MARGARIDA SILVA – “Toda a vida fui doméstica. Ser dona de casa foi a minha profissão”

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1798

78 ANOS
VIÚVA, UM FILHO, DOIS NETOS

notícias das Caldas
Até 1970 tinha de fazer compras várias vezes por semana e em pequenas quantidades porque não tinha frigorífico | C. C.

Toda a vida fui doméstica. Ser dona de casa foi a minha profissão, o que é, aliás, bastante vulgar em mulheres da minha idade. Na minha geração o normal era os maridos trabalharem e nós ficarmos em casa a cuidar das limpezas, da cozinha, das compras, dos filhos. Aqui no Bairro Viola, onde vivi quase toda a minha vida, os dias eram quase todos iguais, feitos de rotinas: as compras, a comida, a loiça, as conversas com as vizinhas. Era um tempo em que tudo era previsível e não havia sobressaltos. Ou se os havia, nós, as mulheres, aqui no nosso rame rame, não dávamos por nada.

Em Março de 1961, a cinco meses de me casar, vim aqui pela primeira vez ao Bairro Viola para alugar a casa onde vinha viver com o meu marido. Foi a porteira do prédio, a D. Maria Rosa que me atendeu. Sim, porque isto na época tinha porteira e tudo. Era um bairro operário, construído em 1948, onde não vivia gente rica. Eu diria que era tudo gente remediada. Mas com direito a porteira, que limpava as escadas e recebia as rendas dos inquilinos.
Gostei do apartamento, apesar de estar mal acabado. Para os parâmetros de hoje é pequenino, mas tem uma cozinha, uma casa de banho, dois quartos, uma sala de jantar, uma salinha de costura e um corredor com nove metros. Tudo habitações pequenas, como era costume na época.
Eu tinha 23 anos quando me casei com o Luís Palma da Silva. Nesse mês de Agosto de 1961, após uma curta lua de mel em S. Martinho do Porto (onde fomos de comboio e dormimos uma noite no campismo), instalámo-nos aqui no Bairro Viola com o enxoval que eu trouxe da casa dos meus pais: lençóis, colchas, toalhas, naperons, loiça, serviço de jantar, faqueiros, cortinados.
Como todos os maridos aqui do prédio, o meu saía cedo para o trabalho e ficávamos as mulheres em casa a preparar-lhes o almoço. Naquele tempo não se ia tanto aos restaurantes e o normal era os homens virem almoçar a casa.
Neste lado do Bairro Viola viviam 24 famílias. Hoje só restam quatro.
Mas nos anos sessenta isto tinha muita vida. Parte dos vizinhos trabalhavam na SEOL, que tinha as oficinas mesmo aqui em frente. A sineta assinalava as horas de entrada e saída e até eu já me orientava pelo seu toque. No prédio havia também mecânicos e empregados de escritório, funcionários dos correios e trabalhadores da Secla.
Num tempo em que eu nem sonhava que um dia existiriam supermercados e hipermercados (onde as pessoas vão às compras e voltam carregadas de sacos), eu ia aviar-me à mercearia da esquina do Sr. Chico e da D. Ermelinda. Eles tinham um rapaz, um marçano, a quem eu dava a lista de compras e ele trazia-me as coisas a casa.
O leite e o pão também me eram entregues à porta de casa! Todos os dias de manhã a leiteira, a Gabriela, passava por aqui com a sua bilha de alumínio com uma torneira no fundo e deitava o leite que nós pedíamos para o fervedor. E com o padeiro eu nem o via: deixava o saquinho do pão com o dinheiro pendurado no trinco da porta e de manhã cedo já tinha pão fresco em casa.
Aos sábados ia com o meu marido às compras à Praça da Fruta para trazer alguns frescos que não havia na mercearia. O peixe comprava-se, é claro, na Praça do Peixe (Largo 5 de Outubro), onde as vendedeiras de Peniche e da Nazaré apregoavam o pescado fresco. E a carne era no talho do senhor António na Rua Fonte do Pinheiro.
Tinha de se fazer compras várias vezes por semana e em pequenas quantidades. É que até 1970 eu não tinha frigorífico! E não se pense que isso era muito invulgar naquele tempo. Os electrodomésticos já não eram novidade, mas foi só nas décadas de 60 e 70 que eles se vulgarizaram e passaram a equipar as casas dos portugueses.
O pretexto para comprarmos o frigorífico foi o nascimento do nosso filho em 1970. Com um bebé em casa, é claro que um aparelho destes dava muito jeito. Na altura os electrodomésticos compravam-se a prestações, mas o meu Luís preferia esperar mais tempo e comprar a pronto.
Antes disso, porém, a nossa primeira grande compra foi um esquentador. Nos primeiros tempos era num enorme panelão que eu aquecia água para o banho, mas rapidamente decidimos comprar o esquentador. Foi também nessa altura que fizemos outra compra que estava em moda na época – um colchão Molaflex. Os mais novos poderão estranhar, mas até então usavam-se colchões de palha.
Já a máquina de lavar roupa só a compramos décadas depois. Eu tinha um pequeno tanque na cozinha e era eu que lavava a roupa com sabão azul e branco. E o telefone, isso já foi uma coisa que só tivemos nos anos 80.
Em 1970 o meu marido comprou o primeiro carro. Um Anglia Deluxe. Íamos nele dar o “passeio dos tristes” ao domingo à Foz do Arelho ou a S. Martinho, ou ver a minha irmã e o meu cunhado ao Bombarral. E era também no Anglia – sem ar condicionado – que íamos de férias ao Alentejo em pleno mês de Agosto. Sem ar condicionado?! O carro nem sequer tinha cintos de segurança porque naquele tempo não era obrigatório. E como não havia auto-estradas, a viagem demorava quase um dia inteiro.
Foi também por esta altura que compramos uma televisão. Era a preto e branco porque ainda não havia televisão a cores. E só tinha um único canal – a RTP – que funcionava apenas à noite.
A televisão alterou os nossos hábitos. Antes, depois de jantar, eu lavava a loiça, arrumava a cozinha e lá íamos ao café dos Capristanos ver televisão. Nós e muita gente. O meu marido bebia um cafezinho e eu um chá ou comia um bolo. Eram coisas que hoje parecem simples, mas que naquela altura representavam um dos melhores momentos do dia – os Capristanos eram uma coisa chique nas Caldas e ver televisão uma novidade.
É claro que também havia o cinema. Às vezes íamos ao Salão Ibéria, no Parque. E nas noites de Verão ouvíamos os concertos no coreto enquanto as crianças brincavam. Era muito agradável. Aliás, eu acho que nunca mais houve noites de Verão tão quentes como naquela época.

