ENTREVISTA COM O ENÓLOGO JOSÉ ANTÓNIO FONSECA – “O reforço dos apoios financeiros à exportação através da promoção da marca Portugal é o grande desafio dos vinhos portugueses”

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notícias das CaldasO enólogo bombarralense José António Fonseca, de 59 anos, recebeu recentemente um dos maiores galardões que um profissional desta área pode alcançar. Trata-se da Grande Medalha de Ouro do Concurso Mundial de Bruxelas, que é o mais importante concurso internacional de vinhos. Do Luxemburgo, onde este ano se realizou o evento (apesar da referência a Bruxelas, realiza-se anualmente em cidades diferentes), este enólogo trouxe ainda duas medalhas de ouro e três de prata.

GAZETA DAS CALDAS – A Grande Medalha de Ouro é o melhor prémio que um enólogo espera alcançar. Eram muitos a concorrer?
JOSÉ ANTÓNIO FONSECA – Sim. Este é o maior concurso de vinhos do mundo, onde vão entre 7000 a 8000 amostras. Portugal manda normalmente 500 a 600 vinhos. É muito importante porque os promotores do concurso são muito ligados ao marketing e conseguem fazer passar os resultados para a comunicação social mundial de uma forma bastante ágil.

GC – Que tipo de prémios são atribuídos?
JAF – Há três prémios: Grande Medalha de Ouro, Medalha de Ouro e Medalha de Prata. Em quase 8000 vinhos houve 30 Grandes Medalhas de Ouro, das quais nove para vinhos portugueses.

GC – Quais foram os seus vinhos premiados?
JAF – A Grande Medalha de Ouro foi atribuída ao Cotéis Grande Escolha, um dos meus vinhos da Herdade dos Cotéis, em Moura. As Medalhas de Ouro foram para a Adega Cooperativa da Vidigueira e para a Herdade da Fonte Coberta, em Évora. E as três pratas foram também para esta herdade, para a Adega da Vidigueira e para a Herdade dos Cotéis.

GC – Disse “um dos meus vinhos”.
JAF – São os vinhos que eu faço enquanto enólogo. Dou orientações desde as uvas até à garrafa.

GC – É esse o trabalho do enólogo?
JAF – Sim, é o acompanhamento de todo o processo de produção do vinho, desde a “fase do pintor”, quando a uva começa a ganhar cor, até à estabilização e engarrafamento.

GC – Mas na vinha não está tudo entregue à climatologia?
JAF – Não. Por vezes temos de mondar cachos. Quando a uva é demasiada, temos de mandar cachos para o chão para diminuir a produção e aumentar a qualidade. Isso é muito frequente.

GC – Isso para o meu avô seria uma heresia. Os agricultores mais idosos não gostarão nada disso… Mandar uva para o chão.

JAF – É verdade. Às vezes há alguns que dizem “isto parte-me o coração”… Mas de facto é muito importante. Hoje sabemos que uma planta que produz uva tinta não consegue produzir mais do que determinada quantidade de matéria corante e distribuir isso por cinco ou por dez cachos é completamente diferente. A cor é muito importante no resultado final do vinho, não só por ser uma parte visível, mas também porque a coloração significa a existência de sais minerais e aminoácidos, que são características intrínsecas do vinho.

GC – E na fase da vindima?
JAF – O mais importante é determinar a altura das vindimas. Hoje em dia temos de fazer quatro ou cinco começos de vindima, de acordo com a maturação dos diferentes tipos de castas. Não se corta uva a eito na vinha. Colhemos as castas, vinificamo-las e depois é que misturamos os diferentes lotes consoante os nossos objectivos para obter o vinho que desejamos.

GC – Como é que ganhou o gosto pela enologia?

JAF – Quando acabei o curso de Engenheiro Agrónomo, no Instituto Superior de Agronomia, fiz um estágio em Vinhos e Aguardentes e no final, em 1976, o professor com quem estagiei convidou-me para lá ficar. Dei aulas de Tecnologia de Vinhos e Enologia até 1984.

GC – E como entrou na profissão?
JAF – Em 1984 fui convidado para gerente a tempo inteiro da Adega Cooperativa do Bombarral. Antes disso, já desde 1982 que trabalhava em part-time para a Adega Cooperativa da Vidigueira.

GC – Mas não ficou por aí…

JAF – Estive na adega do Bombarral entre 1984 e 1989, mas em 1986 tinha começado a acompanhar a Companhia Agrícola do Sanguinhal. Em 1989 saí da gerência da Adega Cooperativa, mas mantive-me como enólogo. Nesse ano comecei também a trabalhar para a Casa Agrícola Silvestre Ferreira, em Ferreira do Alentejo e em 1990 para a Sarvinhos, de Leiria. Em 1999 comecei com a Herdade dos Cotéis, em Moura, em 2005 com a Santos & Santos (que produzem os Vinhos Moleiros, de Torres Vedras) e em 2007 entre na Herdade da Fonte Coberta, em Évora, que pertence à Santos & Santos.

