do Rei, onde viviam as avós e onde passava férias de dois em dois anos.
E a revolução? “Estava totalmente fora da política e fui apanhado desprevenido. Nem tinha noção do regime em que vivia. Ouvia falar do Salazar e do Marcelo. Ouvia falar no terrorismo e que havia uma guerra, porque o meu pai uma vez foi em comissão a Teixeira de Sousa [hoje Luau] e ficámos preocupados porque era uma zona perigosa. Mas nunca tinha sequer ouvido falar no MPLA, nem na FNLA, nem em partidos políticos, nem em democracia nem em fascismo”.
Essa aprendizagem sobre o que era a política, os partidos, as ideologias fê-la da pior maneira, assistindo à forma como o ambiente social, político e militar se deteriora no país onde julgava que iria viver para sempre. Cinco meses depois do 25 de Abril, a família vem para Portugal e instala-se nas Caldas, onde estavam os avós. Mas não se adapta e regressa a Angola. Tinha 20 anos e o pai, não só não o impediu de voltar a África, como regressou também com ele, esperando que afinal as coisas melhorassem e ali pudessem reconstituir a vida perdida.
“Sempre gostei das Caldas, mas não queria viver cá. Era o clima, o frio, o ambiente diferente… eu tinha os meus amigos em Luanda. Não queria aceitar que tinha perdido aquilo tudo”, recorda.
A tentativa de retornar fracassa devido ao intensificar da guerra e o jovem tem mesmo de se conformar que o seu futuro era em Portugal. Poucos meses depois está de volta às Caldas, matricula-se no Instituto Superior de Engenharia de Lisboa (ISEL), vive num quarto alugado e várias vezes por semana apanha o comboios no Cais do Sodré para ir visitar a namorada a Carcavelos.
Dina Ruth dos Santos Borges (nome de solteira) também era “retornada”. Filha de um contabilista da Casa Inglesa. Jorge tinha tido uns namoricos na Ilha de Luanda, mas deixa-se arrebatar pela jovem estudante do liceu feminino Guiomar de Lencastre. O namoro escapa incólume à fase conturbada da revolução, da descolonização e da vinda apressada para Portugal. Juntam os trapinhos ainda em Lisboa, mas é nas Caldas que casam e passam a viver.
“A vida era muito boa [em Angola]. O clima era uma maravilha, fazia sempre bom tempo”
Pet Mazarelo
“Não acabei o curso, não tinha aptidão para ser engenheiro”, conta. Jorge acaba por obter um emprego no Banco Fonsecas & Burnay (hoje BPI) e, em paralelo, faz um curso de jornalismo e torna-se nas Caldas um conhecido homem da rádio. Primeiro na RLO, depois na Rádio Cidade, a seguir na TSF e agora na 91FM. Destaca-se pelos relatos de futebol. Hoje, reformado, com duas filhas, um filho e quatro netos, o mangolé (como se designam os naturais de Angola) sente-se sobretudo caldense. Ao ponto de até ter feito parte do executivo da Junta de Freguesia de Nossa Senhora do Pópulo, em 2010, como independente eleito pelo PSD.
A Angola voltou três vezes (1984, 1986 e 1991) porque a sogra nunca quis regressar a Portugal. Agora não disfarça um desejo incontido de voltar ao lugar onde já foi feliz. “Durante anos pensei que tinha posto uma pedra no passado, gosto muito das Caldas da Rainha e moldei-me à cidade. Mas às vezes ponho-me a pensar que gostava de ir a Luanda…”.
Em Portugal nunca sentiu o estigma do retornado. “Na verdade, não sou um retornado porque nasci lá. Sou um refugiado de guerra. O meu pai, sim, será um retornado porque retornou para Portugal”, justifica. Quando estudava no ISEL, tem presente que os estudantes vindos de África se juntavam e faziam como que um grupo à parte. “Éramos nós que nos isolávamos, não eram os portugueses de cá que nos marginalizavam”, reconhece. E recorda que havia discussões acalorados entre os seus amigos. A maior parte eram da FNLA, mas a UNITA foi ganhando adeptos. O MPLA, como partido do poder, tinha menos defensores. Em comum, todos tinham as saudades de Angola. “Não quero parecer arrogante, mas nos anos 1970 éramos mais evoluídos do que cá em Portugal. Ao nível económico e também nos costumes, na maneira de vestir mais colorida, na própria música… os álbuns de música chegavam lá primeiro do que aqui”.
Recordações de um coronel
Nasceu no Quénia, filho de pais goeses mas viveu em Angola até que uma revolução em Portugal lhe trocou as voltas e o atirou para um país que mal conhecia e para uma cidade de que nunca tinha ouvido falar – Caldas da Rainha. Pet Mazarelo estranhou o clima frio, as ruas pequenas, a sociedade mais fechada. Mas jamais abandonaria a cidade. Aqui casou, criou os filhos e aqui sempre viveu, mesmo durante as décadas em que serviu o Exército Português e fazia diariamente o trajecto Caldas-Lisboa-Caldas.
