75 ANOS
CASADO, DOIS FILHOS E DOIS NETOS
Aqui estou eu sentado ao volante de um autocarro nas oficinas do Lavradio, construídas pela Auto-Penafiel. Não se pode dizer que era aqui o meu local de trabalho. O meu local de trabalho era ao volante, a percorrer quilómetros e quilómetros de estrada. Mas de alguma forma as oficinas do Lavradio foram também a minha casa porque eu vivi aqui, num quartinho com uma cozinha, onde tratava do almoço ou do jantar. Só aos fins de semana é que ia ver a família à minha terra, a Alcanede.
Eu nasci em 7 de Junho de 1941 e fiz a 4ª classe em Alcanede. O meu pai tinha um negócio de madeiras e cedo comecei a ajudá-lo no corte e no transporte de pinheiros e eucaliptos. Às costas, porque naquele tempo não havia máquinas.
Percorria ali a região, mas não saíamos para muito longe. Foi com a tropa que comecei a conhecer mundo. Em 1961, com 20 anos, fui chamado para as Caldas da Rainha, para o RI5, depois enviado para Tomar, a seguir para Santa Margarida e depois outra vez para as Caldas. Ainda estive 15 dias mobilizado para ir para Angola, mas como já lá tinha um irmão mais velho, acabei por não embarcar.
Mesmo assim isto da tropa marca um homem. Eu lembro-me que foram vinte e sete meses e quatro dias de serviço militar. Quando saí, em 1963, voltei para Alcanede e tirei logo a carta de pesados porque eu queria ser motorista. Trabalhei durante uns tempos para a Fábrica de Farinhas Rosado, em Amiais de Cima (Santarém) e já nessa altura eu vinha muito às Caldas porque íamos descarregar ali na loja do José Augusto, ao pé do Chafariz das Cinco Bicas.
Mas o meu sonho era conduzir autocarros. Eu queria ser motorista dos Claras. E até meti logo os papéis. Só que um rapaz de Santarém que trabalhava para eles falou-me que nas Caldas a Auto-Penafiel estava a pedir motoristas. Vim cá, falei com o senhor Carlos Sousa e fui logo admitido.
Comecei a trabalhar no dia 19 de Novembro de 1972 e ainda me lembro do meu primeiro serviço: Caldas da Rainha – Santa Susana – A-dos-Francos-Painho – Caldas da Rainha. Um percurso que haveria de fazer muitas vezes para ir buscar os miúdos para as escolas.
Durante os 32 anos em que trabalhei na Auto-Penafiel fiz sobretudo transportes escolares, mas também muitos serviços de fábrica. Durante anos a fio ia buscar os trabalhadores da Promol na Zona Industrial, da Crisal, em Alcobaça, e até da Opel, na Azambuja. Este, então, era um serviço que começava às 04h55 da manhã e acabava à uma e tal da noite. E embora os motoristas tivessem um quartinho alugado para pernoitar, a gente acabava por ficar a dormir no banco de trás do autocarro porque não compensava ir à pensão.
Estas coisas se fossem hoje, não eram permitidas. Mas naquela época ainda nem havia os discos (tacógrafos) para os motoristas e praticamente não havia controlo das horas de repouso. Aliás, nas excursões conduzíamos horas a fio. Íamos para o Norte, para o Algarve, às vezes dois, três dias, sempre a agarrados ao volante.
E uma vez fui a França! Sozinho.
Quando o senhor Ruca (Rui Vinhais) me disse, eu pensei que ele estava a brincar comigo. Eu nunca tinha ido para além de Badajoz!… Como é que eu ia para França sem conhecer o caminho, sem falar línguas, sem perceber nada daquilo?
Mas o senhor Ruca disse que o cliente, que era de Santarém, me ajudaria. Eu confesso que saí daqui das Caldas um bocado desconfiado. Até lhe disse: “podem despedir-me, mas se ele não souber o caminho, não vou nada com o autocarro para França”.
Mas o cliente afinal foi de uma grande ajuda e até ficamos amigos. Foi sempre ao meu lado na viagem. Andamos oito dias por França com miúdos que foram lá jogar à bola. Quando regressámos saí de lá às dez da noite e cheguei cá às dez da noite do dia seguinte. E eu senti-me o homem mais feliz do mundo porque correu tudo lindamente.
O QUE OS AUTOCARROS MUDARAM!…
Transportes escolares, serviços de fábricas e alugueres. Milhões de quilómetros percorridos. Foi esta a minha vida durante 32 anos.
Três décadas deu para assistir a muitas mudanças. A começar pelos autocarros. Os primeiros nem tinham sequer direcção assistida. Aquilo era pesado, pesado, pesado, que para fazer uma manobra, a gente via-se perdida.
E os travões eram hidráulicos. Só depois é que vieram os de ar comprimido, o que é muito mais seguro.