“No resultado final do produto, a qualidade do vinho só pesa, quanto muito, 30%. O resto é marketing, imagem.”

GC – Não há incompatibilidade em trabalhar para empresas concorrentes? No fundo são todas do mesmo ramo de actividade.

JAF – Há muita diferenciação, os tipos de vinho, as castas, a região… Mas, por muito importante que seja o trabalho do enólogo e a qualidade intrínseca do vinho, mais importante ainda é a imagem do produto. Isso é que é importante para o mercado. No resultado final do produto, a quota parte da qualidade do vinho em si pesa, quanto muito, 30%. O resto é marketing, publicidade, imagem, que é tudo o que dá o nome ao vinho e faz com que ele se venda.

GC – Quer dizer que nem sempre os vinhos mais caros e mais conhecidos são os melhores?
JAF – Olhe, por vezes, entre enólogos, quando fazemos provas cegas [prova de vinho sem se conhecer a sua marca nem origem], é raro os mais caros serem os mais pontuados. Vinhos como o Barca Velha, Quinta de Vale Meão, Mouchão ou Pêra Manca, não quer dizer que fiquem mal cotados, mas há outros menos conhecidos que surpreendem e têm mais pontos.
Portanto, há vinhos que do ponto de vista da qualidade técnica são melhores, mas não têm a imagem de um grande produto. E essa é uma das razões pelas quais há adegas cooperativas que têm bons vinhos, mas não têm estratégia comercial que consiga impor o produto no mercado.

GC – É o caso da Adega Cooperativa do Bombarral?

JAF – Sim, é o caso da adega do Bombarral, que tem uma aguardente vínica velha e uma aguardente bagaceira velha que são produtos do melhor que existe neste momento no mercado, bem como o Vinho Tinto Reserva 2001. E, no entanto, têm um volume de vendas reduzido porque a adega não tem uma estratégia de marketing.

GC – Voltando aos prémios. Também já foi premiado com medalhas de ouro em Bordéus, que é também um dos certames mais famosos mundialmente.
JAF – Tive três. Uma por um vinho da Quinta do Sanguinhal 1997 e duas pelos reservas de 2003 e 2004 da Herdade do Pinheiro.

GC- Quantos prémios já teve?
JAF – Centenas. Perdi-lhes a conta.

GC – Como encara esses galardões?
JAF – É o reconhecimento de um trabalho. Tenho 35 anos de profissão e tenho tido muitíssimos prémios. Só na Companhia Agrícola do Sanguinhal tive 14 no ano passado.

GC – A mudança da denominação regional de “Estremadura” para “Lisboa” já produziu algum efeito nas vendas do vinhos da região?
JAF – Em termos globais já se sente a diferença nas vendas. Foi uma decisão muito acertada. Lisboa toda a gente conhece, mas a Estremadura nem por isso. E grande parte dos estrangeiros até confunde com a Extremadura espanhola. Como a tendência está no mercado externo, o nome de Lisboa é muito importante.

GC – Vai-se vender cada vez mais para o estrangeiro e menos para Portugal?
JAF – O consumo de vinho em Portugal tem vindo a diminuir, mas no mercado externo tem vindo a aumentar. O ano passado foi o primeiro desde sempre em que o consumo mundial de vinho foi superior à produção mundial. Vai acontecer nos próximos dez a 20 anos que os stocks vão diminuir e o produto vai valorizar ainda mais. Há países que não consumiam e que agora são muito importantes, como a China, a Índia, o Brasil e também em África, sobretudo Angola.

GC – E a mudança da denominação do Ribatejo para Tejo?
JAF – Não sei se eles estão a obter o efeito desejado ou não, mas creio que a mudança não foi propriamente pelas mesmas razões. Foi mais controverso, foi pelo facto de o Ribatejo estar conotado com vinhos de má qualidade.

OESTE É REGIÃO DE VINHOS BRANCOS

GC – É acertado dizer que o Oeste está mais vocacionado para os vinhos brancos?
JAF – Sim, a Estremadura – é melhor continuar a falar em Estremadura em vez de Oeste – é uma região em termos vitivinícolas vocacionada para o fabrico de brancos e também para os espumantes a partir de castas brancas e algumas tintas. Essa é a grande vocação da região. Claro que existem depois alguns nichos de solos mais pobres e secos e com boa exposição solar que permitem grandes tintos.

GC – Solos pobres e secos?
JAF – Sim. Lá está, quanto menor a produção, melhor a qualidade. Mas estava a falar da zona a poente do Montejunto porque a zona interior da Estremadura – Alenquer, Arruda e Carregado – é de tintos.

GC – Pôr um piquinhos de gás no vinho branco é legal?
JAF – Sim. Chamamos-lhe agulha de gasosa. A própria legislação consagra que a quantidade de gás dentro da garrafa pode atingir 1 bar. E num vinho branco pouco alcoólico e pouco encorpado dá-lhe uma certa frescura e é óptimo para o Verão.