O MEU MUNDO ERA PEQUENO

Houve uns anos em que tomei conta de crianças e também fiz cortinados e bordados para fora. Esse foi o tempo em que se pode dizer que tive uma “profissão”. De resto fui sempre dona de casa.
A vida era previsível. O mundo rodava e é claro que devia haver guerras, conflitos, atentados, mas eu, na minha rotina doméstica, a tratar da casa e do filho e só a falar com as vizinhas, não me dava conta. O meu mundo era pequeno.
Ainda por cima vivia numa ponta da cidade, num local quase ermo! Hoje até me custa explicar à minha neta que as Caldas acabavam aqui no Bairro Viola e que para cima não havia nada. Tudo isto aqui à volta eram caniçais. E ali à frente, onde agora é os bombeiros e a cadeia, passava o rio do Mijo. Em frente à porta havia logo uma fazenda e mal havia carros a passar por aqui porque nem sequer existia uma rua propriamente dita.
Só mais tarde se rasgou a actual avenida Dr. Carlos Manuel Saudade e Silva e de repente começaram por aqui a surgir prédios como cogumelos. Por causa disso, as famílias que viviam nas caves do Bairro Viola começaram a ter inundações porque devem ter feito mal os esgotos na avenida.
Foi então que começou a decadência do Bairro Viola, com os primeiros apartamentos a ficarem vazios.
Mas como vim eu viver para as Caldas, a terra que me abraçou e onde nasceram o meu filho e os meus netos?
Eu nasci na Portela (Bombarral) em 27 de Novembro de 1938. O meu pai era pedreiro e a minha mãe doméstica. A minha irmã nasceu dois anos depois e ela guarda muitas recordações de infância da nossa aldeia rural, mas eu nem por isso porque nessa altura fui viver para Lisboa. Foi por acaso: os meus padrinhos não tinham filhos e levavam-me com eles para passar umas temporadas em Lisboa, que cada vez eram maiores. Quando chegou a idade de ir para a escola matricularam-me na Escola Primária de Santo Amaro, fiz a 4ª classe e depois fui aprender costura num atelier com 20 empregadas que ficava ali na Praça do Chile. Eu ia para lá no “carro operário”, que era assim que se chamava ao eléctrico das 7h30 no qual só se pagava 7 tostões (0,35 cêntimos) por uma ida e volta.
O meu padrinho era guarda-freio da Carris e quando conduzia o eléctrico e passava à porta de casa lembro-me do tlim tlim com que ele nos cumprimentava. Às vezes descíamos ao Calvário e íamos ao cinema à Promotora. Foi lá que eu vi A Branca de Neve e os Sete Anões.
Cresci sendo uma menina da cidade, sempre com vestidinhos bonitos, com que eu brilhava quando vinha à Portela de férias ou por ocasiões da matança do porco. Depois voltava a Lisboa e lá ficava o meu pai com uma lágrima no olho a ver-me partir.
Mas aos 15 anos regressei de vez. E fui fazer o que era normal nas meninas da minha idade – continuar a aprender costura. Em 1953 eu ia a pé da Portela para o Bombarral (cinco quilómetros) sem problemas. Parece que naquele tempo não havia perigos. Andava numa modista, a D. Emília Patuleia e ganhava à volta de 200 escudos (1 euro) por mês.
Aos 18 anos conheci o rapaz que viria a ser o meu marido. Foi num baile no Bombarral. Convidou-me para dançar e depois voltei a vê-lo nos bailes da Portela. Não falhava nenhum e eu era sempre a escolhida para dançar. E de repente eu tinha um namorado – um alentejano de Aljustrel, de 20 anos, tipógrafo, que trabalhava na Tipografia Judicibus no Bombarral.
Demos o nó em 1961 e resolvemos vir para as Caldas porque ele entretanto arranjou trabalho na Tipografia Comercial na rua do Jardim, onde ganhava mais do que no Bombarral.