E até mesmo para os passageiros, hoje o conforto é outro. Há 40 anos a suspensão dos autocarros era de molas e aquilo saltava que se fartava, sobretudo nos bancos de trás. Hoje, com estas suspensões modernas, é outra coisa.
Nunca fui multado e só tive um acidente. Não foi por culpa minha, mas foi uma tragédia. No dia 10 de Janeiro de 1977, precisamente quando a minha mulher estava no hospital e nascia o meu segundo filho, eu ia nos Vidais para ir buscar crianças para a escola, quando um motociclista se enfiou debaixo do autocarro e morreu. A mulher, que vinha com ele, sobreviveu.
Nestes anos todos nunca tive problemas com os passageiros, se bem que às vezes tinha que repreender algum miúdo mais malandreco ou algum excursionista já com álcool a mais.
Uma vez vinha de uma excursão à Ladeira do Pinheiro (Torres Novas) e um tipo já com os copos foi queixar-se ao patrão que eu estava embriagado. O senhor Carlos Sousa até se riu – toda a gente na Auto-Penafiel sabe que eu nunca bebo álcool. Sou abstémio.
Reformei-me em 2004, mas durante algum tempo ainda vinha de Alcanede duas ou três vezes por semana para fazer alguns serviços.
Eu gostava desta empresa. Éramos pouco mais de 20 motoristas com pouco mais de 20 autocarros e tinha um ambiente familiar.
Afinal, se eu tivesse ido para os Claras, não teria ficado lá muito tempo porque aquilo era muito grande e eram só doutores e engenheiros a mandar. Aqui sabíamos quem eram os patrões. Eu falava com o senhor Carlos Sousa ou com o senhor Simões e resolviam-se as coisas. Mais tarde passou a ser o senhor Ruca a tomar conta disto. Ele era uma jóia de pessoa, muito competente.
Por isso fiquei triste quando soube, já depois de reformado, que a Auto-Penafiel tinha sido vendida à Rodoviária. Mas parece que foi melhor assim. Disseram-me que foi o melhor que eles fizeram porque a concorrência era muita e estavam muito apertados.
“Nunca gostei de andar fardado”
E o que é que mudou na profissão nestes 40 anos?
As estradas, claro. Isto hoje não tem comparação. Para o Porto a auto-estrada terminava ali ao pé de Condeixa e para Lisboa acabava em Vila Franca de Xira. As estradas eram más, tinham muitas curvas e muitos buracos.
Lembro-me que demorávamos horas e horas até chegar ao Porto. No início da década de 70, pouco antes do 25 de Abril, fazíamos serviço do quartel das Caldas para o Porto para levar a tropa. Chegavam a sair 10 a 12 autocarros carregados de militares. E lá íamos por essas estradas fora, devagar, por aí em cima… Hoje, com as auto-estradas que há por aí, é uma maravilha.
Outra coisa que também mudou para melhor foi o não termos de andar fardados. Confesso que nunca gostei. Os autocarros não tinham ar condicionado e no Verão, com o calor, enfiado no casaco, a gravata apertada no pescoço a transpirar, o boné na cabeça. Não tinha jeito nenhum. Um motorista deve andar à vontade para poder conduzir como deve de ser.
Durante os 32 anos em que estive ao serviço da Auto-Penafiel vivia nas Caldas e ia ao fim-de-semana a Alcanede. Eu tinha-me casado em 1966 e quando em 1972 vim para cá, ainda andei a procurar casa para a família. Mas como não era fácil e porque o meu pai tinha construído umas casas muito boas para os filhos, acabámos por não nos mudar e eu fui ficando por cá. Nos primeiros anos vivi num quarto alugado ali perto do Montepio e mais tarde nas instalações da Auto-Penafiel no Lavradio.
Diga-se, a propósito, que nos anos 70 a empresa só tinha um barracão ali ao pé da estação de caminhos-de-ferro. Não havia garagem. Os carros ficavam aí espalhados pela avenida e perto da igreja. Depois é que se fizeram as oficinas a sério, onde também construíram uns quartos para o pessoal. Eu dormia lá, fazia as minhas refeições. Enfim, estava sempre acompanhado dos autocarros. E só ia aos fins-de-semana a Alcanede, às vezes a correr, para a minha mulher me tratar da roupa.
Depois da reforma é claro que voltei para a terra. Entretenho-me com umas hortas e tenho uns coelhos e umas galinhas para tratar.
Mas quando calha agarro no carro e venho às Caldas. E quando me ponho por aqui a passear conheço quase toda a gente. É como se fosse esta a minha terra.
Posso complementar está entrvista, foi este Sr. Quando eu e outros fomos para o casal da areia (Atlantis) em Dezembro de 1987 que pela primeira vez nos transportou, nessa madrugada ninguém quis entrar no autocarro e este ti de estar às 6 da manha como calculam o Sr suava por todos os poros lembra-se grande amigo? Dpois lá houve um que entrou e a situação resolveu-se, bons tempos que não voltaram jamais.