MANUEL FERREIRA – De copista interino a escrivão de 1ª classe. Uma vida nos tribunais.

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2016-04-22 Primeira.indd 78 ANOS
• CASADO
• UM FILHO, DOIS NETOS
Passei a vida em tribunais. Em Rio Maior, Vila Franca de Xira, Alcobaça, Peniche. Mas foi neste, nas Caldas da Rainha, onde trabalhei mais anos. Comecei como ‘copista interino’ em Outubro de 1959 e aqui me reformei no dia 25 de Julho de 1993 como ‘escrivão de primeira’. Agora dedico-me a tempo inteiro à Misericórdia das Caldas da Rainha e raramente venho aqui. Não tenho muitas saudades. Isto mudou muito – já não se trabalha como antigamente nem há o mesmo “amor à camisola”. Antes trabalhávamos, se fosse preciso, até à meia-noite para despachar processos e ter a Justiça em dia. Hoje… enfim, já não é assim. É certo que eu sou de um outro tempo. Nasci no dia 23 de Junho de 1937 em Ribeira de S. João, no concelho de Rio Maior. O meu pai era trabalhador rural, mas depois de eu ter feito a 4ª classe na aldeia, fui estudar para Rio Maior onde fiz o primeiro ciclo dos liceus. Ainda ajudei o meu pai nas lides do campo, mas como eu tinha estudos que na época faziam a diferença, arranjei emprego como apontador nas minas de carvão. Sim, os mais novos não sabem que havia minas de carvão em Rio Maior e que até havia um caminho-de-ferro de lá até ao Setil (perto do Cartaxo) para transportar o minério. Um apontador tem a responsabilidade de controlar as entradas e saídas dos mineiros e de ver se eles estão no seu local de trabalho. Eu percorria as galerias com um gasómetro a iluminar as entranhas da terra para ver se estava tudo em ordem com o pessoal.
Não sendo mineiro, o meu trabalho não era tão duro como o daquela gente que picava a lenhite dentro dos túneis. Havia uma tarefa que impunha respeito e só os veteranos sabiam fazer – o desmonte. Tratava-se de retirar as estacas de madeira que ancoravam as galerias que já não tinham mais minério para que ficassem soterradas. Um trabalho perigoso, sem dúvida. Mas eu não estava destinado a continuar na mina. O meu irmão mais velho trabalhava no tribunal e eu percebi que aquilo tinha interesse. Se hoje é o que sabemos para se arranjar trabalho, naquela altura os empregos também não eram fáceis de arranjar. Foi assim que em Outubro de 1959 meti os papéis e fui aceite como estagiário no tribunal de Rio Maior. Mas um estagiário não ganhava nada e por isso continuei a trabalhar na mina. Fazia o turno das 18h00 às 3h00 da manhã, dormia umas horas e às 9h00 estava no tribunal. Quando acabei o estágio nomearam-me logo para as Caldas da Rainha. Um ‘copista interino’ era assim como um dactilógrafo. Eu escrevia à máquina as sentenças, os registos criminais e outros documentos. E dava entrada às petições para os processos. Em 1960 fui para o Cartaxo porque tinha sido promovido a ‘oficial de diligências’. Agora eu fazia notificações, chamava as pessoas para os julgamentos, assistia às sessões e ajudava a manter a ordem dentro da sala de audiências. Por exemplo, não se podia estar com a perna traçada por respeito ao tribunal. E os botões da camisa tinham de estar abotoados até ao pescoço. Foi no Cartaxo que me casei após cinco anos e meio de namoro com a Elsa, uma rapariga da minha terra. Estamos casados há 53 anos. E foi também no Cartaxo que nasceu o meu filho, em 1964. Mas nessa altura eu até estava a trabalhar em Vila Franca de Xira porque em 1962 pediram-me para ir lá ajudar a reforçar a comarca, que estava com falta de pessoal. Mas ao fim de 17 meses eu quis regressar ao Cartaxo porque estava a ir todos os dias de comboio de Santana para Vila Franca e não me pagavam as viagens. Poucos meses depois, porém, surgiu uma vaga em Alcobaça e consegui transferência. Estive lá de 1966 a 1971 até que voltei para as Caldas da Rainha. Trabalhava-se muito e trabalhava-se bem. Eu tinha todos os processos crime a meu cargo, escrevia as acusações e as sentenças nas velhas máquinas de escrever Messa. O trepidar das teclas ecoava por todas as salas do tribunal. Mas não fiquei muitos anos nas Caldas. Nós, os funcionários da Justiça, somos um pouco como os militares, os polícias, os ferroviários, os professores: andamos com a casa às costas a saltar de terra em terra. Em 1977 fui para Peniche como ‘chefe de secretaria’, mas desta vez não levei a família atrás. O governo dera-nos um cartão em que podíamos viajar nas camionetas e nos comboios sem pagar nada e compensava-me ir e vir todos os dias. Estive seis anos em Peniche. O que fazia um ‘chefe de secretaria’? Era