Caos nas urgências deve-se às medidas tomadas nos últimos anos

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antoniocuradoA construção de um novo hospital para o Oeste – localizado não necessariamente nas Caldas mas num sítio onde melhor servir a população – foi o principal resultado do debate sobre a Saúde organizado pela Comissão de Utentes Juntos Pelo Nosso Hospital, que juntou cerca de 120 pessoas na noite de 26 de Fevereiro.
No entanto, grande parte do “debate”, que decorreu no auditório da ETEO, foi demasiado politizado e centrado nas críticas ao actual governo.
O encontro contou com a presença, entre outras pessoas, do bastonário da Ordem dos Médicos, José Manuel Silva, e do professor universitário e administrador hospitalar, Adalberto Campos Fernandes. Sobre este último, militante do PS, foi dito, por diversas vezes durante o debate, que poderia vir a ser o futuro ministro da Saúde. A própria moderadora do debate, a jornalista especializada em assuntos da Saúde, Marina Caldas, afirmou, relativamente aquele administrador hospitalar, que “estamos todos à espera que ponha em prática o que tem vindo a defender ao longo do tempo”.
O “putativo ministro da Saúde”, como lhe chamou Ana Escoval (presidente da direcção da Associação Portuguesa para o Desenvolvimento Hospitalar), também aproveitou a ocasião para defender que a região Oeste deve ter um novo hospital por “razões técnicas e de racionalidade”.

CHO É UMA FUSÃO DE INSUFICIÊNCIAS

A intervenção de António Curado, médico e membro da Comissão de Utentes, foi a mais curta entre os convidados e a última de todas, tornando-se, no entanto, a mais importante para as Caldas.
O médico disse não ser aceitável que no hospital da cidade se vivam todos os dias situações tão negativas, como o de não se poder circular nos corredores devido à grande quantidade de macas com doentes, que às vezes ficam assim durante vários dias.
“Isto acontece já há vários anos porque há falta de recursos e esta região é uma das mais carenciadas do país em termos de cuidados hospitalares públicos”, afirmou.
Na sua opinião, a fusão que se fez entre dois centros hospitalares, para criar o CHO “foi uma fusão de insuficiências e não houve ganhos em saúde para as populações”. Pelo contrário, houve uma redução do número de camas e com isso “aumentaram o número de problemas dos hospitais públicos desta região”.
António Curado denunciou que os serviços de urgências do Oeste estão sobrelotadas e que há insuficiência de equipamentos hospitalares, dispersão de recursos por diferentes pólos, e falta de camas para internamento e de uma unidade de cuidados intensivos. “Tudo isso leva a que se torne mais difícil atrair profissionais qualificados para esta região”, concluiu.
Em relação ao que é preciso fazer, o médico defendeu obras imediatas no serviço de urgências do hospital das Caldas, a realização de projecções a longo prazo e a construção de um novo hospital para a região.
“Este hospital deve ser bem estruturado e adequado para responder aos 350 mil habitantes da região Oeste”, referiu. Mais tarde, em conversa com jornalistas, António Curado admitiu a possibilidade deste edifício ser construído no concelho de Óbidos, junto a um acesso da A8 e do IP6, caso seja considerada uma localização mais central e apropriada para o acesso das pessoas que irá servir. “Primeiro é preciso definir a missão assistencial deste novo hospital”, admitindo que a escolha da localização é sempre “um imbróglio, mas tem de ser pensada para toda a região”.
Na plateia estava uma médica do hospital das Caldas, Joana Louro, que confirmou o cenário infernal do serviço de urgências. “Não há efectivamente falta de médicos, há é falta de condições para os ‘agarrar’ neste inferno que vivemos diariamente”, disse.
“Muitas vezes sou a única médica [do quadro] do hospital a trabalhar na urgência, com toda a responsabilidade clínica e de decisão organizacional que isso implica”, contou.
A médica relatou ainda a falta de monitores, de espaço, de macas e até de cadeiras para os doentes que estão à espera. “É um verdadeiro drama trabalhar ali”, concluiu.