Nasceu em 1959 no Quénia, num momento em que a família estava em trânsito entre a Índia e a Angola. “A minha mãe estava grávida e o meu pai, que ia para Angola, achou que ela teria melhores condições para dar à luz no Quénia onde viviam uns tios que eram médicos. Foi assim que nasci em Nairobi. Mas com três meses vim para Angola com a minha mãe onde nos juntámos ao meu pai que vivia em Vila Salazar”, explica. Da cidade, hoje N’dalatando, tem poucas memórias, pois só lá viveu até aos 4 anos. As melhores recordações são de Carmona (hoje Uíge) para onde o pai, o médico Roque Mazarelo foi trabalhar.
“Foi em Carmona que fiz a escola primária e o liceu e onde vivi até aos 15 anos. A vida era muito boa. O clima era uma maravilha, fazia sempre bom tempo, era raro ter de vestir um pulôver, as pessoas andavam sempre na rua, de dia e de noite, até porque nem havia televisão… Só vi televisão pela primeira vez aos 17 anos quando vim para Portugal”, nota.
Numa cidade de horizontes amplos, largas avenidas ladeadas de vivendas, Pet e o irmão José, andavam de mota, namoriscavam as raparigas, iam ao cinema, que era ao ar livre, frequentavam as esplanadas e às vezes arriscavam viagens de mota pelas fazendas dos pais dos amigos, hectares e hectares de plantações de café a perder de vista. Com tantas solicitações e sede de viver, Pet Mazarelo não era um bom aluno no liceu. Passava com as notas mínimas.
Da infância e juventude felizes recorda as férias passadas em Luanda, onde frequentavam a praia na Ilha. A capital de Angola já na altura era uma grande cidade, cosmopolita, com prédios grandes que contrastavam com a pequenez das cidades do interior. A família Mazarelo ficava em casa do médico Agostinho Fernandes, com quem o pai de Pet mantinha uma grande amizade.
A notícia do 25 de Abril só chegou ao Uíge no dia seguinte. “Teve pouco impacto. Éramos miúdos, não ligámos. Mas em casa apercebi-me que o meu pai ficou muito contente. Só mais tarde vim a saber pela minha mãe que ele tinha ideias liberais e democráticas, o que o levou a ser várias vezes avisado pela Pide, que lhe telefonava lá para casa quando ele se ‘esticava” a falar demais”.
Na ressaca da revolução, os retornados não são bem vindos para grande parte da população. Mas rapidamente se integram
Voaram para Lisboa em setembro de 1976, já depois da ponte aérea, numa altura em que a maioria dos “retornados” já tinham saído de Angola. De Portugal, Pet tinha uma vaga memória – fizera o ciclo preparatório em Lisboa numa altura em que o pai veio especializar-se em Medicina Tropical e Saúde Pública na Metrópole. Os Mazarelo não tinham família em Portugal e foi o cardiologista Agostinho Fernandes que ajudou o amigo trazendo-o para as Caldas com a família. “Tinha 17 anos. Portugal pareceu-me frio, as ruas eram pequenas, estava habituado às imensidões de Angola. Vivíamos na rua Raul Proença, em frente à Gazeta e tudo me parecia muito apertada. Por isso, desde cedo gostei de ir à Foz do Arelho. Ali havia horizonte”, relembra.
O jovem, que com as reviravoltas em Angola já tinha perdido dois anos de estudos, matricula-se no “liceu” nos Pavilhões do Parque e a primeira pessoa que encontra é José Carlos Barosa, um amigo de infância, de Carmona (Uíge) que tinha vindo antes dele para Portugal.Apesar de considerar as pessoas mais fechadas e de perceber que entre os adultos havia um ressentimento contra os “retornados”, Pet Mazarelo não se queixa de discriminação. Foi bem aceite pelos colegas, divertiam-se e davam-se bem.
O miúdo pouco estudioso do Uíge agarra-se agora aos livros. Faz o propedêutico (que correspondia hoje ao 12º ano) e cursa Farmácia em Lisboa, entre 1979 e 1985. É já no final do curso que começa a namorar a mulher com quem veio a casar. Ana Maria vivia nas Caldas e também tinha vindo de Angola, do Luso (actual Luena). O pai era das Caldas, mas a mãe era alemã e foi através da embaixada alemã que teve alguns apoios à chegada a Portugal. Casam-se em 1988 e hoje têm dois filhos e uma neta.
Quando se preparar para fazer um estágio no Instituto Ricardo Jorge, é chamado para a tropa. Procura escapar-se, tenta o adiamento, mas acaba por fazer a recruta em Tavira e é colocado na Divisão de Saúde Militar, em Benfica. Ironia do destino: é convidado a ficar no Exército e acaba por seguir a carreira militar. Uma carreira que, curiosamente, é feita sempre na mesma unidade. O jovem aspirante que ali entra em 1986 passa à reserva em 2016 com o posto de coronel. Foi, aliás, na qualidade de militar que regressou uma única vez a Angola. Em 2004, integrado numa comitiva da CPLP. O que mais o impressiona é a falta de segurança, o lixo nas ruas, a pobreza. O apelo de África, contudo, não o abandona. “Todas as semanas vejo a RTP África várias vezes e acompanho a situação em Angola, agora com bastante esperança e acredito que agora com o João Lourenço as coisas vão mudar”, remata.