chefe. Mandava nas outras pessoas e tinha uma grande responsabilidade porque controlava os processos todos. Em 1983 houve uma vaga nas Caldas da Rainha e regressei, agora como ‘escrivão de 1ª classe’ e desta vez até à idade da reforma. Os meus últimos anos passei-os na 1ª secção do 1º juízo. Tinha cinco funcionários a meu cargo e respondia directamente ao juiz Palha da Silveira, que entretanto foi para desembargador, tendo sido substituído pelo juiz Ramiro. Quando me reformei estava lá o Dr. Sapateiro. Num dia de Maio de 1994 senti-me mal, fui ao médico e diagnosticaram-me brucelose. Uma doença estúpida que me obrigou a ser internado e da qual nunca descobri a causa. O certo é que por causa disso não cheguei a contar os dias que me faltavam para a reforma nem tenho memória do meu último dia de trabalho no tribunal. Chegado o dia 25 de Maio passei à reforma.
OS TRIBUNAIS MUDARAM MUITO 
Os tribunais mudaram muito. Hoje estão um caos. Mas antigamente nós tínhamos uma disciplina em que o serviço tinha de ser cumprido em cinco dias. Nem que tivéssemos de ficar a trabalhar até à noite. Agora, uma pessoa descuida-se e às quatro da tarde vai ao tribunal e encontra aquilo fechado. No meu tempo nós tínhamos uma inspecção de dois em dois anos, feita por um desembargador e um funcionário, e a nota que nos davam contava para a nossa carreira. Eu só pude subir de ‘oficial de diligências’ para ‘escrivão adjunto’ depois de oito anos seguidos com a classificação de Muito Bom. E há outras diferenças. Os juízes mandavam mais, havia outro respeito. Trabalhei com muitos e nunca tive problemas com nenhum, mas gostaria de recordar os que mais gostei: o Dr. Palha da Silveira, o Dr. Capelo e o Dr. Querido. Aliás, uma vez, com o juiz Carlos Querido, os escrivões dele, Orlando Padrão e Vítor Dinis, foram fazer uma penhora e regressaram com três ou quatro crianças negligenciadas. Na casa onde se deslocaram, estavam as crianças sozinhas, o frigorífico estava vazio e havia um cão morto de fome na varanda. Era Inverno, chovia muito e o Dr. Querido não tinha onde colocar provisoriamente as crianças. Naquele tempo o IRS (Instituto de Reinserção Social) ainda não funcionava. Então ele telefonou-me, e como eu já estava ligado à Misericórdia, lá arranjei lugar para as crianças tão maltratadas. Também nunca tive problemas com as pessoas nos tribunais. E é verdade que tive que aturar algumas bem exaltadas. Às vezes, no fim dos julgamentos, quando era lida a sentença havia pessoas a quererem bater umas nas outras e eu lá tinha de me impor e ameaçar que as mandava para prisão (eu tinha poderes para isso porque sou ajuramentado). Mas eu queria é que elas se fossem embora. Uma vez, em Alcobaça, notifiquei um homem para o qual tinha um mandato de captura. Ele apareceu no tribunal e eu disse-lhe que tinha de ficar detido para cumprir uma pena de prisão devido a uma zaragata. Ele implorou-me que o deixasse ir a casa despedir-se da mulher e dos filhos e eu fui sensível e deixei-o ir. Mas com o compromisso de ele regressar às 10h00 da segunda-feira seguinte, desta vez para ser preso. Os meus colegas olharam para mim espantados porque eu podia estar a dar cabo da minha carreira – o homem de certeza que nunca mais voltaria. Mas a verdade é que na segunda-feira lá apareceu e foi cumprir a pena de prisão.
A ACÇÃO DE DESPEJO
Nas minhas funções eu tive várias vezes de acompanhar situações de despejo. E não me esqueço que uma vez, na Bemposta, perto da Maiorga (Alcobaça) fui confrontada com uma situação terrível de uma mulher que vivia sozinha e não tinha para onde ir e de um senhorio, igualmente miserável, que precisava da sua casa. Lá mandámos retirar os móveis e quando vou passar a vistoria encontro atrás de uma porta um berço com um bebé com os olhos muito abertos. Ainda hoje me emociono. O meu filho na altura tinha quatro anos e… enfim, a verdade é que naquele momento apeteceu-me largar esta profissão. Mas afinal ainda fiquei mais 24 anos. Depois de me reformar não parei de trabalhar. Vim como voluntário para a Santa Casa da Misericórdia das Caldas da Rainha, à qual já estava ligado. Vim para vogal da comissão administrativa e hoje sou vice-provedor. Venho cá todos os dias e encaro isto como se fosse um emprego. Não tenho dúvidas que eu hoje teria menos saúde se não tivesse esta actividade. É certo que também me traz aborrecimentos, mas ter esta obrigação ajuda-me a ocupar os meus dias e a sentir-me útil.

Testemunho recolhido por: Carlos Cipriano

 

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