“O que se passa nas urgências não é inesperado”

“O que se passa nas urgências não é inesperado, nem é inesperado o que se passa na Saúde. Está escrito nos livros de Economia que é fácil alguém pegar numa empresa em dificuldades, durante dois ou três anos apresentar bons resultados, mas depois vem o efeito ‘rebound’ das medidas que foram tomadas”. Foi assim que o bastonário da Ordem dos Médicos, José Manuel Silva, deu início à sua intervenção no debate, explicando que a situação que se vive actualmente é uma consequência das medidas que foram tomadas por este governo.
Na sua opinião, nenhuma das explicações que foram avançadas pelo ministro da Saúde justifica o que aconteceu. “Todos os invernos costuma haver frio”, comentou, adiantando que “não houve preparação nenhuma para os hospitais conseguirem responder porque isso implicava custos”.
Para o bastonário, a primeira razão para a actual situação deve-se à crise social em Portugal, onde a maioria dos portugueses empobreceu e a desigualdade de distribuição da riqueza aumentou. “Como adoecem mais e têm maiores dificuldades em tratarem-se, o escape das pessoas são os serviços de urgências”, explicou.
Quem mais sofre com isso são os idosos, até porque “uma grande parte vive em más condições e acaba por adoecer com mais facilidade”.
Sem resposta por parte de outros serviços, nomeadamente nos cuidados de saúde primários, acabam por ser as urgências a receber todo o afluxo de doentes que necessitam de cuidados. Depois, por falta de capacidade de resposta das urgências, surge a dificuldade de escoamento desses doentes para outros serviços e para a alta hospitalar.
Para o bastonário, em relação aos cuidados de saúde primários “houve uma dificultação na sua reforma, que era a grande aposta dos anos anteriores”.
Um dos principais problemas deve-se ao número de médicos, uma vez que “por causa de uma redução absurda do numerus clausus, que começou nos governos do professor Cavaco Silva”, há actualmente um hiato entre os mais velhos e os mais novos que “é impossível de compensar”. Isso só pode ser feito contratando os médicos mais horas ou indo buscar os que já estavam reformados, “o que o Ministério da Saúde não quis fazer”.
Para o responsável, até não há falta de médicos em Portugal. O que aconteceu é que “houve uma redução do número de horas contratadas, para poupar dinheiro”.
O bastonário denuncia mesmo que os médicos mais jovens enfrentam dificuldades para serem contratados e por isso também acabam por emigrar. É que noutros países da Europa os vencimentos dos médicos são quatro a cinco vezes superiores aos que se praticam em Portugal “onde um jovem especialista é contratado por oito euros à hora [líquidos]”. Só o ano passado emigraram 387 médicos.
No entanto, actualmente há quase 2000 internos de Medicina Geral e Familiar, que dentro de poucos anos irão permitir que todos os portugueses possam ter médico de família.
Outro problema deve-se à falta de resposta dos cuidados continuados e dos próprios lares, que são “os grandes fornecedores de doentes, descompensados e em péssimas condições, para as urgências”, afirmou.
José Manuel Silva criticou ainda a política de encerramento dos hospitais concelhios, que começou no governo anterior, “que veio desorganizar todo o sistema”. Na sua opinião, “eram hospitais baratos, que prestavam apoio de qualidade à população, com conhecimento da realidade local” e que faziam um melhor trabalho ao nível dos problemas sociais.
Há também uma grande falta de camas hospitalares no país “e mesmo assim este governo encerrou mais umas centenas de camas de internamento de agudos”. É por isso que depois os doentes ficam internados em macas nos corredores das urgências de vários estabelecimentos hospitalares, como acontece nas Caldas.
Para além disso, segundo o bastonário, também os recursos humanos nas urgências “estão abaixo dos mínimos”, ao nível dos médicos e enfermeiros.