O BAIRRO VIOLA ERA NUM DESERTO

E foi assim que aqui cheguei. Parece que foi ontem. Enviuvei em 2004 e desde então fui abençoada por dois netos que me dão muitas alegrias. O meu Bairro Viola, que na altura era um deserto, está hoje situado em plena cidade. Como é que eu iria imaginar que as Caldas haveria de crescer tanto?
Mas há coisas que não mudam. Na minha casa faço tarefas rotineiras e iguais há 50 anos. Uma delas é o almoço. Antes para o meu marido. Agora para o meu filho, que vive no Chão-da-Parada e trabalha nas Caldas. A ele dá-lhe jeito vir cá almoçar e a mim também porque sempre me faz companhia. As lojas mudaram. Agora vou à Frutaria Tavares e ao Europão, mas não deixei de ir à Praça da Fruta.
Depois do almoço, lavo a loiça, limpo o pó, entretenho-me aqui por casa, converso com a minha vizinha Lena, ou a minha irmã vem cá visitar-me. Às vezes faço umas caminhadas aqui pelas redondezas e ao sábado vou sempre à missa. Nalguns fins-de-semana vou para o Chão-da-Parada onde brinco com os meus netos.
Uma vez por ano vou com a minha irmã, nas excursões do senhor Miradouro, passar uma semana a Espanha. E já tenho ido também a Lisboa, ao Casino do Estoril, ao Politeama e ao D. Maria ver os espectáculos do La Feria. Também não costumo falhar o passeio de idosos da Junta de Freguesia. Este ano gostei muito de ter ido a Setúbal porque fomos de comboio.
Mas depois de sair, o que eu mais gosto é de regressar a casa. A minha casa, que na verdade não é minha porque é arrendada, é o meu cantinho, o local onde me sinto feliz. É como se fizesse parte de mim mesma. Quando vim para cá, pagávamos de renda 200 escudos (1 euro). Era dinheiro na altura porque o meu marido ganhava 1200 escudos (6 euros) por mês. Hoje pago 109,44 euros de renda à Companhia de Seguros Açoreana que parece que é a dona disto. Já ouvi dizer que querem mandar tudo abaixo e construir um prédio novo. É verdade que isto está tudo muito velho, mas é um prédio bonito, com escadas de madeira, corrimões de ferro e um pátio interior, muito florido, onde antigamente até chegou a haver ensaios de ranchos folclóricos.
Nesse antigamente vivíamos aqui 24 famílias. Agora … somos só quatro.