GC – Quem é que tem tido mais sucesso com isso?
JAF – Sem dúvida, em termos de quantidade, a Adega Cooperativa da Vermelha, com o Mundus. Em termos de qualidade e preço, tem sido a Companhia Agrícola do Sanguinhal com o Sõttal. E também a Adega Cooperativa do Cadaval com o Confraria.

GC – Por que é que a Adega do Bombarral não faz a mesma coisa dado estarmos numa região de brancos?
JAF – A Adega Cooperativa do Bombarral vendeu a linha de engarrafamento. Só vende a granel e o resto dos engarrafados que ainda tem.

GC – Porquê essa decisão?
JAF – Porque a adega não tinha máquina comercial e verificou-se que o peso financeiro da linha de engarrafamento, nomeadamente os salários, não justificava os volumes que vendia. Então optou-se pelo granel e reduziu-se drasticamente o número de funcionários. Passou-se de 30 pessoas para cinco.

GC – Foi uma forma de salvar a Adega Cooperativa? Não tem futuro?
JAF – É muito difícil dizer porque actualmente laboramos com quantidades de uva muito pequenas. Foram só 1,5 milhões de quilos em 2010. Em 1979 laborámos 32 milhões de quilos de uva, em 1980 foram 28 milhões, mas depois foi sempre a descer. Isto porque a dada altura a fruticultura, nomeadamente a pêra Rocha, ganhou grande expansão e muito terreno agrícola, nomeadamente várzeas, são mais propícias para a pêra do que para a uva.
A Adega Cooperativa ficou muito sobredimensionada nos anos 70 e 80 e ainda por cima com depósitos de cimento que entretanto já se degradaram. Agora estamos a mandá-los abaixo.

GC – Os depósitos? Estão a demoli-los?

JAF – Sim. Não temos praticamente custos porque a empresa que o faz paga-se a si própria ao ficar com os resíduos. E ganhamos área que no futuro poderá ser alugada.

GC – Ou seja, estão a gerir a decadência da Adega Cooperativa do Bombarral?
JAF – Estamos a gerir a liquidação, embora feita de uma maneira lenta e não violenta. A adega do Olhalvo, do Sobral de Monte Agraço e da Merceana já fecharam.

GC – Mas há bons exemplos de adegas cooperativas que deram a volta por cima, a da Vermelha com os vinhos leves, a da Lourinhã com a aguardente… A do Bombarral vai mesmo fechar…
JAF – O Bombarral está a caminho. E penso que o Cadaval poderá vir a ter grandes dificuldades…

GC – Em contrapartida há o ressurgimento de quintas que estão a produzir e a vender de acordo com modernos padrões de fabrico e comercialização. A Companhia Agrícola do Sanguinhal, a Quinta do Gradil, por exemplo.
JAF – Sim. Mas o paradigma desse tipo de quintas é a Casa Santos Lima, em Alenquer. Já têm 200 hectares de vinha e compram uva correspondente a outro tanto. Exportam 80% da produção e apostaram nos bag-in-box [vinho em embalagens] que são usadas na exportação.

GC – Os bag-in-box estavam associados a vinhos de menor qualidade. As pessoas preferem a garrafa.
JAF – É uma maneira de o consumidor obter vinho barato. A diferença é só esta: num restaurante bebo meio litro de vinho por 1,5 euros, mas se for uma garrafa de 0,375 cl custa cinco euros. E já há bons vinhos, até com grande qualidade, em bag-in-box.

GC – Portanto, nos restaurantes é uma boa opção pedir vinho a jarro?

JAF – Sim, é uma boa opção. Porque a própria embalagem interior vai encolhendo à medida que se esvazia e nunca entra ar no vinho.

GC – Que vinho vai beber hoje ao almoço?
JAF – Hoje é dos raros dias em que almoço em casa. Como o almoço vai ser paella, vou beber um Mundos leve.

GC – É um profissional liberal. Trabalha para várias empresas. Vive-se bem como enólogo?
JAF – Não me queixo. Do que me posso queixar é de ter muito trabalho, que é uma coisa que, hoje em dia, nem todos podem dizer. Portanto, sou um felizardo.

GC – Que conselho daria à novel ministra Assunção Cristas para o sector vitivinicultura?
JAF –  Só lhe pedia que conseguisse aplicar todas as verbas dos fundos comunitários que estão afectas à agricultura portuguesa. Se conseguir isso, será uma super-ministra.

GC – Que pode o Estado fazer pelo sector?
JAF – Todo o apoio do Estado é bem vindo. Será mesmo fundamental que, através do orçamento geral do Estado, se consigam desbloquear as verbas necessárias para comparticipar os projectos aprovados pela UE.
Também seria muito importante que o Estado reforçasse os apoios financeiros à exportação, nomeadamente através da promoção da marca Portugal e de uma forte ajuda à participação dos engarrafadores nas mais importantes feiras mundiais.