Mais troikistas que a troika

Ana Escoval, presidente da direcção da Associação Portuguesa para o Desenvolvimento Hospitalar, salientou que acredita no Serviço Nacional de Saúde (SNS), mas concorda que “olhando para o que está a acontecer, parece que querem que ele desapareça”.
Na sua opinião, a percentagem de recursos que se afecta ao SNS “é um indicador do empenho que o país coloca na promoção da Saúde e na qualidade de vida das pessoas, mas quando esse valor se reduz algo está mal”. Ana Escoval lembra que outros países com crises financeiras protegeram os orçamentos da Saúde, “até porque sabiam que as pessoas iam empobrecer, ficar desempregadas e mais doentes, com maior necessidade de cuidados de saúde”.
Por isso é preciso pensar a reorganização do SNS para que este funcione de uma forma de resposta integrada às pessoas. “Os serviços estão desadequados para as necessidades que as pessoas têm”, concluiu.
Adalberto Campos Fernandes, actualmente docente na Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa, foi ainda mais duro nas críticas ao governo, dizendo que o memorando da troika “era um bom documento que elencava e estruturava um conjunto de intervenções que muitos de nós há muitos anos defendiam para o sistema de saúde português”, mas que nada do que era estrutural foi feito.
“Os cortes foram muito além daquilo que tinha sido contratualizado com a troika”, afirmou.
O administrador hospitalar considera que “este governo tinha legitimidade eleitoral para aplicar um programa, por exemplo, de privatização, de substituição do sistema público pelo sistema privado, tão adeptos que são, de uma forma geral, das virtudes do mercado e do que a concorrência poderia trazer ao sector da Saúde”. No entanto, acusa, “ficaram a meio da ponte, tiveram medo de atacar o Serviço Nacional de Saúde, bateram com a mão no peito a defendê-lo, mas foram, por omissão, provocando danos que, em muitos casos, serão irreparáveis”.
Com experiência na administração em hospitais públicos e privados, Adalberto Campos Fernandes defende que neste sector o mercado não resolve o problema das necessidades das pessoas e por isso o Estado tem que ter um papel de regulação activa e “tem de ser amortecedor das tendências e dos conflitos que existem no sector entre os diferentes interesses instalados”.
Dos convidados que vieram de Lisboa, Adalberto Campos Fernandes foi o único que aflorou a situação do Oeste, dizendo que esta região precisa mesmo de um hospital novo. “Isso é justificável do ponto de vista técnico e de racionalidade”, concluiu.

Profissionais e doentes: todos sofrem

Na mesa de convidados esteve Sebastião Santana, da Plataforma Lisboa Defesa do Serviço Nacional de Saúde, para falar sobre o direito dos utentes, tendo lembrado o que está escrito na Constituição Portuguesa. No entanto, foi um caldense, já no período aberto ao público, quem deu uma versão mais pessoal do papel de utente.
António Barros, que foi deputado municipal da CDU, deu a sua visão, enquanto doente oncológico, do que se passa no interior dos hospitais. “Em relação aos profissionais de saúde, é preciso de dizer que deveriam ser homenageados por ainda conseguirem trabalhar nos hospitais públicos”, afirmou.
“Esta gente que tem estado à frente deste ‘desgoverno’, quer pura e simplesmente dar cabo do Serviço Nacional de Saúde e é isso que não podemos deixar que aconteça”, considera.
Guadalupe Simões, do Sindicato dos Enfermeiros Portugueses, também concordou que nos últimos anos “houve um estrangulamento do SNS”. Na opinião da enfermeira, “não houve nenhum tipo de racionalidade nas decisões tomadas”.
Segundo Guadalupe Simões, não há estudos que demonstrem que a concentração de instituições, como aconteceu com a criação do CHO, trouxe mais eficiência aos serviços.
Criticando a subcontratação de enfermeiros, Guadalupe Simões salientou ainda o baixo valor que tem sido pago a estes profissionais.